terça-feira, 30 de junho de 2009

MICHAEL JACKSON (1958-2009): DO BOI SÓ SE PERDE O BERRO

Do boi só se perde o berro, diziam os antigos. Foi o que me veio à cabeça ao assistir à overdose de Michael Jackson em jornais, revistas, rádios e tevês.

A mesma indústria cultural que deu projeção exageradíssima a quem tinha talento, é verdade, mas nunca foi um revolucionário da música como os Beatles; que tanto glamourizou suas esquisitices de adulto malresolvido, como se fosse desejável que quarentões se comportassem à maneira de impúberes; que foi de uma crueldade ímpar ao expor o que me pareceu ser mais uma atração platônica pelos jovens do que pedofilia propriamente dita (ou seja, ele continuaria estacionado na sexualidade infantil, impotente para chegar às vias de fato); e que o relegou ao ostracismo quando sua imagem se tornou politicamente incorreta - agora transforma sua morte num repulsivo espetáculo de canonização midiática.

Nunca apreciei a música do Jacksons 5, nem a que ele fez depois na sua carreira-solo. Comercial demais para o meu gosto de rockeiro apegado às origens bluesísticas.

Ademais, os malditos videoclips, de quem Jackson foi o rei, marcam a retomada do controle por parte da indústria cultural, depois de ter sido obrigada a submeter-se à explosão roqueira durante alguns anos gloriosos, entre o final dos '60 e o início dos '70.

Nunca esquecerei de Joe Cocker, depois de um animado passeio por São Paulo, entrando diretamente no palco, com a roupa que vestia. Para arrasar, com sua entrega incondicional à música.

Nunca esquecerei da temporada do Cream em que os fulgurantes improvisos de Eric Clapton, Jack Bruce e Ginger Baker faziam com que, noite após noite, os números tivessem duração diferente.

Nunca esquecerei de Jimi Hendrix, com sua beleza selvagem, implodindo o hino estadunidense em Woodstock.

Os clips dos anos 70 significaram a substituição do talento bruto pela produção onerosa, da paixão pelo ensaio, da arte pelo espetáculo. E Michael Jackson acabou simbolizando essa domesticação.

Mas, seu destino como ser humano vitimado por essa engrenagem perversa sempre me inspirou compaixão. É triste vermos como um menino bonito, simpático e espontâneo, após receber o toque de Sadim (Midas às avessas) do sistema, tornou-se um adulto descaracterizado e sofredor.

Até sua cor quis negar, ao invés de orgulhar-se dela como o grande Muhammad Ali. Acabou ficando com imagem idêntica à dos vampiros mutantes de um clássico do terror, A Última Esperança da Terra (d. Boris Sagal, 1971), como se castigado pelos deuses.

Foi sugado, espremido e jogado fora. Aí a comoção causada por sua morte deu chance a um reaproveitamento do bagaço, para faturarem mais um pouquinho.

A indústria cultural é um dos componentes mais doentios e malignos do capitalismo putrefato. Casos como o de Michael Jackson dão uma dimensão total de sua capacidade de destruir seres humanos para saciar a curiosidade mórbida de seus públicos, movida pelo amoralismo do lucro.

segunda-feira, 29 de junho de 2009

HONDURAS: A PRIORIDADE É ESMAGARMOS O OVO DA SERPENTE!

Bombardeio do Palácio do Governo, 1973: o caminho
dos golpes de estado leva aos pinochetazzos

Quando eu refletia sobre como posicionar-me diante do imbroglio hondurenho, o e-mail recebido do inestimável companheiro Ismar de Souza indicou-me o caminho correto:
"Mesmo sem ter presenciado, veio-me à memória como deve ter sido o golpe contra Goulart em 1964. Os países da América Latina devem reagir rapidamente, senão a espiral golpista pode voltar com força total em republiquetas menores, depois em países maiores como a Venezuela e Bolívia".
Concordo: é mesmo um precedente perigosíssimo, daí a necessidade de abortarmos imediatamente o golpe de estado. Trata-se da prioridade nº 1, neste momento.

Quando me posicionei com tanta ênfase contra a proposta de emenda constitucional para facultar-se nova reeleição ao presidente Lula, foi exatamente por temer um desdobramento desse tipo.

O presidente em exercício tem um poder de fogo muito grande para conseguir apoios e maiorias. Se o utilizar para perpetuar-se no poder, tem grande chance de obter êxito. Daí ser inaceitável, numa democracia, que ele manobre para a convocação de constituintes ou realização de plebiscitos no sentido de que sejam alteradas as regras do jogo em seu benefício. Mudanças que entrarão em vigência no mandato seguinte, tudo bem. Mudanças em causa própria, nunca!

Pior: a rua é sempre de duas mãos. Quem apóia a presidência eterna do Chávez será um cínico se negar idêntico direito a Uribe. O que serve para a esquerda, acaba servindo também para a direita.

ESQUERDA x MAQUIAVELISMO - Mas - objetarão alguns companheiros -, o que importam as regrinhas democráticas para quem quer tocar adiante uma revolução?

Aí a discussão é longa. Mas, eu permaneço fiel a um valor da minha geração: não se fazem revoluções com subterfúgios.

O PCB sempre acreditou em conquistar, pela via democrática, posições-chave do governo (quiçá a própria Presidência da República) e depois utilizá-las como catapulta para o poder.

Foi a postura que levou ao terrível fracasso de 1964. E que gerou uma nova esquerda, em 1968, disposta a perseguir abertamente seus objetivos, proclamando-os em alto e bom som, sem tentar esconder a que vinha.

Utilizarem-se as franquias democráticas para conquistar o governo e depois tentar burlá-las para alcançar o poder é puro maquiavelismo. Nada tem a ver com o marxismo, muito menos com o anarquismo.

Outro valor fundamental para a minha geração: revoluções são feitas pelo povo e com o povo. Acontecem quando o povo está pronto para elas. Não tomando-se o poder para depois tentar-se engajar o povo, pois este tem de ser sempre o sujeito da revolução, nunca o objeto.

Quem passa por cima disto, mesmo com boas intenções, acaba vendo o povo reduzido à condição de coadjuvante também durante o regime dito revolucionário. Daí o alerta profético de Trotsky: primeiro, o partido substitui o proletariado; depois, o Comitê Central substitui o partido; finalmente, um ditador substitui o Comitê Central.

Mais: revoluções são obra coletiva, não dependem desesperadamente de líder nenhum.

Se o preço das forçações de barra continuístas é dar ensejo a golpes de estado direitistas, então um presidente de esquerda tem mais é de tentar fazer seu sucessor, como o Lula no caso da Dilma.

Se tem mesmo prestígio junto às massas, elegerá um discípulo fiel e não concederá, de mão beijada, um trunfo à direita golpista. Se não tem, que se resigne a deixar o governo no final do mandato. É simples assim.

NO FIM DA LINHA, OS PINOCHETAZZOS - As trapalhadas do presidente hondurenho Manuel Zelaya permitiram que o golpe dado contra ele parecesse justificável. Afinal, pouparam-lhe a vida, boa parte de seu próprio partido o traiu, o Congresso avalizou a deposição e o substituto é um civil, o presidente do Legislativo, que promete marcar novas eleições para breve.

Eis um enorme perigo: começa-se por um golpe brando e se acaba em pinochetazzos. O ovo da serpente tem de ser esmagado antes de eclodir.

Mas, não por uma intervenção militar de um único país (como a Venezuela), o que geraria uma reação em cadeia, de consequências imprevisíveis. E sim por meio de uma articulação continental.

Mesmo porque a ninguém deve ser concedido o papel de polícia da América Latina. Se tanto combatemos a atuação dos EUA neste sentido, não foi para que as tropas de Chávez tomassem o lugar dos marines.

E que, uma vez afastado o perigo imediato, este episódio sirva como advertência. É hora de dissociarmos, de uma vez por todas, nossas revoluções de tudo que seja -- ou pareça -- o velho caudilhismo latino-americano.

domingo, 28 de junho de 2009

ACREDITE QUEM QUISER: A "FOLHA DE S. PAULO" ESTÁ À DIREITA DA "VEJA"!

A grande imprensa é uma caixinha de surpresas. O cidadão que folhear neste domingo a Folha de S. Paulo e a última Veja, ficará em dúvida sobre qual é qual. Talvez até se belisque, para ter certeza de não estar sofrendo alucinações.

De um lado a Veja, na matéria Memórias do Extermínio (assinantes da Veja e do UOL podem acessar a íntegra aqui), não só admite tranquilamente a veracidade das confissões do Major Curió, segundo quem as Forças Armadas executaram a sangue-frio 41 guerrilheiros do Araguaia depois de prendê-los com vida e manterem-nos presos por variáveis períodos, como até acrescenta detalhes buscados em outras fontes, como se pode constatar nestes trechos:
"Sabe-se agora que o Exército perseguiu e executou os guerrilheiros, mesmo quando eles já não ofereciam mais qualquer perigo aos militares.

"VEJA entrevistou um militar que integrou a equipe de Curió - e participou da execução de ao menos três guerrilheiros. Esse experiente militar (...) aceitou contar em detalhes o que fez, contanto que seu nome permanecesse no anonimato.

"'A ordem era não deixar ninguém sair de lá vivo', rememora o militar. 'Era uma missão e cumprimos o que foi determinado.' Recorrendo a uma identidade falsa, o militar (...) se infiltrou junto à população civil para obter informações sobre a guerrilha. Tempos depois, ele passou a trabalhar na 'Casa Azul', (...) onde o Exército mantinha presos e torturava os guerrilheiros capturados. A ordem, lembra o militar, era extrair o máximo de informações dos presos, (...) quase sempre, por meio de torturas. Depois, assassiná-los. Tudo feito clandestinamente.

"O militar entrevistado foi dos algozes do cearense Antônio Teodoro de Castro, estudante universitário de 27 anos conhecido como 'Raul'. Ele conta que presenciou o interrogatório do estudante: 'Ele tinha fome, vestia farrapos e estava amarelo, parecia ter malária' (...). Mesmo desarmado, mesmo famélico e doente, mesmo depois de contar tudo que os oficiais queriam, Raul não foi poupado. Logo chegou a ordem: eles deveriam levá-lo para fazer um 'reconhecimento'(...), senha para matar. Curió e seus homens, entre eles o militar entrevistado por VEJA, embarcaram Raul e outro guerrilheiro, o estudante gaúcho Cilon da Cunha Brun (...), num helicóptero da Força Aérea...

"...até as terras da fazenda de um colaborador. (...) Após uma longa caminhada, o grupo parou para descansar. Todos se sentaram. Instantes depois, Curió disse aos colegas: 'É agora!' Levantou-se num átimo, mirou seu fuzil Parafal na cabeça de Raul e disparou. O corpo do estudante caiu imediatamente sem vida. Os outros oficiais levantaram-se e descarregaram as armas nos dois. 'Parecia pelotão de fuzilamento', lembra o militar. Eles tentaram cavar uma vala para enterrar os guerrilheiros, sem sucesso. Resolveram cobrir o local com galhos de árvores – e seguiram caminho. Alguns dias depois, o fazendeiro esteve com os militares e reclamou dos cadáveres. 'Os corpos começaram a feder. Os animais já tinham comido quase tudo. Tive que enterrar os restos', disse.

"Aconteceram ainda outras atrocidades. O fotógrafo baiano José Lima Piauhy Dourado, o 'Ivo', tinha 27 anos quando foi capturado pelos militares. Ele fora ferido na clavícula (...). Transportado para a Casa Azul, Ivo passou por uma longa sessão de torturas. Apanhou e conheceu os horrores do pau de arara (...). Conta o militar: 'O cara só gemia'. Gemia, mas, segundo a testemunha, não entregou ninguém. O depoimento do militar é perturbador: 'Ele estava agonizando, pendurado no pau de arara. Alguém se aproximou e derramou um copo-d’água em sua boca. Ele morreu afogado, estrebuchando'.

"O Exército também pagava pela cabeça dos guerrilheiros – e não era metaforicamente. 'Tinha que trazer a cabeça mesmo, para provar que tinha matado', lembra o militar. Cada cabeça rendia 5.000 cruzeiros ao matador. Em valores corrigidos, cerca de 11.000 reais. 'Vi pelo menos umas três', conta.
"FOLHA" DESPERDIÇA PAPEL
E SUBESTIMA OS LEITORES

Enquanto isto, a Folha de S. Paulo foi ouvir dois militares reformados que só repisaram as mentiras propaladas pelas Forças Armadas desde os massacres, mas que foram totalmente desmascaradas a partir da redemocratização: o coronel Gilberto Airton Zenkner e o tenente-coronel Lício Augusto Ribeiro Maciel (assinantes da Folha ou do UOL podem acessar a íntegra aqui e aqui).

Para quê? Para nada. Deus e o mundo já sabiam das execuções. As únicas novidades das revelações de Curió foram o número exato dos executados (pensava-se que fossem menos) e a admissão da verdade por assassino categorizado.

Quem ainda quer ouvir essa conversa-pra-boi-dormir? Vejam, p. ex., a singela justificativa do tal Zenker para o sumiço que os militares deram nos restos mortais dos guerrilheiros executados (para quem acreditar nesta lorota, estou vendendo terrenos em Marte...):
"Numa guerra na selva, não havia muitas condições de sair carregando um corpo. Quando havia um combate, se fazia um buraco e se enterrava [o corpo] ali no mato mesmo. Depois era difícil achar".
Só um trecho não foi desperdício de papel e agressão à inteligência dos leitores, aquele que estabeleceu a hierarquia dos assassinos seriais:
"De acordo com Lício, a cadeia começava no presidente da República, Emílio Médici, passava pelo ministro do Exército, Orlando Geisel, pelo general Milton Tavares de Souza, comandante do CIE (Centro de Informações do Exército), e chegava ao chefe da seção de operações do CIE, coronel Carlos Sérgio Torres.

"Torres enviava as ordens para as equipes de campo, em sintonia com seu superior, Tavares, depois substituído na chefia do CIE pelo general Confúcio Avelino. 'As ordens vinham de Médici, de Geisel, de Milton e de Torres. Os nossos relatórios faziam o caminho inverso', disse Lício'."
GASPARI CONTINUA REVOLVENDO O
LIXO ENSANGUENTADO DA DITADURA

De quebra, a Folha dominical ainda traz o colunista Elio Gaspari repetindo sua já totalmente demolida alegação sobre a participação de Diógenes Carvalho num atentado ao consulado estadunidense em 1968 (assinantes da Folha ou do UOL podem acessar a íntegra aqui):
"O cidadão que em 1968 perdeu a parte inferior da perna num atentado a bomba ao Consulado Americano recebe pelo INSS (por invalidez), R$ 571 mensais. Um terrorista que participou da operação ganhou uma Bolsa Ditadura de R$ 1.627".
Não vou perder meu tempo refutando de novo a falácia que já detonei em março/2008 (ver aqui) e fez com que o jornal da ditabranda fosse condenado a indenizar uma militante caluniada e Gaspari levasse uma humilhante reprimenda pública de um juiz em abril/2009 (ver aqui ):
"No caso em foco não se pode esquecer que a notícia inexata foi produzida por jornalista bastante respeitado por substancial obra em quatro volumes sobre a história recente do país, o que lhe impunha maior responsabilidade na divulgação de informações sobre aquele período."
Já que ele insiste em repetir essa bobagem que foi buscar nos Inquéritos Policiais-Militares da ditadura militar, fantasiosos e contaminados pela prática generalizada da tortura, só me resta repetir o juízo que então formulei sobre o Gaspari: "Como um mero araponga, ele se pôs a revolver o lixo ensanguentado da repressão".

E a Folha, se continuar nesse rumo, acabará não só à direita da Veja como, parafraseando o saudoso Paulo Francis, à direita até de Gengis Khan...

sábado, 27 de junho de 2009

IGREJA UNIVERSAL É DENUNCIADA À ONU: "DITADURA RELIGIOSA"

Os fiéis da Universal fecharam olhos, ouvidos e mentes não só às matérias da imprensa escrita, mas até ao vídeo da "divisão do butim" , que as tevês exibiram em horário nobre.

A Folha de S. Paulo informa que a Comissão de Combate à Intolerância Religiosa acaba de entregar ao presidente do Conselho de Direitos Humanos da Organização das Nações Unidas, Martin Uhomoibai, e à Secretaria de Promoção da Igualdade Racial "relatório que diz existir uma 'ditadura religiosa' promovida pelos neopentecostais no Brasil".

Vale a pena reproduzir os principais trechos da notícia (cuja íntegra só os assinantes da Folha e do UOL podem acessar) .
"O documento aponta a Igreja Universal do Reino de Deus como propagadora da intolerância religiosa no país, incitando a perseguição, o desrespeito e a 'demonização', especialmente da umbanda e do candomblé.

"...relata 15 casos atendidos pela comissão que se transformaram em 34 ações judiciais no Rio de Janeiro, além de três vítimas que vivem ameaçadas e outros 10 casos de intolerância religiosa em outros quatro Estados.

"A Igreja Universal do Reino de Deus, copiada por outras independentes, vem tentando intimidar a imprensa livre. Centenas de ações judiciais são movidas contra veículos de comunicação e profissionais da área", diz o relatório.

"Não estamos perseguindo ninguém, mas mostrando que a democracia corre risco. Estamos sendo demonizados em programas de rádio e TV", afirma Ivanir dos Santos, presidente da comissão.

"Segundo Ronaldo de Almeida, antropólogo da Unicamp, a Igreja Universal cresce combatendo outras religiões. Autor do livro 'A Igreja Universal e seus Demônios', ele defende que a igreja fortalece seu discurso a partir da relação que estabelece entre religiões afro e problemas financeiros ou na família. 'Seu discurso fica mais forte se demonizar os outros. Há, de fato, uma intolerância religiosa', explica Almeida."
Nada tenho a acrescentar ao que escrevi sobre o assunto em setembro último (acessar), sem que até agora tenham sido tomadas as providências cabíveis contra os exploradores da fé:
"A Igreja Universal do Reino de Deus (...) não se enquadra entre as religiões. Suas atividades estão, isto sim, capituladas no Código Penal: estelionato, curandeirismo e lavagem cerebral.

"Chocante é a omissão das autoridades brasileiras, pois tais práticas criminosas já foram diversas vezes flagradas e escancaradas na imprensa.

"Os crédulos que fecharam olhos e ouvidos a tudo que era mostrado - inclusive aquelas imagens repulsivas de Edir Macedo e cúmplices dividindo o butim - já não são cidadãos no sentido pleno da palavra: viraram zumbis, incapazes de pensar por si próprios e, portanto, de defender seus interesses.

"Precisam da proteção do Estado. Dificilmente a terão, enquanto os governos não prescindirem do apoio das bancadas neo-pentecostais para ganhar votações espúrias na esfera legislativa.

"No afã de arrancar até o último centavo dos pobres coitados que lhes caem nas garras, esses devotos do Bezerro de Ouro erigiram os cultos afro-brasileiros em bicho-papão, repetindo uma jogada manjada desde que os nazistas incendiaram o Reichstag e botaram a culpa nos judeus.

"Quem não tem valores positivos a oferecer, imanta seu rebanho por meio da rejeição a um inimigo sinistro, real ou imaginário."

sexta-feira, 26 de junho de 2009

A ESCOLINHA DO PROFESSOR GILMAR

Ninguém mais do que eu fica satisfeito quando a imprensa faz aquilo para que serve, disponibilizando a seu público a verdade que os poderosos prefeririam nunca ver exposta.

Assim é que a CartaCapital, de atuação tão incongruente no Caso Cesare Battisti, pelo menos mantém um posicionamento crítico em relação ao mais polêmico presidente do Supremo Tribunal Federal em todos os tempos.

Então, é com prazer que recomendo a leitura da notícia O empresário Gilmar prospera, no site da CartaCapital (acessar). Eis os trechos principais:
"Assumir a presidência do Supremo Tribunal Federal (STF) fez bem aos negócios de Gilmar Mendes. Desde que passou a ocupar o posto, sua escola, o Instituto Brasiliense de Direito Público (IDP) expandiu o número de contratos com órgãos públicos. Todos sem licitação. Em 2007, quando Mendes ainda era só ministro do STF, o IDP faturou 216,3 mil reais com esses convênios. No ano passado, a quantia subiu para 577,8 mil. E no primeiro semestre de 2009, o Tesouro já empenhou 597,8 mil para pagar os cursos oferecidos pelo instituto.

"No corpo docente do IDP, como se sabe, figuram, entre outros, procuradores da República, auditores fiscais e ministros dos tribunais superiores, inclusive do STF (...). Sem ligar para o conflito, o IDP costuma ministrar cursos nestes tribunais e repartições."
Não cometerei a leviandade de sugerir que, por serem remunerados para lecionar na escolinha do professor Gilmar, os ministros Eros Grau e Carlos Ayres Britto se alinharão com o presidente nas votações do STF, ou que José Antonio Toffoli adequará os pareceres da Advocacia-Geral da União à orientação arquirreacionária de Mendes.

Mas, convenhamos, nem tudo que é permitido deve ser feito. De cidadãos com responsabilidades tão elevadas nos Poderes da república temos o direito de esperar que, por comezinho bom senso, evitem o entrelaçamento de suas outras fontes de receita. Nem aquele "sujeito na esquina", tão desprezado por Mendes, ignora esta regrinha elementar que os luminares mandaram às favas.

E o comezinho bom senso deveria também prevalecer na contratação dos cursos do tal IDP por parte dos órgãos públicos. Mesmo que haja algum respaldo legal para a ausência de licitação, ficará sempre a suspeita de que a influência pesou mais do que a competência.

Aliás, é hilária a contratação de uma escola de Direito Público sem licitação, um dos pilares do Direito Público. Parece até piada de português...

quinta-feira, 25 de junho de 2009

COTAS RACIAIS, SIM OU NÃO?

Desde abril/2007 sou editorialista do site-jornal O Rebate.

Meu último editorial, Cotas Raciais têm bons resultados, frustrando os reacionários agourentos (acessar) foi replicado por Almir da Silva Lima, membro da coordenação nacional do Movimento Negro Socialista.

Seguem a contestação do Sr. Almir, Ex-guerrilheiro esquerdista, jornalista agora defende políticas compensatórias ‘raciais’!. E minha tréplica, Sectarismo e divisionismo atrapalham movimento negro num momento decisivo, para que cada leitor possa tirar suas conclusões.

EX-GUERRILHEIRO ESQUERDISTA, JORNALISTA
AGORA DEFENDE POLÍTICAS COMPENSATÓRIAS 'RACIAIS'!


Almir da Silva Lima

Ex-militante de uma organização opositora e armada à ditadura militar-fascista (1964-1985), um jornalista redigiu o texto “Cotas raciais têm bons resultados, frustrando os reacionários agourentos” defendendo políticas compensatórias ‘raciais’. Isto é, o militante que outrora se proclamava marxista-leninista, no fundo adepto das idéias do russo Josef Stalin (1879-1953), quando dizia ‘a luta anti-racista dos negros é uma questão secundária’ agora a defende como principal. Ou seja, ele passou a agir como ‘reacionário agourento’ defendendo sob o apelido de política compensatória ‘racial’ a conciliação entre capitalismo e racismo. É o que veremos neste texto.

Primeiro, o próprio jornalista concitou o debate ”Desde abril do ano passado quando 113 autoproclamados ‘cidadãos anti-racistas’entregaram ao Supremo Tribunal Federal (STF) um manifesto contra as leis raciais, eu lhes respondi com o artigo: As cotas raciais e os 113 tolos pomposos”; provocou. Na época optei por aguardar que o colega de redação no jornal O Rebate viesse a se esclarecer acerca da polêmica questão. Inclusive o convidei a participar como observador da IV Reunião Nacional do Movimento Negro Socialista (MNS) em São Paulo, dia 13 de maio passado quando, de manhã, ocorreu um Ato Público nas escadarias do Teatro Municipal.

Desde a época o jornalista se equivoca ao insinuar que a Frente Única (FU) do MNS com sindicalistas, artistas e intelectuais contra as leis ‘raciais’ é inspirada nas teses de um diretor de jornalismo da Rede Globo, de fato um burguês reacionário. Apesar de compreensível dado o estalinismo do jornalista, esclareço-lhe: De inspiração em Lênin (1870-1924) e Trotsky (1879-1940) o propósito de uma FU é específico. Para tanto, se juntam todos e todas contra uma determinada política burguesa (leis ‘raciais’). Nós do MNS não somos sectários. A incoerência é dos burgueses que estão na FU, contra tais interesses da classe social deles. Já o jornalista faz o contrário.

Por isso democraticamente sugiro ao jornalista ler e estudar a obra de Trotsky como o livro Nacionalismo Negro onde ele ensinou ‘A luta anti-racista dos negros no continente africano e na diáspora é específica, estratégica e indissociável da luta de classes; uma questão de princípio dos autênticos socialistas independentemente da cor da pele’. Leia também: Da editora Civilização o livro ‘Divisões Perigosas: Políticas raciais no Brasil contemporâneo’ redigido por integrantes da FU. Quanto ao livro ‘Racismo e Luta de Classes’ do coordenador nacional das fábricas ocupadas Serge Goulart, prefaciado pelo coordenador nacional do MNS José Carlos Miranda. A obra está esgotada, mas empresto-a, até a editora Marxista relançá-lo.

O jornalista se referenciou em um colunista-burguês de O Globo onde publicou dia 17 último o texto ‘A cota do sucesso da turma do ProUni’. É o mesmo que critiquei pelo texto publicado dia 03 do corrente ‘As cotas desmentiram as urucubacas’. Nele, o colunista utilizou a expressão preconceituosa ‘mandinga’ para maldizer àqueles que se opõem às políticas racialistas, isto é, se opõem às leis baseadas na hedionda ideologia e ou crença fundamentalista da existência de ‘raças’ entre os seres da espécie humana. Não por mera coincidência, a mesma coisa defende o jornalista com quem debato.

Assim foi dito, sendo o pensamento de ambos “Meu ponto-de-vista continua o de que as cotas, mesmo significando um avanço (e devendo, portanto, ser defendidas e mantidas), nunca passarão de um paliativo (sic), pois a verdadeira solução passa também pela igualdade de oportunidades no mercado de trabalho e na sociedade, bem como pelo melhor direcionamento dos esforços de todos, negros e brancos”. Isso é conciliação de capitalismo com racismo pregado claramente pelos dois jornalistas. Haja vista “Entre os partidários da competição insensível entre os seres humanos movidos pela ganância e os cidadãos decentes que procuram minorar as mazelas do capitalismo, eu me alinharei sempre com estes últimos. Mas, sem ilusões: As injustiças só serão realmente erradicadas quando o bem comum prevalecer sobre os interesses individuais, numa nova forma de organização social”; concluíram peremptoriamente.

As reivindicações do MNS e o seu slogan ‘Racismo e Capitalismo são os dois lados de uma mesma moeda’.

Como vimos essa ‘nova forma de organização social’ dos dois jornalistas significa a conciliação entre exploração (capitalismo) e opressão (racismo) expressa na célebre frase acima dita pelo herói negro e mártir internacional da Consciência Negra e conseqüentemente da luta anti-racista Stephen-Steve Bantu Biko (1946-1977). Tal frase é o slogan do Movimento Negro Socialista (MNS) desde a fundação em 13/05/2006. Baseado nela não me cansa repetir: A quase totalidade dos movimentos negros (brasileiros e internacionais) e seus aliados como os dois jornalistas são hipócritas quando falam combaterem o racismo. Então eles utilizam sofismas com estratégico e sectário propósito de fazer a aludida conciliação.

Na quase totalidade dos movimentos negros, tais sofismas são: Cotas ‘raciais’, discriminação positiva (sic), reparação, indenização e estatuto que pode ser de ‘igualdade civil’ ou de ‘igualdade racial’. Entretanto, não há unidade, sequer consenso entre eles para apelidar tudo como Ações Afirmativas (AAs). No entanto, para os dois jornalistas de O Globo AAs é que são o paradigma para conciliação entre capitalismo e racismo. Considero AAs novas roupagens da burguesa doutrina do filósofo estadunidense Charles Sanders Pierce (1839-1914) criadas durante a III Conferência Mundial contra o Racismo, Discriminação (étnico) Racial, Xenofobia e Intolerâncias Correlatas cujo evento foi realizado em 2001, na cidade de Durban, atual Azânia, ex África do Sul.

Denominado Plano Durban, esse suntuoso evento foi bancado pela Organização das Nações Unidas (ONU). No evento ocorreu um grande acordo entre a quase totalidade dos movimentos negros e variadas entidades que praticam a opressão imperialista, ainda que disfarçada de multilateralismo como a ONU, para fugir da inexorável luta de classes antiimperialista. Haja vista, a já mencionada célebre frase ensinada por Steve Biko, que é o nome dele mais conhecido na História. Para tanto, surgiu o que chamo de tumbeiro (antigo navio negreiro) do século XXI, onde embarcou a quase totalidade dos movimentos negros que vem a ser as já mencionadas políticas racialistas.

Concluindo, nós do MNS, propugnamos a otimização permanente de escolas e universidades públicas, gratuitas e de excelência na qualidade para todos e todas. Paralela e permanentemente o combate ao racismo deve ocorrer através da complementação da Lei 7716/1989 (Lei Caó) por tipificar racismo como crime inafiançável e imprescritível, prevendo cadeia para pessoa racista de até cinco anos. O que significa que as delegacias da polícia civil, quiçá da Polícia Federal, deve ser obrigatoriamente equipadas de um setor especializado no qual, os plantões diários, no mínimo e também obrigatoriamente tenham advogado, antropólogo e sociólogo para os registros das ocorrências.

SECTARISMO E DIVISIONISMO ATRAPALHAM
MOVIMENTO NEGRO NUM MOMENTO DECISIVO

Celso Lungaretti

Curtas e grossas, já que as tentativas de refutação a meu editorial Cotas Raciais têm bons resultados, frustrando os reacionários agourentos foram confusas e inconsistentes, eis minhas considerações sobre o texto Ex-guerrilheiro esquerdista, jornalista agora defende políticas compensatórias 'raciais'!:

1) "O militante que outrora se proclamava marxista-leninista" (isto é, eu) já quando participante da resistência à ditadura militar era um ferrenho anti-stalinista, tendo sido responsável pela caracterização da URSS como potência que priorizava os próprios interesses em detrimento dos da revolução mundial, no programa da Vanguarda Popular Revolucionária aprovado no congresso de Mongaguá (abril/1969).

Como redator do capítulo de Política Internacional, eu avaliei que a revolução brasileira nenhuma ajuda poderia esperar da União Soviética, exatamente por causa do seu desvirtuamento stalinista. Cheguei a tal conclusão lendo Isaac Deutscher, principalmente a trilogia dos Profetas e A Rússia Depois de Stalin. Além, é claro, da evidência factual fornecida pela repressão da Primavera de Praga.

Isso está relatado no meu livro Náufrago da Utopia (Geração Editorial, 2005), para quem quiser conferir. Foi um posicionamento sem similar na esquerda da época -- e que, à luz dos acontecimentos posteriores, revelou-se correto.

2) A simples releitura do meu artigo é suficiente para derrubar as afirmações inverídicas e sem nenhum fundamento sobre eu estar pregando a conciliação entre capitalismo e racismo. Parece que o Sr. Almir da Silva Lima não entendeu direito o que leu, mas os leitores de O Rebate certamente entenderão:

"...meu ponto-de-vista continua sendo o de que AS COTAS, mesmo significando um avanço (e devendo, portanto, ser defendidas e mantidas), NUNCA PASSARÃO DE UM PALIATIVO, POIS A VERDADEIRA SOLUÇÃO PASSA também pela igualdade de oportunidades no mercado de trabalho e na sociedade, bem como PELO MELHOR DIRECIONAMENTO DOS ESFORÇOS DE TODOS, NEGROS E BRANCOS.

"Entre os partidários da competição insensível entre seres humanos movidos pela ganância e os cidadãos decentes que procuram minorar as mazelas do capitalismo, eu me alinharei sempre com estes últimos. Mas, sem ilusões: AS INJUSTIÇAS SÓ SERÃO REALMENTE ERRADICADAS QUANDO O BEM COMUM PREVALECER SOBRE OS INTERESSES INDIVIDUAIS, NUMA NOVA FORMA DE ORGANIZAÇÃO SOCIAL.

3) Quando abordo uma questão em artigo, é porque já estou suficientemente esclarecido sobre ela. Então, minha participação no tal encontro para o qual o Sr. Almir me convidou seria inútil e, provavelmente, conflituosa.

4) O manifesto dos 113 tolos pomposos se baseia claramente na argumentação do livro Não Somos Racistas, de Ali Kamel. E foi para não ficarem antipatizados com o Kamel, diretor de jornalismo da Rede Globo, que alguns cidadãos com passado respeitável se colocaram, provavelmente a contragosto, na companhia do arquirreacionário Reinaldo Azevedo, como signatários do papelucho elitista.

5) Com todo esse blablablá sectário, o Sr. Almir não percebe o óbvio ululante, então vou explicar-lhe tintim por tintim.

Outros negros (que não os da corrente minoritária à qual ele pertence), após uma luta de décadas, conseguiram arrancar uma pequena concessão do capitalismo: o ingresso em cursos universitários aos quais não chegariam unica e tão-somente por não poderem bancar os melhores cursinhos. No entanto, uma vez conquistada a vaga, estão mostrando desempenho equivalente ao dos estudantes brancos.

A presença dos negros nas universidades públicas certamente reforçará o contingente dos estudantes que, por sua própria vivência, serão mais sensíveis às agruras do povo brasileiro e mais propensos a lutarem para erradicá-las, daí a sanha furibunda com que os reacionários estão combatendo esta pequena conquista.

Ao invés de juntar-se aos direitistas para fechar essa brecha, o tal Movimento Negro Socialista deveria é lutar para que ela fosse alargada, de forma que pudessem entrar nas universidades públicas outros estudantes pobres (inclusive os brancos), independentemente de vestibulares distorcidos pela máfia dos cursinhos e seus artifícios para desequilibrar a disputa em favor dos que podem pagar as caríssimas mensalidades por ela cobradas.

É pena que uma pirraça entre tendências do movimento negro esteja atrapalhando a luta para preservar essa conquista obtida a duras penas.

Vale também lembrarmos que uma nova derrota dos movimentos sociais só servirá para reforçar a ofensiva reacionária que hoje se articula em torno do Supremo Tribunal Federal de Gilmar Mendes.

E é exatamente por estarmos próximos do julgamento, no STF, das duas ações de inconstitucionalidade das cotas raciais em favor das quais os 113 tolos pomposos fazem seu repulsivo lobby, que o divisionismo deve ser mais enfaticamente repudiado.

Já que o Sr. Almir fez tanta questão de citar o Trotsky, é oportuno recordarmos o tratamento que o grande revolucionário russo deu a Zinoviev e Kamenev, quando estes, por discordarem da decisão do Partido Bolchevique de tomar o poder em outubro/1917, foram denunciá-la na imprensa burguesa, com o risco de alertar o inimigo sobre o que se planejava: mandou-os para a lata de lixo da História, qualificando-os de "fura-greves da revolução".

segunda-feira, 22 de junho de 2009

ARAGUAIA: CURIÓ ADMITE EXECUÇÃO DE 41 GUERRILHEIROS APRISIONADOS COM VIDA

"Canta, canta passarinho,
canta, canta miudinho
na palma da minha mão"
("Canta Coração", Geraldo
Azevedo/Carlos Fernando
)

Não há nada de realmente inédito na entrevista que Sebastião Curió Rodrigues de Moura, o major Curió, concedeu a O Estado de S. Paulo neste domingo, 21 (Curió revela que Exército executou 41 no Araguaia) ou nos arquivos que ele entregou ao jornal.

A contabilidade macabra agora tem cifras exatas, fornecidas pelo próprio comandante das operações de cerco e extermínio dos guerrilheiros, em 1973/75: de 67 militantes que as Forças Armadas mataram no Araguaia, foram 41 os aprisionados com vida e eliminados a sangue frio ("amarrados e executados, quando não ofereciam risco às tropas", explicita a reportagem). Acreditava-se que fossem "só" 25.

O jornal constata que a verdade admitida por Curió "contraria a versão militar de que os mortos estavam de armas na mão na hora em que tombaram". E acrescenta: "Muitos se entregaram nas casas de moradores da região ou foram rendidos em situações em que não ocorreram disparos".

A extrema-direita passa a vida derramando lágrimas de crocodilo sobre o túmulo do tenente Alberto Mendes Júnior, morto para não fornecer informações que dificultassem ainda mais a fuga de Lamarca e seu punhado de guerrilheiros, cercados por milhares de militares em Registro, SP.

Embora condenável, inaceitável e injustificável, foi uma decisão tomada em circunstâncias extremas. Bem diferente de, ao arrepio das Convenções de Genebra e da honra militar, abaterem-se, de caso pensado e como cães, 41 seres humanos indefesos -- afora tantos outros exterminados da mesma forma nas cidades, como as vítimas da Casa da Morte de Petrópolis (RJ).

Revirou-me o estômago ficar sabendo do destino dado aos restos mortais de Antonio Ribas, que conheci em 1968 como presidente da União Paulista de Estudantes Secundários. Um rapaz grandalhão, simpático e bonachão, que conseguia manter a ordem nas assembléias estudantis com sua voz forte — mesmo tendo a desvantagem de ser o único militante do PCdoB entre dezenas de adversários. Ninguém o imaginaria no papel de guerrilheiro.

“Morto em 12/1973. Sua cabeça foi levada para Xambioá” - esta curta citação do arquivo de Curió esclarece o que foi feito de um um homem idealista a ponto de engajar-se, no pior momento, numa luta desigual e quase suicida. Nem seu cadáver respeitaram, profanando-o como os jagunços faziam com os cangaceiros.

Exatidão dos detalhes à parte, já se sabia de tudo isso. E também que as ordens para que fossem perpetradas as atrocidades provinham dos altos escalões, como sempre ressaltei ao refutar a lorota de que os subalternos agiam por conta própria. Eis o que o Estadão informa:
"O arquivo dá indicações sobre a política de extermínio comandada durante os governos de Emílio Garrastazu Medici e Ernesto Geisel por um triunvirato de peso. Na ponta das ordens estiveram os generais Orlando Geisel (ministro do Exército de Medici), Milton Tavares (chefe do Centro de Inteligência do Exército) e Antonio Bandeira (chefe das operações no Araguaia). Curió lembra que a ordem dos escalões superiores era tirar de combate todos os guerrilheiros. “A ordem de cima era que só sairíamos quando pegássemos o último.”
Fica, mais uma vez, comprovado que não se fará verdadeira justiça punindo-se apenas os executantes dessas ordens hediondas e poupando-se os mandantes.

Os Curiós e Ustras da vida não passavam de instrumentos de uma política sanguinária ordenada por Médici e, no mínimo, consentida por Geisel, com a cumplicidade de toda a cadeia de comando das Forças Armadas e propiciada pelo prévio estupro da Constituição cometido pelos signatários do AI-5. Repugna à minha consciência ver só os lambaris na berlinda, enquanto os tubarões continuam aclamados a ponto de manterem colunas na grande imprensa.

É positivo que as revelações e indicações de Curió eventualmente venham a propiciar a descoberta de mais algumas ossadas e a identificação de outras.

Mas, tudo isto já poderia ter sido feito no ano passado, se houvesse mais empenho oficial em dar satisfações às famílias sem mortos para enterrar e/ou sem informações precisas sobre o destino de seus entes queridos.

Pois, em sua edição de 27/02/2008, a IstoÉ já alertara o Governo, a partir do próprio título de sua matéria: Este homem sabe onde estão os cadáveres do Araguaia (acessar).

O homem, claro, era o próprio Curió. Eis o relato da revista:
"...com o cerco dos militares, os guerrilheiros foram empurrados para um recuo no Castanhal dos Ferreira. De lá, eles se dirigiram para a região da Palestina. Neste local, no Natal de 1973, iniciou-se a fase final do combate na qual as forças do governo mataram mais de 20 guerrilheiros antes do Réveillon. “O pessoal dos direitos humanos fica procurando corpos em Xambioá (base militar), mas muitos corpos estão enterrados na Palestina, que na época era uma vila com uma rua de terra”, revela. Contra essa declaração, existe o fato de que sua comprovação custaria caro. Daquela vila, a 286 quilômetros de Belém, nasceu uma cidade que hoje conta com 7.500 habitantes. E para revirar o solo seria preciso demolir casas e esburacar ruas."
Curió também deu, então, esta declaração sintomática à IstoÉ: "Eu não tenho o direito de levar para a sepultura os dados que tenho e que eu sei”.

Ou seja, estava ansioso para contar tudo que sabia. Bastaria que lhe perguntassem.

Mas, como a repercussão do que sai na IstoÉ não é nem de longe comparável à do Estadão dominical, as autoridades preferiram fazer ouvidos de mercador, evitando mexer nesse vespeiro.

Afinal, além das despesas com demolições e escavações, há o fato de que cada ossada trazida à luz (do dia e dos flashes...) representará uma acusação gritante à bestialidade da ditadura militar. Muitos ainda preferem o silêncio.

domingo, 21 de junho de 2009

DIPLOMA DISPENSÁVEL: JÂNIO DE FREITAS ACUSA O STF DE "DEMAGOGIA"

O relator foi o Gilmar Mendes. O que
mais os jornalistas poderiam esperar?


Aos 73 anos, Jânio de Freitas conserva a lucidez e a coragem com que resistia à ditadura militar no saudoso Correio da Manhã (RJ), como membro de uma redação que escreveu página gloriosa do jornalismo brasileiro.

Sua coluna de hoje, A liberdade das más razões, foi no sentido contrário à desfaçatez e tendenciosidade com que a imprensa burguesa (hoje mais burguesa do que nunca!) saudou o fim da obrigatoriedade de diploma para o exercício da profissão de jornalista. E veio ao encontro de várias posições que eu sustentei no meu artigo Jornalistas: uma batalha perdida e uma guerra por travar.

Recomendando a leitura integral (acessar), reproduzo os principais trechos:
"...a obrigatoriedade de algum curso universitário, não importa qual, seguida de um curso intensivo de introdução aos princípios e técnicas do jornalismo, seria a fórmula mais promissora para a melhor qualidade dos meios de comunicação.

"É um argumento rústico a afirmação de que diploma obrigatório de jornalismo desrespeita a Constituição, por restringir o direito à liberdade de expressão. É falsa essa ideia de que o jornalismo profissional seja o repositório da liberdade opinativa. (...) a muito poucos, nos milhares de jornalistas, é dada a oportunidade de expressar sua opinião, e a pouquíssimos a liberdade incondicional de escolha e tratamento dos seus temas.

"A matéria-prima essencial do jornalismo contemporâneo não é a opinião, é a notícia. (...) A grande massa da produção dos jornalistas profissionais não se inclui, nem remotamente, no direito à liberdade de expressão. Há desvios, claro, mas a interferência de formas opinativas no noticiário serve, em geral, à opinião e a objetivos (econômicos ou políticos) da empresa.

"Os colaboradores, não profissionais de jornalismo, são os grandes praticantes do direito de liberdade de expressão nos meios de comunicação. E nunca precisaram de diploma de jornalista. A extinção da exigência de diploma em nada altera as possibilidades, as condicionantes e as limitações da liberdade de expressão na produção do jornalismo. Altera o que chamam de mercado de trabalho para os níveis iniciais do profissionalismo. Para os níveis mais altos, há muito tempo as empresas adotaram artifícios para dotar suas redações de diplomados em outras carreiras que não o jornalismo.

"Com o diploma, extinto à maneira de um portão derrubado e dane-se o resto, o STF eliminou sem a menor consideração o efeito moralizante, não só para o jornalismo, trazido sem querer pela exigência de curso. Efeito sempre silenciado. Deu-se que os anos de faculdade e seu custo desestimularam a grande afluência dos que procuravam o jornalismo, não para exercê-lo, mas para obter vantagens financeiras, sociais e muitas outras. Tal prática sobreviveu à exigência do curso, porém não mais como componente, digamos, natural do jornalismo brasileiro.

"O julgamento do recurso antidiploma trouxe uma revelação interessante, no conceito que a maioria do Supremo e os advogados da causa mostraram fazer da ditadura. Segundo disseram, já a partir do relatório de Gilmar Mendes, o decreto-lei com a exigência de diploma era um resquício da ditadura criado, em 69, para afastar das redações os intelectuais e outros opositores do regime. Ah, como eram gentis os militares da ditadura. Repeliram a violência e pensaram em uma forma sutil, e legal a seu modo, de silenciar os adversários nos meios de comunicação, um casuísmo constrangido.

"Nem que fosse capaz de tanto, a ditadura precisaria adotá-lo. Sua regra era mais simples: a censura e, se mais conveniente, a prisão.

"O julgamento no STF dispensou a desejável associação entre direito à liberdade de expressão e, de outra parte, recusa a argumentos inverazes. A boas razões preferiu a demagogia."

sábado, 20 de junho de 2009

AIATOLÁ AMEAÇA DESENCADEAR BANHO DE SANGUE NO IRÃ

Para me poupar de intermináveis e chatíssimas discussões com cidadãos que pensam estar se comportando como revolucionários ao defenderem tiranetes atrabiliários e dinastias feudais, não dei o nome aos bois no meu artigo de ontem, embora fosse facílimo de se perceber a quem eu me referia quando lembrei que Marx, inimigo implacável do capitalismo, sempre defendeu as revoluções burguesas quando se tratava de acabar com o feudalismo.

O velho barbudo via a trajetória da humanidade como uma marcha para o progresso, não admitindo que, para combaterem o inimigo atual, seus discípulos apoiassem a brutalidade passada, o obscurantismo e as trevas cujo único lugar apropriado era -- e é -- a lata de lixo da História.

Mas, agora essa figura grotesca que é o aiatolá supremo do Irã ameaça desencadear um banho de sangue contra os que denunciam fraude eleitoral. Em nações que vivem plenamente o século XXI, essa questão se resolve de maneira simplérrima, com uma transparente recontagem dos votos. Ninguém precisa morrer por tão pouco.

Então, a coisa agora mudou de figura, pois não posso compactuar, e nunca compactuarei, com massacres e genocídios.

Afirmo, portanto, com todas as letras que a causa da verdadeira esquerda é a causa da civilização, com a qual nada tem a ver um ultraconservador como o presidente Mahmoud Ahmadinejad; e que seu antagonismo a Israel não é razão suficiente para impor-se ao povo iraniano a continuidade do intolerante e retrógrado regime dos aiatolás.

Disse e repito: só a união dos povos da região permitirá que tenham êxito no enfrentamento a Israel. E essa união jamais se dará sob o primado de mandatários feudais que priorizam sua permanência no poder e temem que, armando o povo para o combate a Israel, as armas acabem se voltando contra eles.

Então, aquilo de que o Irã mais carece é livrar-se dos aiatolás ensandecidos e dos presidentes ultraconservadores. O acerto de contas com Israel vem depois.

sexta-feira, 19 de junho de 2009

GENOÍNO DETONA CASUÍSMO DO 3º MANDATO

Na década de 1960, havia no centro de São Paulo pelo menos três grandes livrarias especializadas em literatura revolucionária: a Brasiliense, na rua Barão de Itapetininga, além de duas outras cujo nome não recordo, localizadas na praça da República e na rua Aurora.

E, nas demais livrarias, as prateleiras de livros marxistas e revolucionários nunca deixavam de ser imponentes e destacadas.

Nelas, encontrávamos todas as posições pertencentes ao campo da esquerda. Lado a lado nas prateleiras, trotskistas e stalinistas, guevaristas e gramscianos, maoistas e marxistas católicos, etc.

Os lançamentos eram constantes, dezenas por mês, de editoras como a própria Brasiliense, a Paz e Terra, a Civilização Brasileira, etc.

Nos bares com mesas na calçada, como o famoso Redondo, esses livros teóricos eram discutidos exaustivamente, bem como os romances, filmes, peças e músicas com viés revolucionário.

As argumentações esgrimidas nessas frequentes polêmicas, travadas igualmente nas faculdades ligadas ao ensino de humanidades, eram buscadas em longos e brilhantes artigos analíticos, publicados, p. ex., na Revista da Civilização Brasileira e na Artes (além dos textos de publicações ecléticas mas abertas aos enfoques alternativos, como a nascente Realidade).

Ainda estão vivas na minha memória as verdadeiras maratonas de discussões deflagradas pela estréia de filmes como Terra em Transe, de Glauber Rocha, e A Chinesa, de Jean-Luc Godard.

O certo é que a minha geração conseguia captar a realidade em todas as suas cores e nuances, depois das quatro décadas (entre a de 20 e a de 50) de prevalência do rude preto-e-branco stalinista, o monolitismo do quem não é a nosso favor, é contra nós.

Para a maioria dos progressistas dos anos 60, o marxismo se identificava com o avanço da sociedade a um estágio superior de civilização, conforme a formulação original de Marx.

Não nos colocávamos automaticamente ao lado de qualquer tiranete obscurantista que porventura estivesse em confronto com os interesses dos EUA ou de Israel, nem endossávamos automaticamente casuísmos que pudessem nos beneficiar no curto prazo.

Então, é com desalento que eu vejo hoje parte da esquerda alinhada com figuras políticas que Marx decerto repudiaria como representantes do atraso e até da barbárie -- ele que sempre combateu o capitalismo do ponto-de-vista do socialismo que o substituiria, mas sempre apoiou as revoluções burguesas quando se tratava de substituir o feudalismo.

Ao invés de tratar os direitos humanos como perfumarias, o velho barbudo escrevia páginas as mais candentes sobre a sociedade dos seus sonhos, em que cada homem poderia desenvolver plenamente suas potencialidades, livre dos grilhões da necessidade; em que cada proletário teria as condições e os meios para se tornar um novo Goethe ou Beethoven.

Esta reflexão melancólica me foi inspirada por muitos episódios e posturas de passado recente -- tantos que nem vale a pena citar.

E por uma notícia desta 6ª feira: a de que o deputado José Genoíno, como relator da proposta de emenda constitucional que permitiria um 3º mandato para o presidente Luiz Inácio Lula da Silva, recomendou seu arquivamento, tanto por se chocar com cláusulas explícitas da Constituição, quanto porque "agride o senso comum de Justiça e razoabilidade ao pretender aplicar-se aos atuais detentores de mandato eletivo, alterando regras do jogo político em andamento no intuito de favorecer determinados resultados".

Houve um tempo em que nem sequer passaria pela cabeça de esquerdistas a hipótese de uma virada de mesa para conservarem um governo, ao preço de oferecerem aos inimigos a incontestável superioridade moral e um magnífico trunfo propagandístico. A conquista dos corações e mentes era o que vinha em primeiro lugar, não a posse dos aparelhos do poder.

Agora, no entanto, existem companheiros que, parafraseando a frase célebre do futebolista Gerson, querem mais é levar vantagem, certo?

Felizmente, Lula e os dirigentes do PT não se deixaram tentar pelo canto das sereias.

Caso contrário, eles e nós correríamos o risco de afogarmo-nos ou sermos devorados, que eram os destinos reservados aos marinheiros imprudentes: a direita não brinca em serviço e aproveitaria muito bem a chance para, a pretexto de evitar a presidência eterna do Lula, articular uma nova quartelada.

quinta-feira, 18 de junho de 2009

JORNALISTAS: UMA BATALHA PERDIDA E UMA GUERRA POR TRAVAR

Catedral da Sé, 1975: missa para Vladimir Herzog

A decisão do Supremo Tribunal Federal, derrubando a exigência de diploma específico para o exercício da profissão de jornalista, foi o coroamento de uma comédia de erros que merecia ser filtrada pelo talento superior de um Sérgio Porto.

Infelizmente, já não existe quem consiga dar o tratamento adequado ao Festival de Besteiras que Assola o País, como fazia seu heterônimo Stanislaw Ponte Preta.

Nem alguém capaz de transmitir fielmente o horror e o nojo que o Brasil oficial inspira nos homens civilizados, como o grande Glauber Rocha fez em Terra em Transe.

Reconhecendo de antemão não estar à altura da tarefa, tentarei cumpri-la assim mesmo. O pior é sempre a omissão.

Em tese, concordo plenamente com a avaliação feita há décadas pelo Paulo Francis: o jornalista precisa é de uma sólida formação cultural, principalmente nas áreas de história, sociologia, psicologia, política, antropologia, filosofia e artes.

Já para o aprendizado das técnicas jornalísticas, bastaria um mês (dois, no máximo, para os menos brilhantes) num liceu de artes e ofícios.

Só que a formação de cidadãos, no sentido maior do termo, há muito deixou de ser priorizada pelas universidades brasileiras. Ensinam-se, exatamente, as técnicas, as ferramentas, as ninharias.

Por quê? Pelo óbvio motivo de que ao capitalismo atual não interessa formar indivíduos com capacidade crítica e visão universalizante, aptos a refletir sobre o conteúdo e as conseqüências de sua atuação, mas, tão-somente, apertadores de parafusos que cumpram as tarefas que lhes são designadas sem as contestarem.

Então, não vejo o motivo de tanta obstinação da federação e dos sindicatos de jornalistas em defenderem diplomas que hoje são fornecidos a granel por instituições mercenárias.

UM VILÃO BEM PIOR: A FALSA TERCEIRIZAÇÃO

Muito mais danosa aos jornalistas profissionais é a falsa terceirização contra a qual a federação e os sindicatos nem de longe mostraram empenho semelhante.

Hoje, raras empresas de comunicação registram seus funcionários fixos como os assalariados que são. Dão-nos como prestadores de serviços, obrigando-os a emitir mensalmente notas fiscais para receberem seus pagamentos.

Um novo artifício é apresentá-los como sócios, com uma participação irrisória (coisa de 0,1%) no capital da empresa servindo para justificar retiradas (pro labore) de milhares de reais.

Esses acordos fraudulentos são simplesmente impostos a quem quer trabalhar em tais empresas, sob o pretexto de que as duas partes lucrarão com a burla à legislação trabalhista. É pegar ou largar.

Quem pega, acaba recebendo um pouco mais do que auferiria com o registro em carteira, mas fica totalmente vulnerável aos caprichos da empresa. Pode ser expelido quando bem entenderem os patrões; quanto muito, pagam-lhe um mês a mais.

E, se sofrer um acidente ou doença incapacitante, terá de se virar por sua própria conta. Capitalismo mais selvagem, impossível.

As vítimas dessas chantagens e arbitrariedades podem, é claro, recorrer à Justiça Trabalhista. Eu o fiz, em fevereiro de 2004.

Estou esperando há exatos 64 meses que a burocracia insensível e letárgica faça valerem meus direitos; ainda não existe solução à vista. Se dependesse unicamente disso, estaria morando debaixo da ponte.

Ademais, quem faz o que é certo corre sempre o risco de ter seu nome queimado no mercado. A informação é repassada às outras empresas que atuam naquele segmento e as portas se fecham.

Disto decorre que dificilmente os profissionais jovens ousam buscar seus direitos na Justiça, embora, na maioria dos casos, a sentença favorável seja favas contadas – mas, claro, somente no final da linha, após mil e umas manobras protelatórias.

E a insegurança quanto à continuidade de sua atuação na empresa faz com que a maioria dos jornalistas se submeta a trair seu compromisso com o resgate e a disponibilização da verdade, limitando-se a servir como correia de transmissão das mentiras patronais (ditabrandas, fichas falsas, unilateralidade no tratamento de episódios como os de Cesare Battisti e da bestialidade policial na USP, etc.).

ESCRAVOS COM DIPLOMA SUPERIOR

Afora acumpliciarem-se com a verdadeira blindagem que foi estabelecida contra as versões/visões alternativas e aqueles que as expressam, os jornalistas amedrontados estão também consentindo com a superexploração da sua jornada de trabalho.

No caso da grande imprensa, isto prejudica tanto a eles quanto aos leitores:
  • os repórteres cumprem pautas demais;
  • não as apuram devidamente;
  • fazem quase todas as entrevistas por telefone ou e-mail, sem o olho-no-olho que facilita o desmascaramento dos mentirosos e manipuladores;
  • comem na mão de assessorias de comunicação, aproveitando o material que delas recebem e os serviços por elas prestados, sem levarem em conta que tais empresas estão longe de ser confiáveis, pois defendem os interesses dos seus contratantes e não o interesse público;
  • cumprem horas extras que dificilmente são pagas e que, com a seqüência e o acúmulo, acabam acarretando perda de qualidade do seu trabalho;
  • etc.
Chega a ser um escárnio que, depois de não reagirem à altura quando nossa profissão marchava para tal aviltamento, a federação e os sindicatos estejam agora movendo céus e terras para tentarem preservar um diploma cuja obrigatoriedade não impediu que chegássemos ao fundo do poço.

Por outro lado, isso é compreensível. A proporção de jornalistas sindicalizados diminui ano a ano, mesmo porque a categoria está preferindo aceitar os descalabros do que lutar contra eles onde a luta tem de obrigatoriamente começar: no ambiente de trabalho. O medo é mau conselheiro.

Então, se não conseguem levantar os jornalistas contra a falsa terceirização, as péssimas condições de trabalho e o descumprimento de seu compromisso com a verdade por força das imposições e intimidações patronais, os sindicatos sabiam que todos os apoiariam nessa cruzada para limitar o ingresso de mais competidores num mercado que já tem oferta excessiva de mão-de-obra.

Quem luta pelo pouco acaba conseguindo nada. Bem melhor era a postura dos estudantes parisienses em 1968: "Sejamos realistas, peçamos o impossível!".

PATRÕES AGORA SALGAM A TERRA ARRASADA

Quanto aos motivos dos patrões, também são tudo, menos nobres. O que o Sindicato das Empresas de Rádio e Televisão de São Paulo visava, ao acionar o STF, era fragilizar ainda mais a categoria, não só para que aceitasse menor remuneração e piores condições de trabalho, como também para que admitisse resignadamente a presença cada vez mais acentuada de celebridades (mesmo que boçais e analfabetas) exercendo funções restritas a jornalistas.

As entidades que hoje comemoram a decisão, como a Associação Nacional de Jornais e a Associação Brasileira de Emissoras de Rádio e TV, dão um bom referencial do que sejam os donos da mídia: não só dizimaram o jornalismo, como agora salgam a terra que o produzia, na esperança de que nela nada mais brote.

Apesar de já terem quebrado a espinha da categoria, fazem questão de reduzi-la a uma situação mais degradante ainda. Querem ter um exército profissional de reserva permanentemente à sua disposição, para manterem ainda mais aterrorizados e submissos os que os servem.

E é chocante que ministros do STF tenham engolido, ou fingido engolir, a falácia de que a exigência do diploma atentava contra a liberdade de expressão.

A imprensa burguesa sempre concedeu todos os espaços possíveis e imagináveis aos porta-vozes da burguesia e aos defensores das posições sintonizadas com os interesses capitalistas.

Quanto aos inimigos, nunca a tiveram. Até mesmo os direitos de resposta e de apresentar o outro lado não vêm sendo verdadeiramente respeitados há muitos anos.

A liberdade de expressão é concedida pela grande imprensa a quem expressa aquilo com que ela concorda. Trabalhar ou não em seus veículos dá no mesmo. Neles o jornalista escreve o que lhe mandam ou o que lhe permitem, não o que ele quer.

Outra bobagem foi a afirmação do procurador-geral da República, Antonio Fernando de Souza, segundo quem “muitas notícias e artigos são prejudicados porque são produzidos apenas por um jornalista especialista em ser jornalista, sendo que em muitos casos essa informação poderia ter sido produzida por um jornalista com outras formações, com formação específica em medicina, em botânica”.

Nada impedia que, havendo um acontecimento relevante na área de medicina ou botânica, um especialista fosse contratado para escrever um artigo a esse respeito, apresentando o seu ponto-de-vista de autoridade no assunto.

Quanto a uma reportagem, envolvendo entrevistas, pesquisas, estatísticas, checagens, etc., um “especialista em ser jornalista” certamente se desincumbirá melhor da tarefa, pois tem o hábito de dar peso equivalente às várias correntes com avaliações diferentes de um mesmo fato ou fenômeno.

Ou seja, o médico e o botânico tendem a, até involuntariamente, favorecerem a posição que compartilham. O jornalista só se preocupa em expor corretamente as várias posições existentes, deixando ao leitor a conclusão.

Piores ainda foram os disparates ditos pelo relator Gilmar Mendes (logo quem!). Por exemplo:
"A profissão de jornalista não oferece perigo de dano à coletividade tais como medicina, engenharia, advocacia. Nesse sentido, por não implicar tais riscos, não poderia exigir um diploma para exercer a profissão”.
O que acontece à coletividade se um jornalista incompetente cria pânico no mercado? Milhares e milhares são lesados, empresas quebram, trabalhadores ficam na rua da amargura, velhinhos perdem seu pé-de-meia.

E mesmo quando a honra de um cidadão é injustamente atingida, isto não é grave? Os proprietários da Escola-Base não estiveram próximos de ser linchados, devido ao estardalhaço feito a partir de meras suspeitas de pedofilia? Não há pessoas que morrem ou se matam quando são vítimas desses enganos?

"PORQUE NADA TENEMOS, LO HAREMOS TODO!"

Enfim, a constatação de que a má fé e/ou inconseqüência permearam essa decisão não vai alterá-la nem aumenta as chances de que venha a ser revogada. Pelo contrário, tudo indica que esteja aí para ficar.

Mas, a luta para restabelecermos a dignidade da profissão de jornalista não terminou, mesmo porque essa nunca foi a principal trincheira.

Importante mesmo é nos compenetrarmos de que jornalismo, muito mais do que profissão, sempre foi missão: um compromisso de tornarmos a verdade acessível aos que não têm os meios para buscá-la por si mesmos.

Num país com carências tão dramáticas e situações tão aflitivas, conta muito mais o destino do nosso povo que o de nós mesmos. Ou deveria contar.

Fomos impedidos de cumprir nossa missão e nos resignamos à impotência. Com isto, nossa profissão também foi levada de roldão e está cada dia mais desvalorizada.

Se quisermos reverter esse processo, teremos de dar os passos certos. Não olharmos para nosso umbigo e tentarmos sensibilizar a comunidade para nos ajudar a defender nossos interesses. Mas sim fazendo que os interesses da comunidade e os nossos voltem a coincidir.

Quando um terremoto destruiu a infraestrutura com que o Chile contava para a realização do Mundial de futebol de 1962, o grande dirigente Carlos Dittborn Pinto descartou a desistência, lançando a frase célebre que motivou seu povo a empreender um esforço descomunal para honrar o compromisso assumido: “Porque nada tenemos, lo haremos todo!”.

Os jornalistas nada temos agora, mas podemos reconstruir tudo, se reencontrarmos a dignidade e a combatividade que não nos faltaram na luta contra a ditadura militar -- quando, aliás, nossos inimigos diferiam nos métodos, mas eram, essencialmente, os mesmos.

quarta-feira, 17 de junho de 2009

COTAS RACIAIS TÊM BONS RESULTADOS, FRUSTRANDO OS REACIONÁRIOS AGOURENTOS

Charge de CLEUBER (clique para ampliar)
http://www.tracodeguerrilha.blogspot.com/
Em abril do ano passado, 113 autoproclamados "cidadãos anti-racistas" endereçaram uma carta ao presidente do Supremo Tribunal Federal Gilmar Mendes para fazer lobby contra o programa ProUni e a instituição de cotas raciais compensatórias em vestibulares para universidades estaduais.

O movimento foi visivelmente inspirado nas teses de Ali Kamel, diretor de Jornalismo da Rede Globo e autor de Não Somos Racistas, livro de cabeceira de alguns dos piores porta-vozes da direita golpista na mídia brasileira.

Foi até constrangedor vermos, ao lado dos Reinaldos Azevedos da vida, alguns intelectuais e artistas que admirávamos ou, pelo menos, tinham nosso respeito: Caetano Veloso, Ferreira Gullar, Gerald Thomas, João Ubaldo Ribeiro, José Goldemberg e Nelson Motta, dentre outros.

Igualmente constrangedora foi a intenção evidente de, usando o peso de suas assinaturas, pressionarem o STF a tomar decisão favorável a dois questionamentos judiciais das cotas reparatórias:
"Duas ações diretas de inconstitucionalidade (ADI 3.330 e ADI 3.197) (...) serão apreciadas proximamente pelo STF. Os julgamentos terão significado histórico, pois podem criar jurisprudência sobre a constitucionalidade de cotas raciais não só para o financiamento de cursos no ensino superior particular e para concursos de ingresso no ensino superior público como para concursos públicos em geral. Mais ainda: os julgamentos têm o potencial de enviar uma mensagem decisiva sobre a constitucionalidade da produção de leis raciais".
Além disto, eles divulgaram um longo manifesto, com trechos beirando o ridículo, de tão alarmistas: “as cotas raciais (...) ocultam uma realidade trágica e desviam as atenções dos desafios imensos e das urgências, sociais e educacionais”; “passam uma fronteira brutal no meio da maioria absoluta dos brasileiros”; "um Estado racializado estaria dizendo aos cidadãos que a utopia da igualdade fracassou", etc.

De bate-pronto, respondi-lhes com meu artigo As cotas raciais e os 113 tolos pomposos ( http://celsolungaretti-orebate.blogspot.com/2008/05/as-cotas-raciais-e-os-113-tolos.html ), criticando-os por estarem fazendo muito barulho por nada:
"O fato é que, em meio às terríveis distorções que o ensino superior vem sofrendo em função de seu atrelamento aos interesses capitalistas – começando por sua ênfase na especialização castradora que forja meros profissionais, desprezando a formação crítica e universalizante que engendra verdadeiros cidadãos –, eles magnificaram um problema menor, em detrimento, exatamente, 'dos desafios imensos' que dizem existir.

"Por que, afinal, nunca demonstraram idêntico empenho em relação a esses desafios imensos? A carapuça de estarem desviando as atenções do fundamental não lhes caberia melhor do que aos seus adversários?".
E lhes pedi que dessem tempo ao tempo, para que todos pudéssemos aquilatar qual seria o saldo dessa experiência:
"Para não embarcarmos numa discussão interminável e que talvez nem sequer comporte uma conclusão inequívoca, vamos admitir que negros e pobres tenham suas oportunidades reduzidas em função da desigualdade e da desumanidade que caracterizam o capitalismo no Brasil; e que os negros enfrentem dificuldades maiores ainda que as dos outros pobres.

"Então, para os seres humanos justos e solidários, pouco importa se os negros estão em desvantagem por causa da escravidão passada ou por encontrarem-se hoje sob o fogo cruzado do capitalismo e de um racismo dissimulado, mas não menos real. Merecem, sim, que os pratos da balança sejam reequilibrados em seu favor.

"Quanto à eficácia das políticas compensatórias, ela só poderá ser realmente aferida depois de um período razoável de implementação. Por que, afinal, abortarmos essa tentativa no nascedouro?".
Pois bem, a prova dos nove já foi tirada e o resultado está muito bem dissecado na coluna de hoje do Elio Gaspari, A cota de sucesso da turma do ProUni ( http://www1.folha.uol.com.br/fsp/brasil/fc1706200904.htm ), conforme se pode constatar nestes trechos:
"Ao longo dos últimos anos o elitismo convencional ensinou que, se um sistema de cotas levasse estudantes negros para as universidades públicas, eles não seriam capazes de acompanhar as aulas e acabariam fugindo das escolas. Lorota. Cinco anos de vigência das cotas na UFRJ e na Federal da Bahia ensinaram que os cotistas conseguem um desempenho médio equivalente ao dos demais estudantes, com menor taxa de evasão.

"...pela segunda vez em dois anos, o desempenho dos bolsistas do ProUni ficou acima da média dos demais estudantes que prestaram o Provão. Em 2004, os beneficiados foram cerca de 130 mil jovens que dificilmente chegariam ao ensino superior (45% dos bolsistas do ProUni são afrodescendentes, ou descendentes de escravos, para quem não gosta da expressão).

"O DEM (ex-PFL) e a Confederação Nacional dos Estabelecimentos de Ensino foram ao Supremo Tribunal Federal, arguindo a inconstitucionalidade dos mecanismos do ProUni. (...) O caso ainda não foi julgado pelo tribunal, mas já foi relatado pelo ministro Carlos Ayres Britto, em voto memorável. Ele lembrou um trecho da Oração aos Moços de Rui Barbosa: 'Tratar com desigualdade a iguais, ou a desiguais com igualdade, seria desigualdade flagrante, e não igualdade real'".
De resto, meu ponto-de-vista continua sendo o de que as cotas, mesmo significando um avanço (e devendo, portanto, ser defendidas e mantidas), nunca passarão de um paliativo, pois a verdadeira solução passa também pela igualdade de oportunidades no mercado de trabalho e na sociedade, bem como pelo melhor direcionamento dos esforços de todos, negros e brancos:
"Entre os partidários da competição insensível entre seres humanos movidos pela ganância e os cidadãos decentes que procuram minorar as mazelas do capitalismo, eu me alinharei sempre com estes últimos. Mas, sem ilusões: as injustiças só serão realmente erradicadas quando o bem comum prevalecer sobre os interesses individuais, numa nova forma de organização social".

terça-feira, 16 de junho de 2009

BATALHA DA USP: FINALMENTE, A VERDADE

Alberto Dines, lenda viva do jornalismo brasileiro, escreveu há algumas semanas que a Folha de S. Paulo estaria disposta a reverter o processo de direitização que vem (ou vinha) implementando de uns dois anos para cá.

Ainda não há elementos que nos permitam emitir um juízo definitivo, mas vale registrar que na edição desta terça-feira há dois textos dos mais esclarecedores, nos espaços de Opinião, sobre a Batalha da USP.

Caio Vasconcellos e Ilan Lapyda, coordenadores da Associação de Pós-Graduandos da USP-Capital, assinam o artigo USP: diálogo ou monólogo? ( http://www1.folha.uol.com.br/fsp/opiniao/fz1606200908.htm ), que tem minha total concordância. Vale reproduzir alguns trechos:
"A reitoria fechou os canais de negociação com os movimentos da USP, deslegitimando a política como esfera de solução de conflitos e recorrendo a uma força externa de repressão.

"Essa opção, que expressa seu caráter autoritário, infelizmente coerente com a estrutura de poder da USP, possui a especificidade de ser uma reação às atuais pressões externas e internas por democracia.

"A USP tem enorme concentração de poder: apenas os professores titulares são elegíveis ao cargo de reitor, e este é eleito praticamente só por professores titulares.

"Além do fator estrutural, há um movimento crescente de autoritarismo que torna mais opacas as decisões políticas na USP.

"Desde maio de 2008, as reuniões do Conselho Universitário não têm ocorrido em seu devido local, no prédio da reitoria, mas no Ipen (Instituto de Pesquisas Energéticas e Nucleares), área com proteção militar e não pertencente à USP.

"Ao todo, cinco reuniões foram realizadas no Ipen. Em duas delas, os representantes estudantis e dos funcionários não foram avisados da mudança de local, o que resultou na aprovação do orçamento para 2009 e na reforma do estatuto da USP sem as suas presenças, além de outros graves problemas procedimentais na votação.

"Não seria a reitora, bem como o grupo do Conselho Universitário que legitima suas medidas por meio de 'resoluções', o pivô da violência e da violação - das instituições, da democracia e da política-, ao se esconder em área militarizada e militarizando o campus para não se abrir ao debate?

"O atual clima de horror é incompatível com as funções de reflexão crítica e produção científica independente. A USP deveria ser o espaço do diálogo efetivo, e é ele que deve mediar os legítimos conflitos políticos.

"Se a democracia está travada e a violência parte da reitoria, ao se furtar ao debate e recorrer à repressão policial, fica claro que Suely Vilela não possui condições nem competência de se manter no cargo e que a atual estrutura de poder tem de ser radicalmente transformada."
"GRUPO DIRIGENTE DIVORCIADO DA PRÓPRIA UNIVERSIDADE"

E o colunista Marcos Nobre, com Violência na USP ( http://www1.folha.uol.com.br/fsp/opiniao/fz1606200906.htm ), também dá ótima contribuição para trazer ao debate os ângulos vinham sendo omitidos ou minimizados pela grande imprensa. Como estes:
"Dizer que a ação da polícia pretendia simplesmente restaurar a ordem ignora que todo o problema está justamente nessa ordem a ser restaurada.

"O que torna o conflito na USP mais amplo do que os muros da escola é justamente o fato de revelar quão baixo ainda é o nível de democratização da sociedade brasileira. O episódio mostra com clareza que energias de protesto e de mudança continuam represadas em universidades, sem encontrar canais efetivos de expressão na esfera pública e na política institucional.

"A USP tornou-se um emblema desse nó social por insistir em manter uma estrutura de participação e uma forma de escolher dirigentes que se parece mais com o conclave que elege o papa. Continua a preservar a estrutura de uma universidade de cátedras...

"A recusa em proceder a uma reforma estrutural aprofunda cada vez mais o isolamento da administração em relação à comunidade da universidade, visível há mais de uma década. Produz atritos internos que rapidamente degeneram em conflitos artificiais. O apelo à intervenção policial é o último recurso de um grupo dirigente divorciado da própria universidade."
De resto, como tanta gente já falou tanta coisa, evitarei chover no molhado, apresentando de forma bem sucinta minhas conclusões sobre este lamentável episódio:
  • os piquetes de funcionários não agiam com violência e, tendo a reitora credibilidade zero, são discutíveis os alegados danos ao patrimônio da universidade;
  • se tivesse a mínima qualificação para o posto, a reitora resolveria essa questiúncula sem o malsinado pedido de reintegração de posse;
  • não foi a Justiça que escolheu, para cumpri-lo, os efetivos policiais mais inadequados e truculentos, mas sim o Governo Serra;
  • também não foi a Justiça que decidiu manter as tropas no campus depois de cumprida a missão;
  • a presença inaceitável e ostensiva da PM no campus, representando uma óbvia provocação aos manifestantes que realizavam um protesto pacífico, tornou inevitável o conflito;
  • as agressões a professores, estudantes e funcionários da USP só têm paralelo com as bestialidades da ditadura militar, como a invasão da PUC/SP em 1977;
  • é imperativa e urgente a retirada da PM do campus, antes que ocorra uma tragédia;
  • é imperativa e urgente a destituição da reitora e sua substituição por um(a) educador(a) com formação democrática e abertura para o diálogo.

segunda-feira, 15 de junho de 2009

LULA DESCOBRE A PÓLVORA: O ÁGIO BANCÁRIO "AINDA ESTÁ MUITO ALTO"

No programa radiofônico semanal Café com o Presidente, o nosso bom Lula voltou, singelamente, a cobrar dos bancos que levem em conta o bem comum, ao invés de se comportarem como rapinantes insensíveis durante a crise global do capitalismo:
"...obrigatoriamente, os bancos privados e bancos públicos vão ter que reduzir as taxas de juros para que a gente possa facilitar o crédito para a população. É importante lembrar que, desde que foi criada a taxa Selic, é a primeira vez que ela está abaixo de dois dígitos. (...) Mas não basta taxa Selic cair. É importante que ela caia, mas é importante que o spread bancário diminua no Brasil. O spread ainda está muito alto, o spread ainda está seletivo...".
Trocando em miúdos, quando o IBGE anunciou que o PIB brasileiro caiu 0,8% no 1º trimestre de 2009, soaram os alarmes no Planalto e o governo decidiu uma nova redução da taxa Selic, agora para 9,25% ao ano. Pois, blablablá para tranquilizar simplórios à parte, ninguém sabe realmente quanto ainda despencaremos.

Para que seja revertida a tendência de crescimento econômico negativo, os bancos têm de fazer sua parte, diminuindo o ágio que extorquem dos seus correntistas e deixando de negar crédito àqueles que enfrentam enormes dificuldades e tentam desesperadamente manter-se à tona.

Mas, claro, só o farão sob vara, pois agiotas jamais sensibilizaram-se com exortações.

É da natureza das feras caçarem os animais mais fracos e os devorarem. É da natureza dos agiotas arrancarem tudo que puderem dos coitados que caem em suas garras. Não adianta aconselhar umas e outros; a mudança de comportamento tem de ser-lhes imposta.

Então, ilustríssimo presidente Luiz Inácio Lula da Silva, se V. Exa. estiverdes mesmo, como dizeis, compartilhando as aflições das donas de casa, cabe-vos agir em conformidade com vossa declaração, rompendo a sujeição ao capital financeiro (mantida desde o primeiro dia do vosso primeiro governo) e impondo aos bancos que dêem também sua quota de sacrifício para evitar que a recessão brasileira evolua para depressão.

Pois foram eles os que mais lucraram no Brasil entre vossa posse e o advento da crise capitalista. Cinco anos e meio anunciando, mês após mês, escandalosos recordes de faturamento.

E não foi só isto. Como bem ressaltou o comentarista econômico Octávio Costa na IstoÉ, as instituições financeiras acumularam uma banha adicional quando vosso governo adotou as primeiras medidas para evitar-se o pior, no final do ano passado, liberando R$ 100 milhões em depósito compulsório, baixando a Selic e reduzindo os impostos sobre operações financeiras.

Já então vossa equipe econômica alegava esperar que, como consequência, os bancos disponibilizassem mais crédito e diminuíssem o percentual do ágio.

Negativo. Preferiram engordar em quase 50% as provisões para créditos duvidosos, visando minimizarem as próprias perdas durante a emergência nacional.

O maior reforço dessas provisões (R$ 3 bilhões no 4º trimestre de 2008) foi o do Itaú-Unibanco, cujo presidente-executivo Roberto Setubal deitou falação demonstrando ter perfeita consciência do quadro em que agia: "O ajuste da economia brasileira às novas condições da economia mundial levará algum tempo, reduzirá o crescimento e aumentará o desemprego e a inadimplência".

Na ocasião fui um dos poucos a chamá-lo às falas, já que a mídia se omite vergonhosamente nos momentos em que grandes anunciantes se fazem merecedores de críticas:
"Saudado como herói pela grande imprensa quando fundiu seu negócio com outra casa de agiotagem, Setubal esqueceu de dizer que 'o ajuste da economia brasileira às novas condições da economia mundial' levará muito mais tempo, impondo sacrifícios terríveis ao nosso povo, graças a atitudes como a que ele tomou, cujas consequências óbvias serão exatamente as de reduzir o crescimento e aumentar o desemprego e a indamplência".
Finalmente, em vosso benefício, presidente Lula, vou repetir algo mais do que escrevi há três meses e meio, para não vos restem dúvidas sobre as características predatórias daqueles com quem estais lidando. Isto na esperança de que queirais adotar medidas realmente eficazes para domesticar a besta, ao invés de apenas chover no molhado com retórica inócua:
"Os agiotas estão entre os piores exemplares do gênero humano, ao lado dos torturadores, dos assassinos seriais, dos traficantes, dos molestadores de menores e outras aberrações.

"Em qualquer circunstância, um agiota só pensa em aumentar sua fortuna. Não lhe importa que suas vítimas sejam reduzidas à penúria, percam os lares, passem fome, prostituam suas crianças, cometam suicídio.

"Move céus e terras para arrancar até o último centavo que lhe devem e sai em busca de outros desesperados para oferecer-lhes não uma tábua de salvação, mas a âncora que os arrastará para as profundezas.

"É um abutre em forma humana, tendo o calculismo como característica dominante e a ganância como motivação suprema.

"Mas, poderão indagar os leitores, por que lançar tal catalinária contra Shylock (o mercador de Veneza), um personagem tão remoto como o dramaturgo que o criou, William Shakespeare?

"Porque Shylock, qual um vampiro, não morreu. Apenas alterou sua aparência. Institucionalizou-se, atendendo hoje pelo nome de banco.

"E, enquanto não lhe cravarmos uma estaca no coração, continuará sugando nosso sangue, nossas energias, nossas esperanças."

domingo, 14 de junho de 2009

DAVID CARRADINE (1936-2009)

Foram tão deprimentes as circunstâncias da morte de David Carradine que só agora eu me sinto em condições de escrever algo sobre ele.

Ao tomar conhecimento de que a causa mortis seria, segundo a polícia tailandesa, uma prática autoerótica malsucedida, dois pensamentos me ocorreram.

Lembrei-me do caso do gerente de uma grande empresa que, já próximo da aposentadoria, caiu em desgraça: tiraram-lhe a autonomia, colocando-o sob as ordens de um chato de galochas. A decepção foi tamanha que, transando com a amante dias depois, foi fulminado por um ataque cardíaco.

Isto aconteceu no horário de expediente. A fulana teve o bom senso de avisar primeiramente os colegas de serviço dele. E estes, o despreendimento de vestirem o defunto e transportá-lo do prédio onde morreu (próximo) até o estacionamento da sua empresa, para que lá fosse encontrado.

Arriscaram-se a ter sérios contratempos com as autoridades, mas salvaram as aparências, poupando a esposa e filhos do pobre coitado de um vexame que tornaria ainda mais amargo o momento.

Pena que nenhum bom samaritano haja evitado o dano póstumo à reputação de David. Por que os malditos policiais tailandeses não tiveram, pelo menos, o profissionalismo de esperar a conclusão do inquérito, antes de darem com a língua nos dentes?!

Também me ocorreu que as mortes de Bruce Lee e do seu filho Brandon foram igualmente esquisitas. Fatalidades bizarras atingirem três atores ligados a filmes de kung-fu é coincidência demais. Eu não descartaria a hipótese de assassinato e armação de cenário. A família de David manifestou a mesma desconfiança.

Mas, falemos do ator, que é o que realmente importa.

David era filho de John Carradine, canastrão de filmes classe B, principalmente os de terror. Entre fitas de cinema e seriados para TV, John tem registrada 340 atuações, ao longo de 57 anos, no site especializado IMDB.

Além disso, John conseguiu encaixar seus filhos na profissão: David e Keith tiveram carreiras mais marcantes, Robert sempre foi um coadjuvante muito requisitado.

Isto, aliás, ajudou o diretor Walter Hill a viabilizar uma idéia pitoresca: utilizar atores que eram irmãos na vida real para personificarem os manos integrantes do bando de Jesse James, em Cavalgada de Proscritos (1980).

Assim, David, Keith e Robert interpretaram os Youngers Brothers, enquanto James Keach foi Jesse James e Stacy Keach, Frank James. Dos cinco, o mais marcante foi mesmo David, como Cole Younger. Tinha carisma.

Ele estreou como ator em 1963, nos seriados de TV, mas sua carreira só decolou mesmo ao interpretar o gafanhoto Kwai Chang Kane nos 46 episódios da série Kung Fu, entre 1972 e 1975 (depois, de 1993 a 1997, reassumiria o personagem, com idade mais avançada, nos 83 episódios de Kung Fu - A Lenda Continua).

A sorte favoreceu David, pois quem deu a idéia inicial para essa série foi Bruce Lee, acreditando que ela o catapultaria para o estrelato, depois de ter despontado bem no seriado O Besouro Verde (como Kato, o empregado do herói).

O estúdio, entretanto, não quis colocar um verdadeiro oriental como protagonista, preferindo repuxar os olhos de Carradine e alisar-lhe o cabelo para fazê-lo passar-se por chinês. Foi uma reprise do caso de O Cantor de Jazz (1927), primeiro filme falado, no qual o branquelo Al Jolson passou graxa na cara para ficar parecendo um cantor negro.

O êxito na telinha alavancou a carreira de David na telona. Pouco antes do lançamento de Kung Fu, passara despercebida sua boa atuação em Sexy e Marginal, dirigido por Martin Scorcese (1972). Foi, aliás, um filme em que teve a oportunidade de atuar ao lado do pai.

Surfando nas águas do sucesso televisivo, destacou-me muito mais como o protagonista do trash Ano 2000 - Corrida da Morte (d. Paul Bartel, 1975), incomparavelmente pior.

SEU GRANDE PERSONAGEM: WOODY GUTHRIE

Seu apogeu viria logo a seguir: compôs um Woody Guthrie inesquecível em Esta Terra É Minha Terra (d. Hal Ashby, 1976).

É um dos três principais papéis de sua carreira, favorecido por ser Guthrie (o inspirador de Bob Dylan) um magnífico personagem: trata-se do cantor/compositor folk que percorria o país como vagabundo na época da Grande Depressão, viajando no teto dos trens (foto acima), apresentando-se nos acampamentos de desempregados e estimulando a sindicalização dos trabalhadores.

David também dirigia. Americana, um filme que começou a fazer em 1973 e só conseguiu finalizar dez anos depois, é surpreendentemente bom, apesar da precariedade da produção e de os demais atores quase nada acrescentarem (o esquema foi caseiro, David recebeu uma força dos parentes e amigos envolvidos com o cinema).

Outra de suas performances superlativas foi num filme menor de Ingmar Bergman, O Ovo da Serpente (1978). Os críticos pernósticos empinaram o nariz, não admitindo que o astro de Kung Fu profanasse o templo da grande arte...

Na verdade, Carradine se mostrou muito mais inspirado como ator do que o celebrado Bergman como diretor: o filme começa muito bem, flagrando a prostração reinante na Alemanha durante a hiperinflação da década de 20, mas depois desanda, ao colocar extemporaneamente um experimento com cobaias humanas como trailer do nazismo (isto só aconteceria bem depois da época em que transcorre a ação) .

Finalmente, ele teve superlativo desempenho no cult O Círculo de Ferro (d. Richard Moore, 1978), um projeto memorável em todos os sentidos: foi uma homenagem póstuma a Bruce Lee.

Dois roteiristas deram forma a uma idéia que o dragão chinês esboçara: uma jornada do conhecimento, cumprida por um praticante de artes marciais, servindo para apresentar ao público ocidental as linhas-mestras do zen-budismo. É um filme belíssimo, com David assumindo quatro personagens distintos.

O estereótipo dos filmes de ação, entretanto, acabou prevalecendo sobre as qualidades que ele mostrara em alguns papéis dramáticos. E nada mais fez de realmente bom, embora nunca parasse de trabalhar (superou a marca de 300 atuações, a maioria, claro, na TV).

Discordo dos que aclamaram sua performance no Kill Bill Vol. 2 (d. Quentin Tarantino, 2004) como um renascer das cinzas. Esteve mais para uma caricatura dos seus personagens anteriores, com uma artificialidade até constrangedora.

Foi impressionante apenas como símbolo, já que sua morte na tela nos tocou como se fosse a saída de cena do último titã e o apagar das luzes de uma época em que éramos bem mais inocentes e esperançosos. Ninguém mais acredita que um monge de Shao-Lin possa sozinho sanar os males da sociedade... infelizmente.

E é por essa grandeza simbólica, além dos lampejos de grande ator, que lhe desejávamos um the end mais apropriado. Os deuses foram cruéis com ele.
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