terça-feira, 22 de abril de 2025

O GENERAL QUERIA MATAR O JECA, O JOCA E O JUCA. E O MANDANTE? ELE ESTAVA NA DISNEY, ACONSELHANDO-SE COM O PATETA

Hoje o Supremo Tribunal Federal começa a julgar seis integrantes do Alto Comando do golpe de Estado tentado em janeiro de 2023 para anular o resultado da eleição presidencial e empossar o candidato derrotado.

Destaque para o general Mário Fernandes, em cujo computador foi encontrado o plano Punhal Verde Amarelo, que incluía a execução do Jeca (Lula), do Joca (Alexandre de Moraes) e do Juca (Geraldo Alckmin).

Os conspiradores não negam a existência do plano, apenas tentam inutilmente tirar o corpo fora, inclusive incriminando os cúmplices. 

A Inteligência Artificial do mandante Jair Bolsonaro (a natural não serve pra nada...) se indigna: 

"Eles têm minhoca na cabeça. Mas ninguém pode me acusar disso, pois eu estava bem longe, aconselhando-me com o Pateta na Disneylândia".

Para azar de todos eles, o golpe não foi nenhum desenho animado. Existiu mesmo e está descrito nos mínimos detalhes, com toneladas de depoimentos e provas, na denúncia da Procuradoria Geral da República. (por Celso Lungaretti)

segunda-feira, 21 de abril de 2025

TIRADENTES PODERIA TER SIDO O BOLIVAR BRASILEIRO, MAS NOSSO POVO PREFERIU RECEBER A LIBERTAÇÃO COMO DÁDIVA

 "Brecht cantou: ‘Feliz é o povo que não tem
 heróis’. Concordo. Porém nós não somos
um povo feliz. Por isso precisamos de
heróis. Precisamos de Tiradentes"

(Augusto Boal, Quixotes e Heróis)
Será que os brasileiros sentem mesmo necessidade de heróis, salvo como temas dos intermináveis e intragáveis sambas-enredo? É discutível.

Os heróis são a personificação das virtudes de um povo que alcançou ou está buscando sua afirmação. Encarnam a vontade nacional.

Já os brasileiros, parafraseando o que Marx disse certa vez sobre os camponeses, constituem tanto um povo quanto as batatas reunidas num saco constituem um saco de batatas...


O traço mais característico da nossa formação é a subserviência face aos poderosos de plantão. Os episódios de resistência à tirania foram isolados e trágicos, já que nunca obtiveram adesões numericamente expressivas.


Demoramos mais de três séculos para nos livrar do jugo de uma nação minúscula, como um Gulliver imobilizado por um único liliputiano.

E o fizemos da forma mais vexatória, recorrendo ao príncipe estrangeiro para que tirasse as castanhas do fogo em nosso lugar; e à nação economicamente mais poderosa da época, para nos proteger de reações dos antigos colonizadores.

Isto depois de assistirmos impassíveis à execução e esquartejamento de nosso maior libertário.
Da mesma forma, o fim da escravidão só se deu por graça palaciana e quando se tornara economicamente desvantajosa.

Antes, os valorosos guerreiros de Palmares haviam sucumbido à guerra de extermínio movida pelo bandeirante Domingos Jorge Velho, que merecidamente passou à História como um dos maiores assassinos do Brasil em todos os tempos.


E foi também pela porta dos fundos que nosso país entrou na era republicana e saiu das duas ditaduras do século passado (a de Vargas terminou por pressões estadunidenses e a dos militares, por esgotamento do modelo político-econômico).

Leitura da sentença de Tiradentes (pintura histórica)

Todas as grandes mudanças positivas acabaram se processando via pactos firmados no seio das elites, com a população excluída ou reduzida ao papel de coadjuvante que aplaude.
  • É verdade que houve fugazes despertares da cidadania: em 1961, quando a resistência encabeçada por Leonel Brizola conseguiu frustrar o golpe de estado tentado pelas mesmas forças que seriam bem-sucedidas três anos mais tarde;
  • em 1984, com a inesquecível campanha das diretas-já, infelizmente desmobilizada depois da rejeição da Emenda Dante de Oliveira, com o poder de decisão voltando para os gabinetes e colégios eleitorais; e
  • em 1992, quando os  caras-pintadas  foram à luta para forçar o afastamento do presidente Fernando Collor.
Inconfidentes e sua falação. Só Tiradentes era homem de ação
Nessas três ocasiões, a vontade das ruas alterou momentaneamente o rumo dos acontecimentos, mas os poderosos realizaram manobras hábeis para retomar o controle da situação. Rupturas abertas, entre nós, só vingaram as negativas.

Vai daí que, em vez de heróis altaneiros, os infantilizados brasileiros são carentes mesmo é de figuras protetoras, dos coronéis nordestinos aos padins Ciços da vida, passando por pais dos pobres tipo Getúlio Vargas e Lula.

Então, Zumbi dos Palmares, Tiradentes, Frei Caneca, Carlos Marighella, Carlos Lamarca e outros dessa estirpe jamais serão unanimidade nacional, como o são Giuseppe Garibaldi na Itália ou Simon Bolívar para os hermanos sul-americanos.
O 21 de abril é um dos menos festejados de nossos feriados. E o próprio conteúdo revolucionário de Tiradentes é escamoteado pela História Oficial, que o apresenta mais como um Cristo (começando pelas imagens falseadas de sua execução, já que não estava barbudo e cabeludo ao marchar para o cadafalso) do que como transformador da realidade.

Então, vale uma citação da epígrafe escrita por Boal quando do lançamento da antológica peça Arena Conta Tiradentes, em 1967:
"Dez vidas eu tivesse, dez vidas eu daria para salvar a deles"
"Tiradentes foi um revolucionário no seu momento como o seria em outros momentos, inclusive no nosso. Pretendia, ainda que romanticamente, a derrubada de um regime de opressão e desejava substitui-lo por outro, mais capaz de promover a felicidade do seu povo. 
...No entanto, este comportamento essencial ao herói é esbatido e, em seu lugar, prioritariamente, surge o sofrimento na forca, a aceitação da culpa, a singeleza com que beijava o crucifixo na caminhada pelas ruas com baraço e pregação ... 
O mito está mistificado".
Quando o povo brasileiro estiver suficientemente amadurecido para tomar em mãos seu destino, decerto encontrará no revolucionário Tiradentes uma de suas maiores inspirações. 
.
(por Celso Lungaretti)

PEQUENO DESABAFO QUE VIROU NECROLÓGIO INSÓLITO

Se eu estivesse no século 18, tiraria de letra a tarefa de escrever algo sobre a morte do Papa Franciso. Bastaria citar esta estrofe da poesia O século, do  Castro Alves:
  
"Quebre-se o cetro do Papa.
Faça-se dele — uma cruz!
A púrpura sirva ao povo
P'ra cobrir os ombros nus.
Que aos gritos do Niagara
— Sem escravos — Guanabara
Se eleve ao fulgor dos sóis!
Banhem-se em luz os prostíbulos,
E das lascas dos patíbulos
Erga-se a estátua aos heróis!"
No século passado, tudo que haveria de importante para se dizer já estava expresso na antológica La Saeta, do poeta Antonio Machado, cujos versos, musicados, foram gravados por vários artistas, com destaque para a interpretação emocionante de Joan Manuel Serrat.

"Oh, no eres tú mi cantar, 
no puedo cantar ni quiero
A este Jesús del madero
sino al que anduvo en la mar!'
("Oh, não é você meu cantar,
não posso cantar nem quero
a esse Jesus de madeira,
mas sim ao que caminhava sobre as ondas")

Neste depressivo século 21, contudo, já não me animo a rechaçar a Igreja Católica com a contundência de antes, pois quem disputa seu espaço, crescendo cada vez mais, são autênticos mercadores do templo, podres até a medula.

O Papa Francisco certamente não tinha a magnitude heroica do cardeal eterno de São Paulo, D. Paulo Evaristo Arns, que confrontou a ditadura militar com imensa coragem e salvou muitos companheiros nossos da morte.

Mas, comparado aos pastores do culto ao bezerro de ouro, com sua mentalidade de faço tudo pelo dízimo, sou obrigado a reconhecer que ele era um mal infinitamente menor do que as más lacraias de hoje que, não contentes com empobrecer e esfaimar os coitadezas, agora se põem até a tentarem desgraçar o Brasil com uma nova ditadura.

E me revira o estômago constatar que há tantos brasileiros incapazes de ver como patifes os patifes que são. 

Seja em fotos, imagens filmadas ou ao vivo, o mau caráter desses autonomeados bispos, apóstolos e sei lá quantos outros rótulos farsescos transparece indisfarçavelmente: são apenas e tão somente picaretas empedernidos. Nem isto nosso sofrido povo percebe?!

Se nunca acreditei que os sacerdotes católicos tivessem algo a ver com os personagens do drama bíblico, embora supostamente remontassem à igreja que Pedro ergueu por delegação de Cristo, mais inacreditáveis ainda são esses sacerdotes de si mesmos, sem batinas nem adereços medievais, que mais me parecem vendedores ambulantes de terrenos na lua.

Temo que, se tudo continuar piorando tanto quanto está, algum dia ainda terei saudades do Papa Francisco... (por Celso Lungaretti)

sexta-feira, 18 de abril de 2025

A NOSSA PAIXÃO É A DO CRISTINO E QUEM A CANTA NESTA 6ª FEIRA É GERALDO VANDRÉ

A
 Paixão segundo Cristino foi escrita por Geraldo Vandré, em 1968, para a celebração da Semana Santa na Igreja de São Domingos das Perdizes, em São Paulo. 

Com o assessoramento teológico dos frades dominicanos João Caldas Valença e Bernardo Pires de Vasconcelos, Vandré escreveu uma das mais belas páginas litúrgicas populares sobre a paixão e a morte de Jesus Cristo. 

Durante anos ela foi apresentada na igreja dos dominicanos como memória e celebração de tantos que, a partir de 1968, viveram na sua própria carne a perseguição, calúnia, exílio, agonia, paixão e morte. 

Suas vidas foram celebradas e suas esperanças renovadas a cada ano nas vidas e esperanças de seus irmãos.

Essa paixão é um tributo à resistência de tantos que nas suas vidas e caminhos recriaram a vida e os caminhos de todos os homens que lutaram pela justiça e liberdade. 

A Fundação Cultural de Curitiba, ao recriar esta obra, celebra todos os homens e mulheres que deram as suas vidas para que surja um mundo novo pleno de justiça e fraternidade. 
.
(por Carlos Frederico de Souza Filho, que presidia a Federação de Cultura de Curitiba quando esta lançou em disco a missa Paixão segundo Cristinocriada por Vandré e interpretada
por Paulo Cezar Botas, Marinho Gallera e o Coral de Curitiba)

quarta-feira, 16 de abril de 2025

16 DE ABRIL DE 1970, QUANDO O SONHO SE TORNOU PESADELO E O PESO DA DITADURA MILITAR DESABOU INTEIRO SOBRE MIM

Júlio chega à praça Saens Peña às 6h38 do dia 16 de abril de 1970.

É uma fase de arbítrio e intolerância. Os partidos e organizações que ousaram pegar em armas para resistir à ditadura militar pagam um preço bem alto: as notícias de prisão e morte de militantes são praticamente diárias. Há indícios de melhora da situação econômica do País.

Ele veio de ônibus, calculando que daria tempo. Deu. O ponto com o Ivo e os dois simpatizantes está marcado para as 6h45.

Outro motivo para ter optado pelo ônibus é a certeza de que o coletivo estaria quase vazio nesse horário. Ótimo para quem precisa tomar cuidado com o revólver que traz na cintura, encoberto pela camisa folgada, que usa fora da calça.

Nesta manhã de quinta-feira Júlio não tem outros compromissos. Baterá um rápido papo com os simpatizantes que Ivo vai lhe passar e pronto! Estará livre para voltar ao quarto que aluga na casa de uma simpática velhinha do Rio Comprido (ótima cobertura, nada de fichas para preencher, nada que possa atrair atenções indesejáveis).

Para manter a fachada de vendedor, às vezes ele é obrigado a ficar matando tempo pela cidade mesmo quando não tem nenhuma tarefa da Organização para cumprir. Nesta semana, entretanto, ele disse à Dª Chica que ganhou alguns dias de folga.
Como os dois comandantes de unidades de combate foram convocados pelo Lamarca para uma reunião de emergência na área guerrilheira, não há muito para um comandante de Inteligência fazer.

Assim, Júlio tratou de arrumar uma desculpa para manter horários mais flexíveis. E, como vantagem adicional, pôde sair à paisana, sem o terno desconfortável para o clima carioca nem a pasta 007 em que costuma levar o seu .38 e uma caixa de balas.

Esteve com 
Ivo na véspera, num restaurante da avenida Nossa Senhora de Copacabana. Encaminharam algumas tarefas, discutiram novidades, fizeram avaliações políticas. Sempre bem informado, Ivo ajuda Júlio a montar suas análises da situação.

O jovem comandante dá alguns detalhes de bastidores que lhe foram transmitidos por outros aliados, Ivo diz o que sabe a respeito, trocam ideias, tecem conjeturas.

A conversa rendeu tanto que acabaram separando-se às 22h40, meio tarde para quem precisa manter-se a salvo das batidas policiais. Foi quando Ivo disse ter dois simpatizantes para passar:

— Eles trabalham numa estatal e têm informações interessantes para o teu setor. Mas só podem te encontrar bem cedinho, o expediente deles começa às 8.

Júlio, que detesta cair da cama, foi obrigado a aceitar o horário desagradável. Consolou-se com a ideia de que depois poderia voltar para seu quarto e dormir mais um pouco.

Chega sem cautela nenhuma, pois confia no jeitão tranqüilo e na experiência de Ivo, um renomado ginecologista beirando os 40 anos, que chegara até a ser candidato à Prefeitura por um pequeno partido. Simpático e bem relacionado, ele é uma verdadeira mina de aliados e simpatizantes para a Vanguarda Popular Revolucionária.

Nas terríveis condições da clandestinidade, os militantes tentam agarrar-se a pequenas ilusões, que os ajudam a manter a ilusão maior de que exista alguma segurança para eles. Se encararem a verdade — de que, a cada instante, estão sujeitos a serem presos, torturados e mortos —, acabarão enlouquecendo.
Apelidamos ironicamente esses 
cartazes de "os imortais da Oban"
Assim, 
Júlio tem muito medo de cair num ponto com calouros na luta armada, mas confia quase cegamente nos veteranos — dentre os quais ele próprio se inclui, afinal já leva essa vida há um ano e a maioria não aguenta mais do que alguns meses.

Além disso, esteve com Ivo oito horas atrás. O que poderia acontecer ao bom doutor em tão curto espaço de tempo?

Se pressentisse algum perigo, Júlio teria ido de terno, com o braço para dentro e a arma já engatilhada na mão direita, oculta pelo paletó. É o que faz em pontos arriscados.

Até algumas semanas atrás, teria também uma cápsula de cianureto entre os dentes, pronta para ser rompida por uma mordida mais forte. Foi uma contribuição de simpatizantes da área de medicina, mas o primeiro quadro que preferiu a morte à tortura... sofreu apenas um ataque de diarreia que o debilitou ainda mais diante dos algozes. É que os aprendizes de feiticeiro ignoravam algum detalhe da fabricação do comprimido letal.

A notícia do fracasso chegou à Organização e os militantes mais queimado— aqueles com reais motivos para evitarem cair vivos — tiveram de voltar a conviver com seus temores, sem a opção de uma saída fácil e quase indolor.

O ponto é numa padaria da praça. Júlio olha para os lados antes de entrar, mas só por hábito. E começa a pedir um café no balcão, quando é violentamente agarrado por vários homens. Um o segura por trás, impedindo que mexa os braços. É arrastado para fora, desarmado, encapuzado e jogado no chão de um veículo. Percebe que seu pior pesadelo virou realidade.

Com as mãos algemadas para trás, o capuz apertado, a cara contra o chão, sente falta de ar. Alguém lhe segura a cabeça, forçando-a para baixo, de forma que fique bem oculto dos civis. Durante o trajeto, vai repassando na memória o que lera no panfleto Se Fores Preso, Companheiro, do experiente Carlos Marighella.

Lembra-se de que aconselhava o revolucionário a se comportar como um militar nas mãos do inimigo: dar só o nome (nem mesmo a patente poderia abrir). Mas, isso foi escrito em tempos distantes. Será possível manter agora essa atitude de desafio?
Morte por infarto do jovem Chael Charles
Schreier despertou indignação mundial

Um companheiro mandou do presídio uma descrição da sala de tortura, que disse ser envidraçada. Sugeriu que o preso se atirasse contra o vidro — o que ele próprio não fizera. 
Júlio pensa que é uma boa opção.

Isto, claro, se lhe derem chance. E se não lhe faltar coragem. A hora da verdade chegou e ele não tem certeza de como se comportará. 

Quanto durou o trajeto? Quinze minutos? Vinte? Percebe que chegou num quartel, o motorista explica-se ao sentinela. Acesso permitido. O veículo pára e Júlio é retirado aos trambolhões. Tiram as algemas, mas mantêm o capuz. Sente que está numa espécie de recepção.

- Nome!

Resolve ficar calado. Que vantagem há em revelar um nome que está nos cartazes de Terroristas Assassinos Procurados? Imediatamente começaria a ser tratado como um peixe grande.

-Nome!

- Como você se chama, filho-da-puta?

- É, assim não vai. Leva ele logo pro pau.C

Conduzem-no aos empurrões. Cai, levanta-se, tenta manter a dignidade. Finalmente tiram o capuz. Está numa sala repleta de homens fortes e mal-encarados. Procura os vidros contra os quais se atirar, mas não existe nenhum. As paredes são todas acolchoadas.

Mandam-no tirar a roupa. Fica imóvel, mas também não resiste quando lhe arrancam todas as peças. Sente-se inferiorizado e frágil diante dos brutamontes. Deixa que lhe envolvam os braços com tecido, amarrem com uma corda, coloquem um cabo de vassoura entre eles e as pernas e o icem. Fica pendurado sobre dois cavaletes, como um frango no grill das padarias.

Atam eletrodos nos dedos. Começam a girar a manivela de um telefone de campanha, lentamente. Ele concentra todas as suas forças em não gritar. Não lhes dar esse prazer. Não mostrar fraqueza. Resistir.
Eremias, meu amigo desde o primário,
morto por dezenas de tiros aos 18 anos
De repente, o torturador acelera, gira bem depressa a maquininha. A sensação é terrível. Não consegue respirar. Sufoca. Quando o choque cessa, 
Júlio tenta absorver todo o ar que existe na sala. Mas, giram de novo. Param. Giram. Param.

Percebe que esses gritos animalescos estão saindo de sua garganta.

Socam-lhe o corpo, a cabeça. Mas são os choques que o abalam de verdade. A impressão de que morrerá sufocado, de que seu coração vai estourar.

Deixam que tome fôlego, perguntam-lhe o nome. Percebe que não aguentará, vai ter de mudar de atitude. Precisa de tempo para pensar. Diz o nome.

- Tá mentindo, piroca! Fala a verdade! Como se chama? (outra descarga)

- (ofegando) Sou eu mesmo! O dos cartazes!

Vão digerir a informação. Tiram-no do pau-de-arara, mandam ficar em pé, com o rosto contra a parede. Deixam que amarre de qualquer jeito a calça e a camisa rasgada em torno do corpo.

Antes de dar-lhes as costas, vê os torturadores sorrindo, com ar de deboche. Odeia-se por não ter resistido mais.

Percebe que isso é só o começo, o pior está para vir.

Um grandalhão dá um tapa na sua nuca, depois tenta assustá-lo com o símbolo do Esquadrão da Morte. Com uma mão agarra-o pelos cabelos da nuca; com a outra, coloca bem diante dos seus olhos a caveira do ridículo anel que usa.

— Bem-vindo ao inferno!
platéia estoura em gargalhadas.

À dor e vergonha vem se somar o desânimo. “Até quando terei de suportar essa ralé?” — pensa Júlio. Sua impressão é de que realmente desceu ao inferno.

Acima reproduzi a introdução do meu livro Náufrago da Utopia (Geração Editorial, 2005).

Quando meu pior pesadelo se materializou há exatos 55 anos, eu só poderia supor que estivesse diante de três opções:
- sobreviver incólume;
- sobreviver lesionado;
- morrer.

Havia uma quarta, que nunca me ocorreria: sobreviver duplamente lesionado, fisica e moralmente,
por haver caído numa armadilha da História, em que me debateria pelos quase 35 anos seguintes.

Mas, somos mesmo joguetes dos deuses.

Quando já me conformava com a ideia de que a verdade a meu respeito só viria à tona -- se viesse --, após a morte, uma sequência de acontecimentos favoráveis alterou todo o cenário, no final de 2004.

Como se os fados quisessem me compensar pela maré de azar que me tornou bode expiatório de falhas alheias e por pouco não me destruíra em 1970.

Então, meia existência depois, os efeitos daquele terrível 16 de abril (e dos meses seguintes) foram superados. Passei a viver uma nova vida -- aquela que deveria ter vivido. (por Celso Lungaretti)

terça-feira, 15 de abril de 2025

O PRÓXIMO PRESIDENTE DA REPÚBLICA SERÁ AQUELE QUE NÃO TIVER EXPIRADO NEM FICADO GAGÁ ATÉ O DIA DA POSSE...

P
ara minha surpresa, a colega Eliane Cantanhêde desta vez ousou mais do que eu no desafio ao verdadeiro patrulhamento ideológico exercido pelos identitários. 

Confesso que há muito considero Lula decadente e, por força da teimosia que nele se acentuou cada vez mais com o passar dos anos, desprovido de vários requisitos para o exercício da presidência da República. 

Salta aos olhos e clama aos céus que hoje ele olha para o futuro com a nuca, insistindo em enfrentar os problemas do século 21 com soluções que já haviam caducado no século passado e hoje se tornaram anacrônicas ao extremo.

Quanto a Bolsonaro, jamais foi apto para o cargo. O envelhecimento e os problemas de saúde só o tornaram pior ainda do que já era na década de 1980, quando planejou explodir uma tubulação da adutora do Guandu (RJ) como protesto contra o valor por ele considerado baixo do seu soldo de tenente.
Sonhando com a popularidade perdida?
Mas, até pelo paradoxo de considerar que os defeitos deles se agravaram com a velhice, sendo eu também idoso, hesitei em proclamar a minha opinião em alto e bom som. Pensei em como seria constrangedor enfrentar acusações de etarismo...

Já a Cantanhêde pegou o touro a unha, como jornalistas devem sempre fazer.

Palmas para ela! (por Celso Lungaretti)
.
eliane cantanhêde,
BOLSONARO É RÉU, INELEGÍVEL E DOENTE, LULA
 BEIRA OS 80, CANSADO E IMPOPULAR;
2026 É GRANDE INCÓGNITA
A nova cirurgia de Jair Bolsonaro, de 12 horas, joga luzes sobre a grande incógnita das eleições presidenciais de 2026, quando os dois principais líderes políticos do país, Bolsonaro, pela extrema direita, e Luiz Inácio Lula da Silva, pela esquerda, dão sinais de que terão dificuldades para se candidatar e, portanto, para manter a sólida polarização brasileira.

Bolsonaro, 70 anos, tem sofrido efeitos colaterais bastante graves da facada que quase o matou durante a campanha de 2018, que ele venceu, e não se pode dizer que tenha exatamente uma saúde de ferro. Mas o pior é que ele, além de inelegível, enfrenta um julgamento difícil e carregado de provas como, segundo a PGR, chefe da organização criminosa que planejou e tentou dar um golpe de Estado no País. Seu grande risco é estar atrás das grades na eleição.
Afinal, a obstrução era intestinal ou cerebral?

Lula, 79 anos, curou-se de um câncer de garganta, mas, já no terceiro mandato, levou um tombo no banheiro e teve de fazer mais de um procedimento para estancar um sangramento intracraniano. Terá 80 anos na posse do futuro presidente e 84 no fim do próximo mandato presidencial. Além disso, Lula enfrenta popularidade preocupante, Congresso hostil, oposição muito articulada e uma montanha de críticas, inclusive da mídia e entre aliados.

A diferença entre os dois é o tipo de problema para cobrir o próprio vácuo, se vácuo houver. Bolsonaro está rouco de tanto dizer, e tentar convencer, que será candidato, mas sofre uma competição cada vez menos disfarçada e mais atuante dentro do próprio ambiente bolsonarista. O nome mais em evidência é o de Tarcísio Gomes de Freitas, governador de São Paulo, mas ele é seguido pela ex-primeira dama Michelle, governadores como Ratinho Jr. e Ronaldo Caiado, e os tais outsiders que usam as pesquisas e abusam das redes sociais.

O problema de Lula é inverso: a falta de um sucessor, como já lhe cobraram um ícone da esquerda e um ícone indígena latino-americanos, Pepe Mujica e o cacique Raoni. É como se a esquerda nacional só tivesse uma alternativa, ou Lula ou Lula. De uma pobreza de dar dó. Dó e um certo pânico, que permeia os debates de Brasília, mas é tratado sob constrangimento. Quem mais tem, ou teria coragem de botar o dedo nessa ferida para Lula, como Mujica e Raoni?
Jogo sujo eleitoral: Joe Gagá.
Bolsonaro é vítima do seu
problema, já que não quer, não permite e se esgoela, mas sofre a profusão de candidatos disputando o seu próprio eleitorado. Lula, porém, não se pode dizer vítima da falta de nomes, não só do PT, mas de toda a esquerda, porque foi ele quem criou e agora alimenta esse seu problema, na base do se não for eu, não vai ser ninguém.

E é assim que Lula vem desautorizando e enfraquecendo a melhor aposta dele, do partido e das esquerdas, Fernando Haddad, e não sobra ninguém. Ou melhor, quem sobra, por melhor que seja, é novo, inexperiente, tem de comer muito feijão para chegar a candidato com chances reais. Estamos falando do prefeito de Recife, João Campos, do PSB, que disputou a reeleição e não apenas venceu como levou o troféu de mais votado do País.

Sim... Se as candidaturas de Lula e Bolsonaro são incertas e não sabidas e a polarização parece claudicar, ou caducar, era de se esperar que o centro (atenção: não o Centrão, que é outra história) se articulasse para entrar de cabeça nesse vácuo, mas daí vem a dúvida cruel: quem e o que sobrou do centro no Brasil? O País é dividido entre 30% da esquerda, 30% do bolsonarismo e 30% que não é de nenhum dos dois lados. Está num limbo, sem ver a luz no fim do túnel. Um ano e meio antes das eleições, 2026 é uma enorme incógnita. (por Eliane Cantanhêde)
Bons tempos: em 1968 ninguém ousava qualificar Chico Buarque
de etarista, embora esta sua canção fosse até cruel com os idosos

segunda-feira, 14 de abril de 2025

DEMAGOGIA ANTES DA CIRURGIA ATESTA QUE CINISMO DO BOLSONARO É ILIMITADO

Jair Bolsonaro jamais demonstrou a menor compaixão pelas centenas de milhares de brasileiros vitimados por sua  alucinada sabotagem à vacinação contra a covid. 

Pelo contrário, até acreditava estar sendo engraçado ao imitar a agonia dos que morriam tentando desesperadamente respirar. 

Agora, ele cometeu a pior demagogia de sua carreira, ao misturar, numa mesma mensagem, a cirurgia pela qual passaria e a campanha que desenvolve para evitar a merecida prisão. 

Ele finge cinicamente estar preocupado com os transtornos que causou a seus seguidores, sujeitando-os à prisão enquanto se colocava a salvo na Disneylândia...

Se tivesse a mínima empatia com o sofrimento alheio, pediria em alto e bom som que fossem anistiados os golpistas ingênuos, mas não, nunca, jamais ele próprio, que passou o mandato presidencial inteiro conspirando para usurpar definitivamente o poder. 

O maior obstáculo à anistia ou redução das penas dos que não sabiam direito o que estavam fazendo é a possibilidade de isso vir a servir de cavalo de Tróia para os que sabiam muito bem quão criminosos eram os próprios atos.

Apesar de merecer o mesmo destino que tiveram congêneres seus como Hitler e Mussolini, a pena máxima que a Justiça brasileira poderá aplicar a Bolsonaro é de 30 anos de prisão. Para ele, isto seria lucro. 

Mesmo assim, faz uma descarada chantagem emocional e esperneia como um menininho que não quer tomar purgante. Que nojo! (por Celso Lungaretti) 

domingo, 13 de abril de 2025

ESQUEÇAM JOHN FORD: NENHUM DIRETOR ESTADUNIDENSE DE WESTERNS FOI MAIOR QUE SAM PECKINPAH. VEJAM E CONSTATEM

John Ford tem uma baita lista de westerns no seu currículo e alguns foram muito marcantes, como No tempo das diligências (1939), Paixão dos fortes (1946), Rastros de ódio (1956) e O homem que matou o facínora (1962).

Bem maior, contudo, é a relação dos seus bangue-bangues convencionais, feitos para serem exibidos nas matinês de domingo e depois esquecidos. 

Afora terem abordagens ingênuas, na linha da imagem que a classe média dos EUA cultivava de si própria, bem como cativas dos valores que o cinema de Hollywood era obrigado a martelar na cabeça de seus públicos (caso da prevalência da lei e da ordem em territórios que, na verdade, estavam mais para grotões selvagens, onde a verdadeira lei era a do mais forte).

Então, embora com um número bem menor de títulos do gênero, em termos qualitativos Sam Peckinpah foi o cineasta mais foi fiel ao velho Oeste como ele era e não na visão bonitinha mas ordinária que os estadunidenses adoram projetar. 

Pôde fazê-lo por ter-se afirmado exatamente na década de 1960, quando o cinema dos EUA começou a voltar-se para enfoques críticos, deixando de ser a fábrica de ilusões de até então. Peckinpah, descendente dos índios paiutes, era bem o diretor capaz de mostrar aquilo que antes era escondido debaixo do tapete. 

E o fez de forma magnífica, em westerns tais quais Pistoleiros do entardecer (1962), Meu ódio será sua herança (1969), Pat Garrett e Billy the Kid (1973) e Tragam-me a cabeça de Alfredo Garcia (1974)

[Isto sem falar noutros tantos clássicos ambientados na atualidade (Sob o domínio do medo/1971, Cruz de Ferro/1977, etc.)]

A visão de Peckinpah sobre esses dois personagens lendários do velho Oeste destaca o aspecto de terem sido ambos foragidos e amigos antes de Garrett (James Coburn), sentindo o peso dos anos e ansiando por uma vida mais tranquila, tornar-se xerife e ser obrigado a perseguir Billy (Kris Kristofferson).

Cheio de remorsos por estar desempenhando um papel que lhe repugna, ele parece mais velho e acabado a cada aparição na tela. É um faroeste outonal sobre a má consciência e tem uma trilha musical magistral de Bob Dylan (que também atua como ator secundário) realçando a melancolia da longa perseguição por um enorme território, o que torna muito difícil seus caminhos se cruzarem.

Lamentavelmente, tanto no lançamento cinematográfico no Brasil quanto na primeira versão em VHS havia um corte de quase 20 minutos, mutilando a poesia do filme. Fazia enorme diferença. (por Celso Lungaretti)   

Clique aqui para ver Pat Garrett e Billy the Kid completo no Youtube

sábado, 12 de abril de 2025

COMUNICADORES ÉTICOS DEVERIAM RECUSAR A GRANA IMUNDA DAS BETS?

Logo ao abrir o UOL meu tema de hoje me encontrou: a ética das celebridades x a grana imunda dos anunciantes.

A figura simpática do locutor esportivo Galvão Bueno, num anúncio enorme da Bet Nacional, despertou-me, em primeiro lugar, ojeriza, depois uma reflexão: por que um homem tão estimado pelo grande público se presta a estimular um negócio tão condenável e nocivo quanto o vício na jogatina?

Tal ambiguidade moral é tida como perfeitamente aceitável no Brasil. Ganhar dinheiro justifica tudo, mesmo quando se trata de um cidadão que já está podre de rico. 

Que necessidade tinha o Galvão. na etapa final de sua existência, de associar sua imagem à de crianças famintas porque o pai torrou toda a grana do mês, incapaz de desencanar da ilusão de que poderia ganhar uma fortuna facilmente? 

Afora o fato de que parte das empresas que exploram tal filão tem como principal objetivo a lavagem do dinheiro sujo de atividades criminosas. Não sei nem quero saber se é o caso daquela que tem o Galvão como seu idoso propaganda, mas cada um desses anúncios é chamariz para mesmerizar todos os apostadores em potencial. 

A Bet Nacional, bem como as contratantes anteriores do Galvão, pode ser angelical e estar totalmente isenta dos pecados cometidos por congêneres, mas, nem assim, um comunicador ético deveria colocar-se a seu serviço, salvo, talvez, no caso de estar em bancarrota.

Chocou-me, sobretudo,  o fato de que o Galvão, tendo quase a minha idade, entrou numa roubada na qual eu jamais entraria. 

Nunca nadei em dinheiro e já passei por crises financeiras extremadas para cumprir as obrigações que tinha ou acreditava ter para com meus entes queridos (eu mesmo jamais fui consumista e/ou perdulário, privando-me facilmente de quase todos os objetos do desejo dos homens da minha idade e condição social). 

No entanto,  nem mesmo nas minhas piores pindaíbas, ajudaria a entoar o canto de sereia que está levando muitos pais de família a pedir adiantamentos salariais no emprego para cobrir perdas de jogo de azar. 

Isto já foi confirmado por pesquisas sérias. Bem como que grana do Bolsa Família está sendo desviado para algo que só serve para fazer a desgraça das famílias. 

O capitalismo, em sua fase agônica, é totalmente imoral. Topa qualquer negócio e difunde ao máximo, expressa ou veladamente, a mentalidade oportunista de que tudo é válido para engordar nossas contas bancárias, pouco importando se carecemos de centavos ou dispomos de bilhões sobrando.

Eu sempre vou considerar que a notoriedade nos obriga a ser mais zelosos dos exemplos que damos à coletividade. Bem mais zelosos do que seria lícito exigir dos cidadãos comuns. 

Lembro-me do meu avô, que tinha uma média marcenaria e trabalhava tanto ou mais do que seus empregados. Ao final de um dia exaustivo, ele ainda ia fazer a entrega dos itens que produzira. Certa vez, depois de acomodar toda a carga em sua kombi, alguém notou um pequeno risco num dos carrinhos de chá já embalados.
Meu tio, que trabalhava com ele, tentou argumentar que ninguém notaria, portanto não havia motivo para se perder tempo com algo tão insignificante. Vovô respondeu:

"A firma tem meu nome, e o meu nome não pode circular riscado por aí. Vamos envernizar de novo e dar uma verificada em todo o resto, para termos certeza de que não há qualquer outra peça desse jeito".

Eu tinha apenas uns dez anos de idade, mas admirei tanto esse exemplo de conduta que jamais o esqueci e procurei agir de forma semelhante pelo resto da vida.    (por Celso Lungaretti)  

Related Posts with Thumbnails