quarta-feira, 15 de janeiro de 2025

CORONEL PRESO PELO 08.01 DIZ: CELULAR USADO POR GOLPISTAS ERA DO EXÉRCITO.

Apesar de os militares ultradireitistas se proclamarem defensores das heroicas tradições das Forças Armadas, muitos deles não hesitam em isentar-se de suas responsabilidades jurídicas transferindo-as para suas respectivas corporações.

Caso do torturador-símbolo do Brasil, Carlos Alberto Brilhante Ustra, o herói do Jair Bolsonaro. Acusado pelo ex-preso político Ivan Seixas de haver torturado o jornalista Luiz Eduardo da Rocha (que acabou morrendo), Ustra afirmou que quem deveria estar no banco dos réus era o Estado:
"A lei é bem clara a esse respeito, ela diz que se um agente de Estado comete um crime no exercício de sua função, quem é responsabilizado é a Nação, é o Estado. No meu caso, se crime eu tivesse praticado, e eu não pratiquei, eu não poderia estar sentado no banco dos réus. Quem tinha de estar sentado no banco dos réus era o Estado e não eu".
Foi uma das ocasiões em que ele desabafou nas entrelinhas, pois considerava haver cumprido fielmente a missão que o Exército lhe confiara, de comandar um centro de torturas, e sentia-se abandonado pela instituição na hora em que suas ações e omissões estavam sendo amplamente expostas à opinião pública.

Na mesma linha, a defesa do tenente-coronel Rodrigo Bezerra de Azevedo, que está preso desde novembro último, afirmou em petição recém encaminhada ao Supremo Tribunal Federal que o telefone celular por ele utilizado no plano para sequestrar ou assassinar o ministro do STF Alexandre de Moraes seria, na verdade, um aparelho funcional do Comando de Operações Especiais do Exército Brasileiro.

De resto, no quesito transferência de culpa, Jair Bolsonaro é hors concours: sempre encontra algum nome para apontar como responsável por aquilo de que está sendo acusado. 

Antigamente ele seria chamado de anjo da cara suja... (por Celso Lungaretti)

domingo, 12 de janeiro de 2025

...E A MÚSICA DE HOJE VAI PARA O PALHAÇO PENETRA: "ALEGRIA, ALEGRIA".

H
á quase seis décadas o Caetano Veloso dizia estar caminhando contra o vento, sem lenço, sem documento.

O bufão golpista, por sua vez, ora anda caminhando ao relento, sem mandato, sem passaporte.

Tentou dar um migué no Xandão, pedindo a liberação do seu passaporte para ir na posse do Trump, mas não colou, pois o ministro do STF exigiu que ele provasse ter sido realmente convidado para a festa.

O que esses dois personagens têm em comum, afora um já estar condenado pela Justiça do seu país (embora sem ter de cumprir pena) e o outro prestes a sê-lo (devendo, pelo conjunto da obra, mofar 30 anos em cana)?

Dois bons perfis foram traçados pelo colunista Walter Maierovitch. Vale reproduzir:
  • Trump não é fujão. Não entrega aliados. É poderoso economicamente e chegará ao poder real no dia 20. Goza de amplo apoio popular, esperteza, desonestidade e falta de escrúpulos.
  • Já Bolsonaro não tem mais o poder, o mandato presidencial. É fujão e covarde ao entregar aliados. Não é poderoso economicamente, apenas um peculatário de joias da União. Não goza de apoio popular majoritário. No fundo, só é desonesto, golpista e populista como Trump.

Atualização: um convite para a posse do Trump foi mesmo enviado
para o Eduardo Bolsonaro pelo site t47inaugural.comMas tal site
vendia convites para a posse, daí o Alexandre de Moraes ter suspeitado
de que os bolsonaristas estivessem tentando novamente entregar cloroquina
em vez de vacina. Os advogados do Jair não conseguiram provar o contrário. 

sábado, 11 de janeiro de 2025

FUZILARIA CONTRA ASSENTAMENTO DO MST SINALIZA QUE A EXTREMA-DIREITA NÃO DESISTIU DO GOLPE

O ataque ao assentamento Olga Benário do MST, que surpreendeu 20 trabalhadores e líderes rurais, assassinando covardemente três deles, deve ser visto como provocação da extrema-direita para insuflar uma beligerância que lhe permita continuar acumulando forças para um golpe de Estado. O objetivo  de estabelecer nova ditadura continua em pé.

Salta aos olhos que, controlando o Congresso Nacional e se beneficiando da crescente rejeição ao Governo Lula, a direita convencional é franca favorita para conquistar a presidência da República em 2026.

Mas isto não basta para os extremistas de direita que, como em 1964, querem mesmo é obter um poder ilimitado. Daí eles estarem investindo em atentados, na esperança de suscitar reações contrárias; ou seja, seu objetivo é gerar uma espiral de violência política que lhes sirva como pretexto para mais uma virada de mesa. 

Lula corre sério risco de não terminar o mandato caso continue dando respostas frouxas aos sucessivos desafios ultradireitistas. A situação só não está pior porque os atentados a bomba desses terroristas (cujo impacto político seria muito maior) têm flopado. 

Mas, enquanto os responsáveis por essa onda terrorista não forem identificados e presos, a tendência é eles produzirem estridência cada vez maior.

E enquanto o principal golpista do 08.01 permanecer em liberdade, continuará servindo como exemplo de que a determinação das autoridades em aplicar todo o rigor da lei contra os aloprados de direita é quase nenhuma. Isto só os estimula a barbarizarem e a matarem em escala cada vez maior. (por Celso Lungaretti)

IGREJA CATÓLICA JÁ ADMITE QUE GAYS SE ORDENEM PADRES, MAS EXIGE QUE NÃO PRATIQUEM SUA ORIENTAÇÃO SEXUAL

O Vaticano acaba de publicar documento aprovado pela Conferência Episcopal Italiana, orientando os seminários a permitirem que homens gays se ordenem padres, desde, contudo, que se conservem celibatários. 

Antes, numa instrução de 2016, a determinação fora a de barrar seminaristas que tivessem tendências homossexuais profundas.

E, numa entrevista de janeiro de 2023, o papa Francisco também se enrolara com o assunto, ao qualificar a homossexualidade de pecado, mas não crime.

O celibato foi instituído oficialmente no Concílio de Latrão, em 1123, e reafirmado tanto noutro Concílio de Latrão. 16 anos depois, quanto no Concílio de Trento, em 1563. 

Vale lembrar que a opção pelo celibato não adveio das palavras de Cristo, mas sim do risco de filhos de padres reivindicarem, como herança paterna, propriedades da Igreja. 

Hoje essa restrição soa tão desumana que melhor seria a Igreja nem tocar mais no assunto. 

Pois, para grande parte das pessoas bem resolvidas do século 21, o sexo proporciona muito mais felicidade do que as religiões. (por Celso Lungaretti)

sexta-feira, 10 de janeiro de 2025

TRUMP TRAVARÁ GUERRAS DE CONQUISTA COMO PUTIN OU APENAS TENTA ANEXAR TERRITÓRIOS NO GRITO COMO HITLER?

rui martins
AS AMEAÇAS DE
 TRUMP PARA 2025
O ano começa mal e poderá ficar pior. Quem garante isto é o bilionário Donald Trump, que volta à presidência dos Estados Unidos quatro anos depois de ter incitado o ataque ao Capitólio. 

Saboreando seu retorno ao poder, quer posar como um conquistador e não se envergonha de revelar suas aspirações expansionistas: tomar o Canal do Panamá, apossar-se da Groenlândia e tornar o Canadá um novo estado dos EUA, com o uso da força militar se for preciso. Esse é só o aperitivo, depois tem mais…

Estamos delirando, foi champanhe demais no réveillon ou Trump está propondo mesmo trazer a guerra para perto de nossas fronteiras? O presidente do Panamá, José Raúl Mulino, já disse não estar disposto a ceder os 77 km do canal, projetado e iniciado em 1880 pelo francês Ferdinand de Lesseps. Cinco anos depois, a empresa faliu.

Nessa altura, a região onde tinham começado as obras do canal pertencia à Colômbia. Mas o presidente estadunidense Theodore Roosevelt percebeu a importância geográfica e econômica do empreendimento e negociou o controle da região com os colombianos para concluir o canal. Entretanto, o Senado daquele país não aprovou o acordo.

Diante desse impasse, os EUA incentivaram o movimento de independência do Panamá que, em contrapartida, lhes concederia o controle da região e a continuação da construção do canal. A frota estadunidense ficou por perto, impediu a intervenção colombiana e os EUA passaram a ter o controle da zona, pagando também US$ 10 milhões mais como uma espécie de aluguel anual.

Com base nas pesquisas de um médico cubano, foi promovida a erradicação dos mosquitos transmissores da febre amarela, em 1905, causadores até então de milhares de mortes de trabalhadores. 
O canal foi inaugurado em 1913 com a presença do presidente estadunidense e foi muito utilizado pelos EUA durante a Segunda Guerra Mundial para chegar ao Japão depois do ataque nipônico a Pearl Harbour.

No fim do século passado, foram aplicados os tratados que previam uma entrega gradual do controle da região ao Panamá. Esse controle implicou a ampliação do canal, a fim de poder ser utilizado por navios maiores e mais largos.

Se Donald Trump quiser retomar o controle do canal poderá negociar um novo acordo com o Panamá. Imagina-se ser a ameaça de uma invasão armada um tipo de pressão própria de Trump. Como no passado, os EUA de Trump poderiam usar de sua força econômica e militar para fomentar um golpe, em troca do retorno do controle do canal.

No caso de um ataque militar, o Panamá não terá condições para se defender, pois desde 1990 dissolveu as forças armadas, decisão confirmada quatro anos depois pelo Parlamento. Entretanto, é imaginável a intervenção direta ou indireta de alguns países e a criação de um clima geral de instabilidade. O Brasil teria um papel importante nesse tipo de crise.

Em todo caso, o presidente José Raúl Mulino já disse que cada metro quadrado do canal continuará pertencendo ao Panamá.

Com relação à ameaça trumpista de apossar-se da ilha da Groenlândia, ela revela a maldosa dualidade do seu pensamento. 

Embora seja negacionista e esteja disposto a bloquear e dificultar todas medidas destinadas a impedir ou atrasar o processo das mudanças climáticas, Trump deseja abocanhar essa região pouco habitada, administrada pela Dinamarca, para os EUA se beneficiarem do derretimento das águas marítimas próximas do Ártico.  

Assim passariam a dispor de uma nova rota marítima para a Ásia, além de poderem tornar-se base estratégica, pois a ilha de Groenlândia é rica em recursos minerais e petróleo

Com relação ao Canadá, Trump não pretende enviar tropas armadas, mas exercer uma forte pressão para o governo canadense se convencer de que levaria grande vantagem integrando-se nos EUA, não só do ponto de vista aduaneiro com o fim das taxas alfandegárias, como pela proteção representada diante, no caso de guerra, de ataques de navios russos ou chineses.

Esta questão alfandegária foi um dos pontos de desacordo dentro do governo canadense, responsáveis pela demissão do primeiro-ministro Justin Trudeau, para quem o Canadá nunca, jamais, fará parte dos Estados Unidos. Ao que Elon Musk respondeu, trocando maldosamente presidente por governador: Você não é mais governador do Canadá, o que você diz não tem nenhuma importância.

Como se não bastasse Donald Trump ter o apoio irrestrito de Elon Musk, dono da plataforma X, acaba de receber a sujeição de Mark Zuckerberg, dono da Meta. Ambos são contrários a qualquer tipo de controle das redes sociais, abrindo o caminho para o uso em profusão das fake news. (por Rui Martins)

quinta-feira, 9 de janeiro de 2025

TELEDRAMA DO LUNGARETTI, INSPIRADO EM CANÇÕES DO VANDRÉ, RESGATA O PIOR MOMENTO DOS NOSSOS ANOS DE CHUMBO

 celso lungaretti
GERAÇÃO MALDITA

"O anel que tu me deste,
eu guardei pra me ajudar,
construí numa viola
de madeira o teu altar

O amor que tu me tinhas,
eu roubei pra me salvar,
toda hora em que a danada
da saudade me pegar

Joema dos olho claros,
bem verdes da cor do mar,
me dava tanta alegria
que eu não preciso sonhar

Basta me lembrar agora
das coisas que deixei lá,
Joema, sempre esperando
na praia do grande mar

Valdomiro das estrelas
não podia se encurvar,
tinha tudo que queria,
dizia tudo a pintar

Olhando pro céu de frente,
perdido sempre em chegar,
Valdomiro das estrelas
pedia para voltar

Que faço agora, Maria?
Que faço agora, diz já!
Se longe, eu ouço hoje
as coisas que vão voltar 

Me diz, quem vem comigo
agora, ao Deus dará,
nas coisas de todo mundo,
na vida do benvirá?"

Teledrama inspirado no clima e personagens da canção "Das Terras de Benvirá", de Geraldo Vandré; foi exibido em
outubro/1978 na ECA/USP.

Exilados latino-americanos vivendo na Europa. Carlos entra com estardalhaço.

CARLOS: Todo mundo preso! (sobressalto geral; Valdomiro erra pincelada no quadro)

GERALDO: Porra, eu já te disse pra não fazer esse tipo de brincadeira! Vai ficar toda hora lembrando as coisas pra gente, vai?

CARLOS: Que é isso, Geraldo, calminha! Não vamos fazer nenhuma tragédia por isso, né? O que passou, passou, ficou pra trás, então temos de encarar tudo com naturalidade. É a única maneira de sair dessa e partir pra outra, né? Então vamos lá, companheiro, abre um sorriso pra gente ver, vá!

GERALDO: E eu vou achar graça do que, da condição da gente aqui, das últimas notícias do nosso país?

VALDOMIRO: Do meu quadro, que você estragou?

CARLOS: Olha, Geraldo, nós aqui não poderíamos estar melhor, afinal não fomos expulsos até hoje. Nosso país (tom irônico), dizem que está virando uma grande potência, a gente deveria até festejar. E (para Valdomiro) esse teu quadro é a milésima versão da Lúcia nas praças e ruas da patriamada. Então, ainda sobram umas 999 pra você ficar aí todo embasbaco e macambúzio, sabe?, olhando a tela como se fosse a Virgem no altar. Só falta você se ajoelhar e beijar o cavalete.

VALDOMIRO: Tá, vai à merda! O que é que um liderzinho estudantil de subúrbio entende de arte? É só pintar um monte de proletas dando com as ferramentas na cabeça de uns burguesões...

CARLOS: É isso mesmo, companheiro! De preferência, uns burguesões de fraque e cartola, alisando a ponta dos bigodes, assim (imita o gesto).

VALDOMIRO: Então, bastaria eu partir pr'um realismo socialista desbragado pra você logo dizer que sou o maior pintor revolucionário do 3º Mundo?

GERALDO (abrupto): Como é, dá pra você me dizer se trouxe o jornal?

CARLOS: Olha, na edição da tarde tem uma notinha parecida com a da manhã. Diz que oito foram presos e dois feridos, mas não traz o nome de ninguém.

ANA: Mas não deve ser nada não, Geraldo, afinal existem tantos grupos atuando lá na Capital, por que teria de ser logo o do Otávio?

GERALDO: É, mas é uma merda estar aqui, longe de tudo, a gente fica o tempo todo se preocupando. Quando menos espera, abre o jornal e vê que pegaram um companheiro, um amigo...

VALDOMIRO: O que a gente podia fazer, já fez. Se ficássemos lá, com todo aquele clima de luta armada, nunca iriam permitir que nós continuássemos com os movimentos de cultura popular. Seríamos vigiados o tempo todo, perseguidos, presos, poderíamos até virar presuntos e a culpa ser jogada em cima de um Sabado Dinotos qualquer. E nem pra clandestinidade iríamos poder passar, todo mundo já viu nossa cara no jornal, na TV. Seria uma roubada pra nós e pros companheiros, que teriam de ficar tomando conta da gente.

CARLOS: Não é nada disso, Valdo, que nada! Vamos voltar agora mesmo que eu atiro livros na cabeça dos reaças, você joga a coleção de Lúcias, o Geraldo atira os discos, num instante a gente faz a primeira revolução tropicalista da História!

ANA: E eu, o que é que eu faço?

CARLOS: Ah, você atira as canetas dos teus alunos. Nunca te contaram que a pena é mais afiada que a espada?

VALDOMIRO: E pra você isso vai ser uma revolução ou uma comédia de pastelão?

CARLOS: As duas coisas juntas, afinal estamos falando de um país latino-americano, né?

* * *


Geraldo recordando a sua saída do país.

JOEMA: É a tua oportunidade, você tem de partir, amor!

GERALDO: Mas, eu posso me esconder na casa da tua irmã, eles não vão me procurar lá...

JOEMA: Ela não concorda com nossas ideias, como é que eu vou pedir que ela se arrisque por nós?! E tem também os vizinhos, tem aquele capitão que mora na esquina, tem os parentes que falam demais, você acabaria preso e complicando minha família!

GERALDO: Tem de haver um jeito de eu poder ficar!

JOEMA: Vai ser sempre um risco inútil, benzinho. Você mesmo me ensinou que o importante é a causa, não as pessoas. Agora é a hora de você se sacrificar, se preservar para o futuro. Afinal, você é um símbolo, teus versos vão continuar inspirando o pessoal daqui. E um dia você ainda vai voltar para cantar nossa vitória, junto com o povo na rua. Você precisa viver para esse dia, amor!

GERALDO: Mas, como eu posso partir e deixar você e o Otávio correndo perigo aqui?

JOEMA: Você me deu os primeiros livros e me convidou para aquelas palestras, quando você quis que eu participasse da tua vida e da tua luta. Você já deveria saber que um dia a gente poderia ter de se separar. Mas não se preocupa, não, Geraldo! Olha, eu tomo conta do Otávio porque ele é teu irmão, ele toma conta de mim porque sou tua companheira, então, no fim, não acontece nada pra nenhum de nós dois, tá, benzinho?! Isso, dá um sorriso, eu não quero me lembrar de você tão sério e carrancudo!

GERALDO: Se fosse tudo tão simples...
* * *



O chamado de Carlos desperta Geraldo de seus devaneios.

CARLOS: Geraldo! Geraldo! Acorda, pô! 'Tava querendo saber se você concorda que um companheiro que você não conhece, o Roberto, venha passar uns tempos aqui com a gente. Ele fez umas ações, caiu em fevereiro e foi pra Argélia no último sequestro. Agora ele se desligou da Organização e está com as idéias meio embananadas; quer parar pra pensar antes de decidir alguma coisa. A gente pode dar uma força pra ele, né, que ele está quase sem grana e precisando mudar do apartamento do Osvaldo. Sabem, tem uns dez caras amontoados lá e vão chegar mais na semana que vem.

GERALDO: Por mim, pode trazer quem precisar, a gente sempre se ajeita.

VALDOMIRO: É, tudo bem.

ANA: Mas, pra mim não está nada bem! Solidariedade, solidariedade, é somente nisso que vocês pensam, não? Que importam as leis de exceção, as torturas, a destruição das entidades de massa? Vocês esquecem num instante que estão aqui por causa dos porralocas dos militaristas! Só querem saber de exibir sua solidariedade revolucionária, seu paternalismo pequeno-burguês, ajudar o coitadinho, pobrezinho, que até ontem estava botando fogo no mundo!

VALDOMIRO: Calma, Ana, calma, o que é que há? Estamos caindo no emocionalismjo, assim não dá pra discutir. Se você acha que o pessoal da luta armada provocou uma radicalização de direita, é um juízo político, a gente pode até concordar com você. Agora, você não pode negar que os companheiros que fizeram essa opção agiram por um ideal. Eles arriscaram a vida...

ANA: É, a deles e a nossa também!

VALDOMIRO: ...arriscaram a vida pra fazer a revolução do modo deles. A História provou que não tinham razão, mas...

ANA: Você está sempre botando panos quentes, sempre conciliando! É por causa de gente como você que esses aventureiros se colocaram à testa do processo, provocando uma ditadura que vai durar uma porrada de anos. E nós estamos aqui, fugindo que nem judeus errantes!

CARLOS: Aninha, Aninha, esse negócio de linhas, tendências, partidos, isso tudo é pra quem está lá no meio da luta. Aqui nós não passamos de uma meia dúzia de subdesenvolvidos, somos que nem um bando de índios na terra dos brancos. Se a gente não ajudar uns aos outros, vem a cavalaria e acaba com todo mundo. Uga, uga, mim, grande chefe Pena Desbotada, decreta a paz entre todos os peles-vermelhas...

ANA: Não brinca, Carlos, vamos discutir a sério. A gente está aqui, longe dos companheiros, dos amigos, não conhecemos quase ninguém aí fora; os gringos não querem nem ver cucarachas perto. A única coisa que sobra é nossa amizade, nossa união. Então, vem um guevarista fanático, com toda aquela carga de violência, e estraga nosso ambiente. Aí nem nesta casa vamos ficar em paz.

CARLOS: Mas Ana, isso é uma imagem que você criou, uma fantasia de sua cabeça. O Roberto não é nada disso. Pelo contrário, é calmo, intelectualizado, entende tanto de marxismo como qualquer um de nós aqui.

VALDOMIRO: Eu acho que você deveria fazer uma autocrítica, Ana, analisar até que ponto teu problema pessoal está influenciando teu posicionamento.

ANA: Eu não tenho nenhum problema pessoal. Eu só queria que vocês pensassem um pouco antes de trazer aqui pra dentro um militarista desses, que vai ficar o tempo todo defendendo o seu aventureirismo e quebrando o pau com a gente!

* * *


Ana relembra a noite de sua prisão, a morte do marido, as torturas.

ANA: Acorda, Ju, acorda!

JÚLIO: Hã, hã, o quê?

ANA: Tocaram a campainha!

JÚLIO: Mas agora, porra! E que horas... mas são quase quatro horas!

ANA: Meu amor, meu amor, e se for a repressão? Eu disse pra você não ficar dando abrigo pra esse pessoal da guerrilha!

JÚLIO: Mas, que é isso, meu bem? Eu tinha de ajudar, a solidariedade revolucionária... (novo e longe toque de campaínha). Mas, não deve ser nada, não. Fica aqui que eu volto já.

VOZ: Onde é que ele está? Diz logo, filho da puta!

VOZ: Aqui! (fuzilaria)

JÚLIO: Não! Não!

VOZ: Algema ela! Bota o capuz!

VOZ: Quem contatava seu marido? Quando ele ia ter o próximo ponto? Você também conhece os aparelhos? Fala, sua vaca, fala! (Ana grita, ofega)

* * *


Ana e Valdomiro conversando, na calmaria subsequente ao ato sexual.

ANA: Você tinha razão. Era por causa do Júlio. Nem sei se por causa dele mesmo ou da minha vida com ele. Era o que vocês chamariam de uma vidinha pequeno-burguesa, mas eu gostava. Gostava de viver sem susto, cuidando da casa, das crianças, do meu jardinzinho. Toda a rotina de uma dona-de-casa alienada. E daí? Não nasci pra grandes aventuras, nunca pensei em mim transformando o mundo. Acho que casei com o Júlio porque ele era seguro, tranquilo, tomava todas as decisões. Sabia o que era melhor pra nós dois.

VALDOMIRO: E mesmo assim vocês entraram pro partido?

ANA: Bom, até o golpe militar a gente não se interessava pela política. Aí foram todas aquelas prisões, perseguições... o Júlio viajando a serviço e conhecendo aqueles cafundós... tanta miséria, tanta injustiça... No fundo, no fundo, nem ele nem eu seríamos revolucionários se vivêssemos numa democracia de 1º Mundo. Quanto muito entraríamos num partido de centro-esquerda, sei lá... Mas, é que no nosso país a gente não tinha opção. Ou ficava quietinha engolindo tudo que o governo fazia ou entrava pra esquerda. Então, o Júlio acabou entrando e me levando junto.

VALDOMIRO: E acabamos todos no mesmo barco, lambendo as feridas e esperando a hora de voltar...

ANA: Depois de tudo isso eu já nem sei se vale a pena voltar. Se não fossem as crianças...

VALDOMIRO: Nem pense nisso, Aninha. A ditadura não é eterna. A gente ainda vai ver todo mundo feliz, todo mundo rindo, todo mundo se amando. Você precisa voltar pra ensinar a seus filhos, a seus alunos. Explicar pras novas gerações o quanto vale a liberdade. Tudo que passamos não vai valer nada se não fizermos com que essa seja a última ditadura. Se a gente não despertar o povo pra defesa dos seus direitos, pra que o povo nunca mais aceite um regime como esse.

ANA: Do jeito como você fala, parece que a gente vai voltar e encontrar o país do jeitinho que era. Mas, será que com todos esses anos de lavagem cerebral eles não vão conseguir mudar as pessoas? Será que quando a gente voltar o povo ainda vai se lembrar de nós, vai querer ouvir o que a gente tem pra dizer?

VALDOMIRO: Não sei, francamente não sei. Até agora eu vivi para minha obra, e fiz da minha obra o instrumento para despertar as pessoas para a vida, para a harmonia, para a felicidade. Eu entrei na política para aprender mais sobre a vida, para ter coisas mais importantes para transmitir. Se tudo isso não serviu para nada, se quando eu voltar ninguém mais estiver interessado num futuro melhor, em ver na arte o que o mundo deveria ser e depois transformar o mundo... aí, não sei, acho que minha vida terá sido completamente inútil (revê sua dedicação à arte, seus esforços para expressar uma verdade maior nas telas).
* * *


A festa e a batucada com que festejam a chegada de Roberto fazem Carlos relembrar suas alegrias passadas, os discursos que fazia quando o povo ainda tinha lugar na praça.

CARLOS: Eles estão sozinhos, trancados nos gabinetes, escondidos atrás das tropas, prisioneiros do próprio poder. Nós estamos livre no seio das massas, são eles que nos dão esperanças, são elas que nos dão força, são elas que nos apontam o rumo, são elas que nos conduzirão até a revolução. Quando estamos ao lado do povo estamos sempre certos, somos tão fortes que ninguém pode nos derrotar. Quando estamos separados das massas não somos nada, somos a poeira varrida pela História!

* * *


Discussão política, com a participação de todos os membros da comunidade.

ROBERTO: Nós não romantizamos a guerrilha, nem endeusamos as armas. Nosso objetivo sempre foi político. Quando a repressão estourou as entidades de massa, quando eles ocuparam cidades operárias com as tropas para prender grevistas e aterrorizar a população, quando as passeatas estudantis já não tinham o que fazer se não andar de um lado para outro no centro da cidade, então nós nos organizamos para oferecer uma opção, um caminho para o qual pudesse ser canalizado todo esse movimento de massas, criando uma alternativa de poder.

ANA: E isso tudo isolados do povo, escondidos nos aparelhos, querendo fazer a revolução só com estudantes e intelectuais?

ROBERTO: Junto com as massas a repressão acabaria localizando a gente. Prende um operário, ele entrega a base da fábrica, daí é aberto o coordenador do movimento de massas e logo acabam caindo todos os elos da corrente. Para sobrevivermos na luta era necessário nos organizarmos como revolucionários profissionais, vivendo unicamente para a causa.

CARLOS: Mas que adiantava sobreviver se o povo não participava da sua luta nem se interessava por suas ações?

ROBERTO: Numa outra fase do processo executaríamos ações de propaganda armada, como expropriarmos gêneros de primeira necessidade para distribui-los nas favelas, tomarmos supermercados para o povo saquear, ações desse tipo. Além disso, não esperávamos vencer o imperialismo só no nosso país, sabíamos que era impossível. Nossa ideia era desencadear a luta em larga escala, coordenada com os grupos guerrilheiros de outros países, como os tupamaros e o ERP.

ANA: E por que deu tudo errado?

ROBERTO: Foi uma corrida contra o tempo. Nós demoramos tanto para priorizar a luta armada que, quando começamos pra valer, já era tarde, o imperialismo estava bem preparado. Veja o caso do nosso país: eles investiram rios de dinheiro, criaram o milagre econômico, a classe média passou a apoiar o regime, nós acabamos sozinhos e agora a repressão está liquidando nossas Organizações, uma por uma.

GERALDO: Você não acha que foi uma tentativa desesperada?

ROBERTO: Até certo ponto, sim. Nós sabíamos que os militares utilizariam o estado totalitário para conduzir nosso país a um estágio capitalista mais avançado, com o predomínio absoluto das grandes empresas na economia, a colocação do ensino a serviço do capital, a propaganda fascistóide, tudo isso. Então, tínhamos de evitar que eles reestruturassem a sociedade dessa forma, caso contrário as possibilidades de uma revolução ficariam afastadas por um longo período. Foi por isso que arriscamos tudo, nenhum de nós queria esperar mais 20 ou 30 anos por outra situação potencialmente revolucionária.

ANA: Só que, com esse imediatismo pequeno-burguês, vocês acabaram quase todos dizimados e a ditadura ficou ainda mais forte...

ROBERTO: Putz, a companheira pega pesado! Olha, pelo menos uma coisa temos certeza que fizemos: nós lavamos a honra da esquerda, depois daquela rendição sem luta quando os militares tomaram o poder. Quem sabe se nós não pagamos as contas do passado, deixando o terreno limpo para que a juventude entre na luta sem traumas, sem nossa necessidade obsessiva de provar que também tínhamos coragem de sangrar por uma causa?

CARLOS: Mas, a repressão está liquidando as lideranças forjadas em décadas de luta. Assim a juventude ficará sem memória, sem referencial, vai ter de recomeçar tudo da estaca zéro.

VALDOMIRO: Não sei, eu às vezes sinto como se nós fôssemos uma geração maldita, que sentiu como nenhuma outra a necessidade de lutar mas não tinha opção correta para fazer. Parece que a História só nos conduziu a ruas sem saída, e mesmo assim brigamos, polemizamos, discutimos, fizemos o impossível para convencer uns aos outros, trazê-los para a posição que achávamos correta, sem perceber que todas elas acabariam num mesmo fracasso. Num enorme fracasso.

CARLOS: Pelo menos cada um de nós seguiu até o fim suas opções, sacrificou tudo por elas, se entregou à luta como nenhuma outra geração. Esse exemplo a gente deixa pro futuro.

VALDOMIRO: O futuro só fixará nossa derrota. Perdemos, logo estávamos errados. Para eles, esse vai ser o veredito da História.

* * *


Roberto se despede de cada um dos companheiros, pois decidiu voltar ao seu país. Todos estão emocionados. Até Ana o abraça, chorando. Depois que sai, comentam sua opção.

GERALDO: Ele sabe que a luta está perdida, não tem mais nenhuma esperança, então por que é que resolveu voltar? Está indo direto pro matadouro.

VALDOMIRO: O problema do Roberto é que ele perdeu os amigos, os irmãos, a companheira. Todos de quem gostava acabaram presos ou mortos. Ainda por cima, ele não vê a menor possibilidade das coisas melhorarem em nosso país nos próximos anos. Então, o Roberto chegou até a pensar num recuo, mas não viu nada do outro lado. Não havia mais lugar onde quisesse ficar, nem pessoa que o prendesse à vida. Acabou se solidarizando com os últimos da sua Organização. Vão lutar até o fim...

GERALDO: E acabar presos ou mortos.

VALDOMIRO: Ou mortos. O Roberto, pelo menos, acho que nunca vai cair vivo. Ele sabe muito bem o que encontrará nos porões.

GERALDO: É, estamos no tempo dos mártires.

VALDOMIRO: E muita gente ainda vai morrer à toa. Mas, para o Roberto, talvez seja mesmo a melhor opção. Gente como ele aguenta qualquer sacrifício no presente porque vive sonhando com o futuro, com o dia em que nosso país for libertado. Mas, quando descobre que a revolução não é mais pra amanhã nem pros próximos anos, já não consegue voltar pra rotina. A vidinha normal não significa mais nada para ele. O Roberto viveu com tanta intensidade seu sonho que tinha de morrer junto com esse sonho.

GERALDO: E você, ainda tem esperanças?

VALDOMIRO: Tenho pensado muito nisso e acredito que ainda valha a pena viver. Mesmo que as novas gerações não se interessem por nossas histórias, temos de insistir, procurar os meios para transmitir tudo que aprendemos. Afinal, poucos dos que participaram das últimas fases da política revolucionária sobreviveram. Temos de tornar conhecidas as lições que aprendemos com tanto sacrifício, para evitar que a juventude pague o mesmo preço por seu aprendizado. Para isso faz sentido voltar, faz sentido esperarmos o dia certo para voltar.


 Obs.: trabalho em grupo feito na ECA-USP para a cadeira de Linguística. Tínhamos de
escolher uma obra artística, dela derivar uma história que permitisse destacar o
jargão utilizado por determinado grupo social e apresentá-la por meio de
audiovisual, programa radiofônico, filme, teleteatro, etc.  Sugeri a
canção do Vandré sobre exilados porque era um assunto na
ordem do dia e porque seria fácil trabalharmos em cima
do jargão da esquerda. Fiquei com a tarefa de criar
o script. E acabei me envolvendo muito com
as situações enfocadas, por estarem
próximas da minha vivência. O
vídeo despertou interesse,
causando polêmica.

terça-feira, 7 de janeiro de 2025

AS GUERRAS NUNCA MATARAM TANTO COMO NOS ÚLTIMOS 200 ANOS: SÃO OS ESTERTORES DO CAPITALISMO AGÔNICO

dalton rosado
O ADENSADO MÓVEL DA GUERRA
"A primeira vítima da guerra é a verdade"
(Hiram Johnson, político profissional
estadunidense do século passado) 
As guerras, ao longo dos tempos, sempre se caracterizaram pelo desejo de subjugação política territorial com sentido de exploração de riquezas materiais ou escravização de uns grupos por outros. 

Entretanto, em nenhum momento da história humana as guerras mataram tanto como nos últimos 200 anos de dominação capitalista, que vão desde as campanhas napoleônicas até as ameaças de hecatombe nuclear dos dias atuais, passando por dois conflitos mundiais.   

O capital é belicosamente genocida, individualista, antissolidário, negativamente meritocrata competitivo, mesquinho, racista, misógino, xenófobo e prepotente porque dá ordens absolutistas letais aos seus súditos inconscientes da servidão a que se prestam. 

O pequeno comerciante de bairro, outrora assalariado, tem como objetivo inescapável o desejo de ampliar mercado, porque mesmo sem compreender cientificamente a essência constitutiva do capital e sua necessidade de autorreprodução ad infinitum (já aí uma contradição com os limites do consumo) sem a qual o dito cujo sucumbe, ele percebe, na sua sensibilidade de esperto negociador, que há uma lei de mercado segundo a qual quem não cresce, decresce

Assim, ele é inimigo na guerra concorrencial de mercado com seu congênere de bairro, ainda que se cumprimentem nas reuniões da escola privada a que os dois têm acesso, de vez que não querem que seus filhos estudem na escola pública carente de tudo (são membros da precária elite entre os muitos comunitários pobres). 

Este é um exemplo microssocial do caráter negativamente individualista, antissolidário e negativamente competitivo da relação social sob o capital que se reproduz na escala macrossocial política e econômica.  

O capitalista conservador inverte os conceitos e transforma o que é negativo em positivo. Vejamos alguns poucos exemplos: 
-- a história da negação vacinal remonta, no Brasil, aos idos de 1904, quando Osvaldo Cruz aconselhou a vacinação obrigatória contra a febre amarela, varíola e peste bubônica, causando revolta na população do Rio de Janeiro, mesmo diante das muitas mortes epidêmicas que estavam ocorrendo (dizia-se que Deus era contra aquela bruxaria, algo parecido como virar jacaré ou homossexual); 
-- a vitória destrutiva do outro na competição mercantil fratricida se transforma em justa recompensa segundo o viés da meritocracia;
-- o rico é rico porque é inteligente enquanto trabalhador é pobre porque é ignorante ou preguiçoso;
-- as melhorias urbanas dos bairros ricos, contrastando com os bairros pobres de uma cidade socialmente cindida, são justificados pela retórica da necessidade de se promover o turismo, por questão de antiguidade residencial, das edificações públicas importantes, pela cobrança diferenciada de impostos sobre a propriedade urbana, etc.;  
-- o engarrafamento do trânsito nas grandes cidades entupidas de carros e sem transporte público adequado, se deveria à incompetência administrativa governamental, e não ao irracional comodismo individual dos burgueses, que fazem questão de usar seus carros confortáveis;
-- o incrível aumento da criminalidade se deveria à deficiência policial e abrandamento das penas e liberalidades aos presos, sem se levar em conta o alto custo de combate à criminalidade numa sociedade que produz altos níveis da dita cuja pela desigualdade social e maus exemplos (o capital é intrinsecamente corrupto), e por aí vai.
       

Ora, plasmadas sob um contrato social injusto, como poderiam as nações, constituídas sob um nacionalismo capitalista xenófobo, praticarem uma cultura de paz? 

A guerra já começa no interior de uma sociedade socialmente cindida que induz a um processo de criminalidade impossível de ser contido pela força militar, sem se levar em consideração o alto culto do combate à dita cuja, que vai desde o policiamento ostensivo preventivo, processamento judicial e aprisionamento carcerário. Um crimino preso, processado e condenado, é muito mais caro do que um professor.  

A guerra nada mais é do que a explicitação genocida de uma concepção de relação social política e econômica injusta praticada no interior das nações e nas relações destas com todas as outras.  

Os antigos feudos transitaram das guerras de conquista desde antes do Império Romano até a criação das nações numa tentativa de moderna hegemonia econômica destas e, agora, por blocos capitalistas insanos.    

Assim como as cidades burguesas são cindidas em bairros pobres (a maioria) e bairros ricos (a minoria), os países nacionais, mesmo com gradações diferenciadas de consumo dos seus habitantes, e de acordo com seus padrões de produção de mercadorias e exportação destas com valores agregados, obedecem a critérios de pobreza e riqueza próprios à exploração do capital. E as nações, entre si, obedecem a estas características de ilhas de riqueza e oceanos de pobreza. 

Ora, se desde o pequeno comerciante de bairro se processa uma guerra autofágica na qual se concentra a riqueza e se destrói pela competitividade o concorrente, como se pode querer que as nações sejam solidárias uma com as outras evitando as guerras genocidas de conquista quando dependem do mesmo critério existencial autofágico de busca de conforto e bem-estar?    

Não se trata, portanto, de uma questão de falta de consciência humanitária, ainda que isto se manifeste claramente, mas de uma concepção de relação social decadente que busca nas guerras uma solução que jamais virá por essa via e que ameaça a todos de extinção.  

O Fundo Monetário Interacional avisa que a fome no mundo está aumentando. Ora, quando se busca a sobrevivência de um contingente humano diante da escassez de provimento desta mesma sobrevivência, a resultante lógica é a guerra fratricida. 

A queda na capacidade de consumo pelo critério da compra e venda representa redução da produção de mercadorias, uma vez que sob a lógica capitalista somente se produz o que se vende e este é o começo do final da linha histórica.  
O fluxo da economia necessita de produção de valor a qualquer custo, principalmente para financiar o setor terciário (da mercadoria serviços, maior parcela componente dos PIBs mundo afora, que não produz valor novo). Contudo, valor válido somente pode existir pela produção de mercadorias dos setores primário (agronegócio) e secundário (industrial).  

Aí está o nó górdio da crise do capital, porque a emissão de moeda sem valor válido representa vida artificial capitalista por aparelhos, que não se sustenta por muito tempo.  

Tal é o móvel do adensamento das guerras atuais: a tentativa inglória de sobrevivência nacional dentro de um modelo que atingiu o seu limite de expansão interno (a impossibilidade de reprodução de valor válido) e externo (a impossibilidade de contenção da crise ecológica que lhe é incidental).      

A transição para uma hipotética, mas muito desejável terceira natureza humana --e isto desde que não sucumbamos à sanha genocida do capital que precisa urgentemente ser superado sem as firulas de reformas que apenas o conservam na sua essência--, representará a ruptura com a irracionalidade socialmente destrutiva e autodestrutiva da própria forma abstrata de comando negativo da relação social sob a qual vivemos. 

Tal ruptura promoverá o raiar luminoso de um novo dia. (por Dalton Rosado)     
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