quarta-feira, 9 de outubro de 2024

TIRANDO O VÉU DO IRÃ

 Depois da entrevista coletiva para a imprensa internacional, me coloquei no caminho da saída do entrevistado e à sua passagem lhe estendi a mão, me identificando em francês: "sou jornalista do Brasil, tenho seguido seus filmes e suas denúncias. Espero que seja bem acolhido no país no qual vai viver seu exílio".

Houve um forte aperto de mãos. Enquanto eu fixava seu rosto, ele me sorria, ouvindo a tradutora lhe transmitir em persa meu recado. Talvez lhe tenha parecido original a preocupação do jornalista com a acolhida no lugar onde vai viver, mas isso é próprio de quem já viveu o exílio.

Foram apenas alguns segundos, revividos por mim nestes dias em que as manchetes dos noticiários falam do Irã. O entrevistado era Mohammad Rasoulof, cujo filme As Sementes do Figo Sagrado tinha recebido o Prêmio Especial do Júri no Festival de Cinema de Cannes e foi exibido no telão de 400m2 da Piazza Grande, no Festival suíço de Locarno.

O cinema é também uma maneira de se contar um país. Isso nós brasileiros vivemos durante a ditadura militar. Naquela época, em praticamente todos os festivais no exterior, o cinema brasileiro aparecia e dava sua mensagem denunciando a ditadura e os crimes cometidos pelos militares. Existe mesmo um ótimo texto do cineasta Thiago B. Mendonça sobre esse período de censura e controle, com o título A ditadura e o cinema brasileiro, ilustrado com uma conhecida foto do filme Terra em Transe, de Glauber Rocha.

Retornando ao Irã, existe um texto mais antigo, de Natalia Barrenha, que trata do redescobrimento do cinema iraniano há vinte anos, mas já começando a se defrontar com o problema do fundamentalismo da teocracia islâmica

 Talvez seja instrutivo agora, sob os clarões das explosões dos mísseis iranianos lançados sobre Israel, contar a história do filme de Rasoulof.

Mesmo porque existe a preocupação de alguns setores em mostrar aos brasileiros frequentadores de redes sociais só a visão positiva do Irã, quase uma propaganda, mesmo na questão dos direitos humanos em geral e, na questão da liberdade das mulheres, fazendo de conta ignorar que a teocracia iraniana é também misógina ao extremo.

A curiosidade popular com relação à situação das mulheres iranianas surgiu depois do assassinato da jovem curda Mahsa Amina pela polícia da moralidade, em 2022, pelo crime de não ter o véu chador cobrindo a cabeça, exigido pela religião. Isso foi bastante divulgado pelas televisões brasileiras e, no Irã, provocou numerosas manifestações de mulheres e a criação do movimento Mulher, Vida, Liberdade. A repressão às mulheres foi violenta e o presidente da época, Ibrahim Raisi, aplicou a pena de morte na forca para muitas delas.

O filme de Rasoulof, que precisou fugir do Irã para não ser preso, conta a história de Iman, um jurista fiel e de dedicação servil à teocracia, que chegou ao ápice de sua carreira ao ser nomeado juiz do tribunal revolucionário de Teerã. Iman logo descobre que uma de suas funções é a de assinar as sentenças de morte, decididas pelo tribunal. A situação se complica para Iman quando sua filha mais velha, progressista, abriga em casa uma colega de escola ferida nas manifestações depois do assassinato da jovem Mahsa Amina.

O filme quer ser uma antecipação, pois aposta na revolta da família contra o marido e pai, em outras palavras, numa revolta popular contra a ditadura teocrática, mesmo porque o Irã vai mal economicamente e uma importante parcela da população não apoia o governo.

Uma parte da esquerda francesa se pergunta por que alguns líderes como Mélenchon apoiam o Irã, que não é nenhum exemplo a seguir. Essa atração pelo Irã vem da época da revolução do aiatolá Khomeini, em 1979, contra a monarquia do Xá Rheza Pahlevi. E um dos líderes pensantes e influentes da esquerda dessa época, Michel Foucault, não escondia sua admiração por Khomeini. Enquanto Jean Daniel, diretor do semanário Le Nouvel Observateur dava trânsito livre para Foucault na revista que funcionava como guia do pensamento da esquerda da época.

Jean-Paul Sartre também nutria admiração pelo aiatolá Khomeini, que viveu algum tempo perto de Paris, no município de Yvelines, no Neauphle-le-Château, depois de um longo exílio no Iraque. Sartre acreditava que a queda do Xá daria origem a um regime anticolonialista e anti-imperialista. Na verdade, surgiu uma rigorosa teocracia xiita baseada na lei corânica da charia, incompatível com a observância dos direitos humanos no que se refere à liberdade de expressão, liberdade de crença, liberdade sexual e liberdade das mulheres.

Foucault chegou a criar a expressão espiritualidade política, depois de uma viagem ao Irã, para definir o islamismo do aiatolá Khomeini, embora lhe criticassem ignorar os perigos imanentes de um regime religioso islâmico. Em síntese, Foucault avalisou o regime de Khomeini, que se tornou uma ditadura islâmica, de tal forma que, mesmo hoje, com as interpretações sociológicas do pós-colonialismo, sul global e wokismo, o Irã se beneficia de uma certa proteção e apoio junto da esquerda.

É o caso do Brasil, onde o sul global e a presença do Irã no Brics têm levado a uma islamização da esquerda, reforçada depois da resposta israelense na Faixa de Gaza ao ataque do Hamas no 7 de outubro. A proibição por muitos países europeus, em nome do respeito à laicidade, de que crianças e jovens frequentem as aulas nas escolas públicas usando roupas religiosas que lhes cubram a cabeça, as pernas e o corpo, chegou a ser criticada e considerada islamofobia pela professora Francirosy Campos Barbosa. Na Bélgica, houve protestos semelhantes com a decisão governamental de tornar obrigatória a presença dos alunos do curso ginasial nas aulas de educação sexual.

As redes sociais de esquerda passaram o pano nos crimes do ex-presidente iraniano Ibrahim Raisi, chamado de acougueiro, acusado de condenar à morte oito mil pessoas. Na sua rede social dedicada principalmente à promoção e conhecimento do Irã, o professor Salem Nasser, da FGV, também ignorou a má reputação de Ibrahim Raisi e insinuou serem as leis iranianas melhores que as brasileiras em matéria de direitos humanos. Também não comentou a morte da jovem Mahasa Amina.

A campanha contra o sionismo, por setores da esquerda, fez com que Israel, cujos primeiros kibutz eram de inspiração marxista, venha sendo abandonado em nome do colonialismo imperialista. O contraponto é estar havendo apoio a ditaduras e teocracias, cujas ideologias significam retrocesso inclusive em questões de direitos humanos, gênero, liberdade e paridade das mulheres com os homens. (por Rui Martins)

segunda-feira, 7 de outubro de 2024

UM ANO DE MASSACRE NA FAIXA DE GAZA

Há exatamente um ano, o Hamas, agrupamento que luta contra a ocupação israelense da Palestina, desferiu imenso ataque ao Estado de Israel, investindo contra instalações militares, matando civis e militares, além de sequestrar indivíduos. Até hoje não ficaram claras as circunstâncias do ataque e continua sendo inacreditável que tenha sido possível invadir com tanta facilidade o território de um dos países mais fortificados e militarizados do mundo

O que podemos dizer claramente é que o ataque foi um trunfo para Benjamin Netanyahu, o primeiro ministro israelense. Conforme disse em artigo logo após o ataque, Netanyahu foi o grande vencedor das ações do Hamas, pois encontrava-se em situação difícil com manifestações de rua, processos judiciais e uma possibilidade real de se retirar do poder. Os ataques de 7 de outubro de 2023 foram uma dádiva para ele que, a partir dali, impôs um estado de guerra em Israel, concentrando poderes em suas mãos para mobilizar uma operação militar sem precedentes. 

Desde então, o regime sionista conduz sanguinário massacre contra o povo palestino na Faixa de Gaza. Até o momento, mais de 40 mil palestinos foram mortos em bombardeios e execuções sumárias, a maioria desses mortos eram crianças e mulheres. Gaza foi reduzida a escombros, não possuindo mais qualquer instalação mínima de eletricidade, água, internet ou distribuição de alimentos e remédios. Os insistentes pedidos para a entrada de suprimentos foram repetidamente negados pelo governo israelense. 

É um verdadeiro genocídio, limpeza étnica praticada à luz do dia, diante de todo o mundo. 

Dos EUA e da Europa vêm os apoios para o massacre. O caquético Biden fornece o aparato militar e o suplemento financeiro, enquanto finge se importar com as vidas palestinas, repetindo a cantilena de um cessar-fogo próximo. Puro jogo de cena de um presidente criminoso e genocida! Na Europa, os governos reprimem manifestantes pró-Palestina, enquanto a imprensa dissemina islamofobia, mentindo que se levantar contra o Estado de Israel é antissemitismo. Discurso comprado por muitos da dita esquerda.

No primeiro semestre de 2024, inúmeras ocupações de campi universitários foram registrados nos EUA e na Europa para exigir o rompimento das relações comerciais dessas instituições com Israel. A resposta das elites estadunidenses e europeias foi  uma dura repressão e uma forte campanha de censura e perseguição aos estudantes mobilizados. Os mesmos que diziam defender a plena liberdade de expressão, se adiantaram para exigir censura sob a justificativa de combater o antissemitismo. 

Já no Brasil, a dita esquerda sionista tentou defender o massacre aos palestinos, mas logo caminhou para o isolamento diante da carnificina assistida. Mesmo assim, sua influência é sentida, tendo ela conseguido bloquear o apoio à causa palestina dentro do PSOL - o partido mais sionista da esquerda. Figuras iguais a Boulos, Bella Gonçalves (Belo Horizonte) e Talíria Petrone (Niterói) trataram de ficar mudas diante da situação na Faixa de Gaza. A última, inclusive, chegou ao disparate de publicar em redes sociais propaganda em que Bill de Blasio, ex-prefeito de Nova York e notório apoiador de Israel, pede votos para ela! O descaramento e a podridão moral se tornaram regra em um partido surgido para ser um novo horizonte para a esquerda. 

O governo Lula, por sua vez, assumiu correta postura de denúncia do massacre e teve a coragem de qualificar Netanyahu enquanto um genocida, para ódio da nossa mídia sionista. Contudo, tal ação ficou apenas no discurso, pois o Brasil não rompeu relações com Israel e mesmo manteve negociações de materiais bélicos com aquele país. Como de hábito, Lula e seu grupo se restringiram ao discurso. 

Neste exato momento, Israel avança em uma guerra contra o Líbano e contra o Irã. O Oriente Médio está prestes a ser engolfado por uma gigantesca e avassaladora guerra. Longe de ser um movimento restrito ao contexto daquela região, é mais uma etapa da escalada bélica mundial, cujos epicentros hoje estão lá e na Ucrânia. O capitalismo em crise avança paulatinamente para uma guerra mundial a fim de salvar a si mesmo.

Com o imprescindível Babá, 
em defesa da Palestina. 
 
E no meio disso, mais um extermínio para a história humana, dessa vez do povo palestino. Na Faixa de Gaza não ocorre nenhuma guerra, pois não existem dois exércitos em condições iguais combatendo, mas um morticínio contínuo e criminoso de uma poderosa força militar, com mísseis e soldados sádicos, contra um povo totalmente indefeso. É preciso parar o terrorismo de Israel já! 

Nossa solidariedade completa ao povo palestino em sua luta pela libertação do julgo sionista! (por David Coelho)


LEÕES DESDENTADOS, O PTB, PDT, PMDB E PSDB DIZEM AO PT: EU SOU VOCÊ AMANHÃ!

O PTB de antes do golpe de 1964, o PDT, o PMDB e o PSDB, partidos que um dia foram trabalhistas e/ou de esquerda mas hoje não passam de leões desdentados,  estão dizendo ao PT: Eu sou você amanhã!

Estas eleições municipais mostraram a triste verdade: ao domesticar o PT, esvaziando ou expulsando as tendências anticapitalistas que disputavam espaço em suas fileiras com os reformistas e os fisiológicos, Lula o foi tornando um partido inofensivo, que só serve para caçar votos nas eleições de cartas marcadas da democracia burguesa. 

A descaracterização do PT acelerou-se após as jornadas rebeldes de junho de 2013 e o #NãoVaiTerCopa, quando voltou as costas à juventude que poderia revitalizá-lo, abandonando-a à sanha de governadores e juízes reacionários.

Aí, exatamente quando a direita partia para a conquista das ruas, o PT as abandonava, apostando todas as suas fichas no carisma envelhecido do Lula. Como se adiantasse eleger presidente da República apenas para ele sucumbir às pressões de um Congresso Nacional majoritariamente adverso, tendo de, a cada votação legislativa importante, ceder os anéis para conservar os dedos, até nem mesmo os dedos restarem!

Resultado: fazendo um governo pífio e pusilânime, Lula vê os seus índices de aprovação despencarem e acaba de levar uma sova no pleito municipal, com o falado poder da caneta presidencial reduzido a quase nada (ficou em nono lugar entre os partidos que mais prefeitos elegeram!) .

Prestes a chegar à metade do seu terceiro mandato, Lula já não passa de uma rainha da Inglaterra que implicitamente desistiu de ficar em casa tentando melhorar sua desgastada imagem interna. Prefere ir desperdiçar tempo alhures, envolvendo-se com conflitos externos que requerem mediadores mais qualificados e respeitados. 

Se estiver almejando o Prêmio Nobel da Paz, viaja na maionese: os dirigentes das nações influentes mal contêm o riso diante de suas iniciativas pretensiosas, tipo rato que ruge

Alguém deveria explicar-lhe que está muito longe de ser aceito como uma liderança mundial. É, quanto muito, um líder regional, capaz de dar demonstrações de fraqueza tão vexatórias como a de não conseguir fazer-se respeitar nem sequer pela Venezuela!  (por Celso Lungaretti)

sábado, 5 de outubro de 2024

A CRUEL E TOTALITÁRIA MATEMÁTICA DO CAPITAL

 

Dias 18 e 19 de setembro de 2024 os Bancos Centrais mundo afora definiram as taxas de juros. No Brasil, o Copom – Comitê de Política Monetária - definiu a subida da taxa Selic em 0,25%, totalizando 10,75%, a segunda maior do mundo, para alegria dos rentistas e infortúnio dos brasileiros, que pagam juros muito altos por sua dívida pública.  

No ranking dos juros reais, descontada a inflação, no acumulado de 12 meses, em primeiro lugar está a Rússia, em guerra, com 9.05%; o Brasil em segundo lugar com 7,73% ao ano e em terceiro a Turquia, com 5,47% ao ano.  

Isso significa muito para a bolsa popular, posto que incide sobre a nossa dívida pública crescente, que já ultrapassou R$ 7,1 trilhões, e deve alcançar um custo de cerca de R$ 760 bilhões ao ano no orçamento federal, ou seja, cada brasileirinho da favela vai pagar, com os impostos que lhe são cobrados, e em benefício dos especuladores financeiros e rentistas ricos, cerca de R$ 3.600,00 de juros ao ano.  

Com juros reais de 7,73% ao ano, já descontada a inflação, só o capitalismo falido pode nos impor um sacrifício destes à nossa população na base do “ou dá ou desce”. Precisamos mais do que nunca nos rebelarmos e dar um basta em tal imposição.  

Nós, os países da periferia do capitalismo sustentamos com nosso sangue e suor o refinanciamento da dívida pública, o sistema bancário financeiro mundial e o lucro dos especuladores e rentistas.      

Mundo afora, o capitalismo vive o fantasma da inflação, que devora salários empobrecendo a população, desorganiza ainda mais a produção de mercadorias e faz a alegria dos rentistas e daqueles que, dispondo de crédito, por conta de seus lucros empresariais, patrimônios e aplicações financeiras, ganham com a especulação comercial e financeira.  

Como sabemos, o flagelo da inflação decorre da maior circulação de dinheiro sem lastro que provoca o crescimento doentio da economia em face da insubsistente produção de valor válido em mercadorias. 

Essa doença do crescimento econômico artificialmente induzido consiste no fato de que a perda de poder aquisitivo da população, como um todo, gera um descompasso entre a diminuição da capacidade industrial e comercial de produzir e vender, respectivamente, e a perda de valor real da moeda, afetando os lucros da produção de valor válido, advindos da produção de mercadorias, e em benefício da especulação financeira estagnante.  

Há, atualmente, e  mais do que antes, um empobrecimento da população mundial em face de uma relação social que hoje atingiu o seu limite de expansão e crescimento, que no passado, apesar desse crescimento ter tido sempre segregacionista, escravizador, deformado e excludente de parte da população, ganhava velocidade por conta de uma força causada pela introdução crescente do trabalho abstrato no sistema produtor de mercadorias. 

Hoje, com o desemprego estrutural causado pela redução dos custos de produção que reduz a massa global de valor válido induzida pelo mercado que sinaliza ditatorialmente a substituição substancial do homem pela máquina - trabalho morto, sem salários -, essa força original é permanentemente reduzida, e com ela vem a queda no fluxo de irrigação saudável da economia com valor válido advindo da produção e consumo de mercadorias, fato que conspira contra a necessidade capitalista de aumento permanente desse mesmo consumo e produção impossíveis de serem obtidos no atual estágio da economia.  

É a cobra engolindo o próprio rabo.    

A resultante do descompasso entre produção de mercadorias, vendas e correspondente capacidade de compras, consumos e necessidade de produção de valor válido, advindo da produção ora inviabilizada, produz a inevitável emissão de moeda sem lastro como forma desesperada dos Bancos Centrais lubrificarem o fluxo monetário econômico-financeiro-social, e é isso que causa a inflação. É importante informar que o setor terciário, de serviços, que mais cresce na composição dos PIBs mundiais, não produz valor novo, mas apenas transfere valor, artificial ou não, já em circulação na economia.   

A emissão de moeda sem lastro pelos Bancos Centrais corresponde justamente à desesperada produção de vida artificial por aparelhos num corpo septicémico condenado à morte, e o aumento dos juros corresponde a um remédio amargo, mas ineficaz no longo prazo, que funciona como tentativa desesperada de se conter e se manter, momentaneamente, ao mesmo tempo e, contraditoriamente, controladas(os) as vendas e consumos artificializados. 

Se a economia cresce induzida artificialmente pela emissão de moeda sem lastro e endividamento público crescente, tal remédio causa inflação que decompõe a moeda e capacidade de consumo; mas se não se emite moeda sem lastro há uma paralisia completa da vida social regida pela forma valor. 

Estamos, portanto, diante de uma equação irresolúvel que somente pode ser superada pela adoção de uma relação social de produção fora dessa lógica, e na qual os bens de consumo não sejam mercadorias e o cada vez mais confortável esforço humano tecnológico na produção de bens de consumo seja o condutor de máquinas, sem ser mercadoria. 

As entidades capitalistas de mercado, e todos os governos, direcionam as suas políticas, liberais clássicas ou keynesianas, para a impossível retomada do desenvolvimento econômico como fato gerador de empregos e valor, principalmente nos setores primário, do agronegócio, e secundário das indústrias.  

Entretanto, vem a concorrência de mercado, na autofagia de sua mão invisível - Adam Smith, assim o denominou há mais de duzentos anos -, e diz paradoxalmente: use a tecnologia na sua  produção; reduza custos desta produção; ganhe a concorrência de mercado; produza mais e mais barato com melhor qualidade; reduza direitos trabalhistas e previdenciários; fortaleça o Estado, seja ele mínimo ou máximo; e para vencer seus concorrentes concentre capital e faça investimentos em capital fixo - instalações e equipamentos ultramodernos;  seja monopolista de mercado e obtenha riqueza e poder... Aí vem o Banco Central e aumenta os juros para conter a inflação e o consumo, mas emite moeda sem lastro porque a receita fiscal, mesmo crescente, é ainda menor do que as despesas correntes... etc., etc., etc.  

Essa é a matemática contraditória do capitalismo que se decompõe pelos seus próprios fundamentos, como previra Karl Marx.  

Nesse contexto, as eleições para a governança do aparelho de estado que serve a essa lógica corresponde a uma preocupação com a infecção de uma unha cravada num corpo septicémico, o que torna a discussão eleitoral algo fora de foco.  

Toda a discussão eleitoral é fora de foco porque a questão não é, por exemplo, de apenas como criminalizar os  incêndios provocados e contermos o fogo que se alastra florestas afora até os centros urbanos e cobre as cidades de fumaça tóxica e chuva preta de fuligem - questão minimalista de forma, que precisa ser feita dada a urgência de solução do problema -, mas se perguntar por que há aquecimento global que provoca incêndios e inundações severas, questão de conteúdo.  

O discurso eleitoral é superficial e sistêmico porque a eleição é antidemocrática, no sentido de prover o exercício da vontade soberana, por não permitir a contestação do sistema pelo candidato, que se assim o fizesse teria cassada a sua candidatura; 

- não representa a antítese à ditadura, seja ela eletiva ou militar, mas apenas uma forma política submissa ao Estado opressor e cobrador de impostos e, principalmente, ao absolutismo ditatorial da forma valor; 

- porque se prende às providências a serem tomadas dentro da escassez, e não como evitar a escassez, ou, antes disso, procura nas causas da escassez a solução para ela mesma;    

- porque é o canal legitimador do acesso ao subpoder político, assim considerado por falta de soberania de vontade, vez que é projetado e delimitado constitucionalmente para cumprir previamente a tarefa de regulamentação da ordem capitalista e ser a ela submisso, além de que os políticos (e não só) se obrigam a tecer loas a tal ordem jurídica e econômica sob pena de faltarem com o decoro institucional.  

Informar sobre a negatividade da essência do dinheiro, categoria capitalista à qual nos obrigamos todos os dias a buscá-la para a nossa sobrevivência, e assim mesmo sendo desconhecida quase unanimemente na sua constituição e função socialmente negativa, deveria ser matéria curricular nas escolas e nas academias que ensinam aos ensinadores, os professores nas escolas, ao invés de incensá-lo como algo inocente e benéfico para a vida social.  (por Dalton Rosado)

terça-feira, 1 de outubro de 2024

MARÇAL DISPUTA A ELEIÇÃO MUNICIPAL DE 2024 DE OLHO NA PRESIDENCIAL DE 2026

"Vim aqui só pra dizer
Ninguém há de me calar
Se alguém tem de morrer
Que seja pra melhorar

Tanta vida pra viver
Tanta vida a se acabar
Com tanto pra se fazer
Com tanto pra se salvar
Você que não me entendeu
Não perde por esperar"
(Geraldo Vandré)

Antes tarde do que nunca, vou deixar o comedimento de lado e revelar algo que é realmente original e diferenciado na minha atuação de 55 anos como articulista.

Tudo começa em 1967, quando, com 16 anos de idade, ingressei no movimento secundarista, fazendo trabalho de conscientização política na minha escola (o Colégio Estadual MMDC, no bairro paulistano da Mooca).

Em 1968 meu foco passou a ser toda a Zona Leste de São Paulo, por meio da Frente Estudantil Secundarista, que gravitava em torno da Dissidência Universitária encabeçada pelo Zé Dirceu. 

E, às vésperas do AI-5, eu e os sete outros dirigentes da FES/Zona Leste iniciamos contatos com organizações da esquerda armada,  pois percebíamos que a ditadura militar logo se radicalizaria a ponto de tornar suicida o trabalho de massas convencional.  

Decidimos ingressar na Vanguarda Popular Revolucionária e fui escolhido pelos meus companheiros secundaristas para representar nosso grupo no congresso de abril/1969 da VPR, ainda como convidado, pois caberia ao comando que então fosse eleito aprovar a filiação de nós oito. Éramos doze os participantes, inclusive o ex-capitão do Exército Carlos Lamarca.
Lamarca, o capitão da guerrilha.

E, para minha surpresa, voltando para a capital já como militante da VPR, poucos dias depois me comunicaram que eu tinha sido escolhido pelo Comando Nacional para participar do Comando Estadual, como o responsável pelo setor de Inteligência que me caberia criar.

Nada no meu passado me qualificava para tanto. Só conhecia a atividade de Inteligência pelos filmes do 007 e livros do Graham Greene e John le Carré. Mas tratei de qualificar-me para a tarefa da melhor forma possível.

Acabei percebendo que tinha boa intuição quanto a cenários que prevaleceriam no futuro, tanto que, mal chegado na Organização, fui o primeiro a identificar nas chamadas Teses do Jamil as melhores respostas para os desafios da luta armada naquele instante. 

Endossei enfaticamente, num documento de circulação interna, aquela proposta pela qual os companheiros passavam batidos, dando o pontapé inicial para o racha da VAR-Palmares e  reconstituição da VPR. 

Desde então, já lá se vão 55 anos em que venho apontando para a esquerda quais os cenários futuros que predominarão, dando-lhe tempo para correções de rumo que ela, contudo, quase nunca faz, continuando a encaminhar-se para desastres anunciados.

Ciente de que não tenho força política para aproveitar devidamente essas visões antecipatórias, tento alertar os vários partidos e organizações de esquerda para o que tende a acontecer, dando-lhes tempo para extrair o melhor proveito das mudanças à vista. Quase sempre sou ignorado e o que havia de ruim para ocorrer, acaba ocorrendo; já as chances que tínhamos de adquirir vantagens no jogo político são desperdiçadas.

Dou um exemplo. Em meados de 2014 já percebi que a anacrônica  política econômica neodesenvolvimentista de Dilma Rousseff no seu primeiro mandato  presidencial incubara uma aguda recessão com a qual ela, reeleita, não saberia lidar. Embora eu tivesse sérias  
restrições ao Lula, várias vezes escrevi em apoio à ala do PT que tentava convencê-lo a ser ele o candidato, em lugar da trapalhona Dilma.
Esta gerentona trapalhona abriu a porta para o Bozo

Por vaidade, arrogância ou absoluta falta de autocrítica ela insistiu em ser candidata mas, mal acabava de ser reeleita, traindo promessa de campanha, ofereceu o Ministério da Fazenda a um neoliberal de segunda categoria, Joaquim Levy, na esperança de que ele corrigisse as lambanças cujas consequências ela deixara como herança maldita para si mesma.    

Imediatamente cantei a bola: como sucedera no governo de João Goulart, o estranho no ninho seria imobilizado e, em seguida, abatido pelo fogo amigo (CUT, MST, MTST, etc.). 

Com isto, a recessão não pararia de agravar-se, até tragar a presidente, como outrora tragara o Jango. Dito e feito.

Depois, no mesmo domingo (17 de abril de 2016) em que a Câmara Federal aprovou a abertura do processo de impedimento de Dilma Rousseff eu já escrevi que, ultrapassada a barreira mais difícil (dois terços dos deputados teriam de votar pró impeachment), todas as restantes seriam igualmente transpostas.

Alertei que o prolongamento da agonia da Dilma s
ó serviria para o inimigo acumular forças enquanto nós estaríamos enfraquecendo cada vez mais. Portanto, melhor seria a Dilma renunciar imediatamente e a esquerda aproveitar a elevada rejeição ao vice Michel Temer para lançar uma nova campanha tipo diretas-já, exigindo a convocação de uma nova eleição para a escolha de quem cumpriria o restante do mandato da impichada. 

Mas, claro, a Dilma preferiu seguir prejudicando a esquerda até o mais amargo fim, a colher derrota após derrota na longa marcha para o pé na bunda definitivo. E Michel Temer, assumindo o poder, implicitamente preparou o terreno para a vitória eleitoral de Jair Bolsonaro, o pior presidente brasileiro de todos os tempos. 
Marçal, o bad boy provocador.

Mas, por que estou lembrando tudo isto agora? Porque novamente a companheirada viaja na maionese, não entendendo o que está em jogo na sucessão municipal paulista. Supõe que vá exorcizar o demônio Pablo Marçal apenas impedindo-o de ocupar a cadeira de prefeito. Quanta ingenuidade!

Como eu venho advertindo desde o 08.01.2022, Jair Bolsonaro só continuaria sendo o principal líder da extrema-direita brasileira enquanto não surgisse um substituto que expressasse melhor a tosca visão de mundo desses brucutus desmiolados. 

Isto porque o Bozo já desiludira seus seguidores mais radicais ao:
-- convocá-los para um golpe de Estado e refugar ridiculamente em dois Dias da Pátria seguidos (os de 2021 e 2022);
-- ao reprogramá-lo para 08.01.2023, mas tomando o cuidado de colocar-se longe da encrenca enquanto sua boiada ia para o matadouro (prisões); e
-- ao deixar bem evidenciado que sua prioridade, desde então, está sendo a de recuperar a elegibilidade, a ponto de deixar o Lula em paz e apontar toda a sua artilharia na direção do Xandão.

Então, era extremamente promissor o cenário para qualquer congênere confrontá-lo e arrebatar-lhe a liderança ultradireitista. Só precisava existir alguém apto para tanto. 

E o papel caiu como uma luva para o Marçal, que tem credibilidade radical ainda intacta e é bem melhor do que o Bozo em tudo, pelo menos segundo o figurino fascista. 

Assim, no final de agosto já afirmei que, vencendo ou não o pleito, e mesmo que não chegue sequer ao segundo turno, Marçal sairá da eleição municipal como o favorito a disputar a eleição presidencial na condição de novo mito dos ultradireitistas  tupiniquins. 
Bolsonaro curtindo uma ressaca
Está certa a Eliane Cantanhêde ao avaliar que Marçal já conseguiu plenamente  o que buscava:
"Do início ao fim, Marçal centralizou os debates, jogou as discussões para o campo das agressões e fake news, desorientou as campanhas dos adversários, deixou os institutos de pesquisa inseguros e virou o foco de toda a mídia, inclusive com a cadeirada que levou de Datena e do soco de seu assessor na cara do marqueteiro de Nunes".
E o desafio que Marçal nos lança vai muito além de obrigar-nos apenas a evitarmos que ele ocupe a cadeira de prefeito. 

A verdadeira missão da esquerda não é caçar votos, mas sim fazer-se presente nas ruas confrontando incansavelmente o projeto fascista de sociedade. 

Urge cumpri-la, pois, por enquanto, estamos permitindo que os inimigos nadem de braçadas. (por Celso Lungaretti)

segunda-feira, 30 de setembro de 2024

O BRASIL SE AVACALHA CADA VEZ MAIS

"
O analfabeto político é tão burro que se orgulha e estufa o peito dizendo que odeia a política. 

Não sabe o imbecil que da sua ignorância política nasce a prostituta, o menor abandonado e o pior de todos os bandidos, que é o político vigarista, pilantra, o corrupto e lacaio dos exploradores do povo" (Bertold Brecht)
Segundo as mais recentes pesquisas eleitorais, os candidatos mancomunados com Jair Bolsonaro estão liderando a caça aos votos para prefeito em 23 das 103 maiores cidades brasileiras (aquelas que têm mais de 200 mil eleitores) e os apoiados por Lula, em míseros 16.

Isto nos leva a uma constatação estarrecedora: a de que uma parcela significativa do nosso eleitorado continua mesmerizada pelo causador da morte de aproximadamente 400 mil brasileiros que teriam sobrevivido à covid caso o presidente da República não fosse um sabotador da vacinação. 

Por este crime inominável qualquer nação que se desse ao respeito já o teria trancafiado pelo resto da vida numa prisão. Ele continuar até hoje em liberdade é um verdadeiro acinte. 

A única comparação que me vem à mente é a de um Hitler sobrevivendo à derrota nazista e não sendo sequer punido por suas monstruosidades.
Antes mesmo de Lula iniciar seu terceiro mandato, o David Coelho e eu já denunciávamos que os poderosos tinham chegado a um acordo podre, segundo o qual o palhaço psicopata, de imediato, se tornaria apenas inelegível,  enquanto seus processos criminais seriam tocados em passo de lesma.

Por ter aceitado tal barganha Lula merece estar agora exatamente como está: com menos prestígio do que um flagelo do povo brasileiro.  

De resto, aproveito para reiterar que a tentativa circense de golpe de estado em 08.01.2023 também justificaria uma pena de prisão perpétua para Bolsonaro, mas nunca poderá ser considerada o pior de seus crimes. 

Exterminar coitadezas numa escala de centenas de milhares será sempre mais grave do que vandalizar os edifícios dos podres Poderes. (por Celso Lungaretti)

domingo, 29 de setembro de 2024

O CRIADOR DO ORKUT ADVERTE: "AS REDES SOCIAIS ESTÃO ESPALHANDO LOUCAMENTE ÓDIO, RAIVA E DESINFORMAÇÃO".

A entrevista do engenheiro Orkut Büyükkökten ao jornalista Bruno Romani, publicada no Estadão deste domingo (29), mostra o enorme  desencanto do 
 criador do serviço que levou seu nome com as
 transformações ocorridas desde a desativação daquela rede social pioneira em setembro de 2014.

Recomendando a leitura integral de O futuro das redes sociais é assustador, diz Orkut Büyükkökten, selecionei os melhores trechos para nossos leitores (CL):
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"As mídias sociais se tornaram extremamente tóxicas. Há polarização política. Há isolamento. Há vergonha, ansiedade, depressão, problemas de saúde mental. Eles estão realmente prejudicando nossa sociedade e, especialmente, crianças e a geração Z. 

Se você olhar para o Instagram, alguns dos conteúdos criam problemas de imagem em meninas de 13 anos. E mesmo que a empresa soubesse disso, eles não tomaram as medidas necessárias para se livrar desse conteúdo. A sociedade e a humanidade não têm sido uma prioridade nas corporações de mídia social. Isso trouxe o colapso da sociedade.

[No tempo do Orkut] as pessoas passavam o tempo compartilhando, postando e enviando mensagens. E foi assim que eles se conectaram, foi assim que eles criaram comunidades, e foi assim que eles promoveram um ambiente saudável. Hoje, você fica rolando o feed e navegando em conteúdo sem sentido. 

[Vale lembrar, também, a mediação de conteúdo por algoritmos.] Esses algoritmos são otimizados para engajamento e monetização. Com o Orkut, o feed era cronológico, certo? Hoje, é reordenando, dependendo se aquele conteúdo específico gera reação. 

Eles escolhem as postagens que geram ódio e raiva. Então, as redes estão espalhando loucamente ódio, raiva e desinformação.  

Estão espalhando negatividade porque lucram com a negatividade. Eles lucram com o ódio. E essa é uma das razões pelas quais as redes se tornaram tão tóxicas. É a priorização da monetização sobre a sociedade.

As redes sociais hoje são administradas por aproveitadores. Eles só se importam com dinheiro e poder. Quando uma plataforma incentiva a polarização política, faz isso porque ela gera mais receita. Esse é o mal dessas pessoas que estão no comando. 

O futuro das redes sociais é muito assustador agora por causa desse monte de IA. Tivemos um salto gigante com o ChatGPT e a IA generativa. Resultado: um monte de fotografias no Facebook geradas por IA. A maioria das pessoas nem consegue diferenciar. 

Se você olhar para o Instagram, há muitas contas falsas onde todas as imagens são geradas por IA. E elas estão respondendo a comentários, que também são gerados por IA. E estamos recebendo mais e mais spam de IA. Você quer falar com máquinas quando está numa plataforma social? Ou você quer falar com pessoas reais? 

E estamos apenas vendo a ponta do iceberg. Vai ficar muito pior no futuro próximo. 

Mas não é o algoritmo que está pior. O algoritmo é melhor. A internet é que está muito pior agora porque há tanto spam e desinformação. Reputação vai ser uma das coisas mais importantes nas mídias sociais daqui para frente." 

sábado, 28 de setembro de 2024

LULA, UM PROBLEMA DE COMUNICAÇÃO?

 


Correm nos bastidores a crítica de que o governo Lula não consegue levar ao povo os bons resultados de sua administração, justamente num mundo dominado pelos meios de comunicação. É  uma crítica para se levar a sério, pois a eleição de Bolsonaro e seu índice de aprovação, durante os quatro anos de governo, se deveu a uma explosão de redes sociais a ele favoráveis com altos níveis de participação de seguidores ativos e mesmo fanatizados.

Bolsonaro tinha um encontro diário com seus seguidores no chamado cercadinho, já desmontado, junto do Palácio do Alvorada, repercutido depois pela imprensa e suas redes sociais. Como não era um presidente revolucionário ou inovador,  surpreende a constatação de que ali não fazia comunicações de medidas sociais que favorecessem seus seguidores, mesmo porque durante seu governo sequer reajustou o salário mínimo. Era uma conversa conservadora, utilizando uma linguagem bem popular, às vezes mesmo chula. Ora, era isso, o fato de ser um presidente que aceitava manter um bate-papo com simples admiradores, tudo sob uma aura evangélica, que mantinha a popularidade de Bolsonaro, a ponto de quase ter conseguido se reeleger.

Não se pode também esquecer o papel das igrejas, congregações que nos seus cultos duas ou três vezes na semana, escolas dominicais e grupos de juventude, que reprisavam e agradeciam nas orações a presença de um ungido na direção do país. Como as religiões postergam para o futuro o bem-estar de seus fiéis destinados ao céu, essa mistura bem  sucedida de uma espécie de política evangélica, era o contraponto tranquilo e abençoado às manifestações sociais pedindo transformações que exigiam rupturas coloridas, feministas, salariais ou climáticas, criando temores e apreensões nas pessoas conservadoras.

Essa situação pouco mudou, durante o retorno de Lula ao governo, pode-se dizer que estão num compasso de espera. Estão marcando passo, à espera do retorno ao poder. As prévias e sondagens eleitorais mostram uma provável derrota do governo na tentativa de conquistar as principais prefeituras do país. Até agora, nenhuma sondagem dá vitória ao candidato da esquerda em São Paulo, sinalizando uma possível vitória do atual prefeito e dos bolsonaristas, enquanto o surgimento do candidato outsider Pablo Marçal mostra existir de forma latente um eleitorado capaz de seguir um candidato de linguagem e gestos extremados.

Essa é uma introdução necessária na busca de uma possibilidade de o governo Lula conseguir furar o bloqueio que lhe fazem a extrema direita e os fundamentalistas evangélicos, repetindo uma situação semelhante nos Estados Unidos. Entretanto, o surgimento, nos EUA, da candidatura de uma mulher negra vinda da emigração poderá quebrar a máquina trumpista e isso, se ocorrer, terá forte repercussão no Brasil. Será igualmente importante uma vitória de Guilherme Boulos em São Paulo. Nada disso ocorrendo, Lula, se quiser ser reeleito, precisará reformular sua política de contato com o povo e reavaliar o uso das redes sociais e da Empresa Brasileira de Comunicação, que gere a TV Brasil.

Estas observações decorrem, em grande parte, de uma entrevista do influencer responsável pelo Portal do José e de seus comentários sobre o papel que ocupa atualmente a TV Brasil e de sua falta de audiência, publicada numa reportagem do jornal Estadão, retomada pelo grupo midiático de direita Antagonista. Como alguns leitores poderão imaginar, estarmos fazendo a apologia das tevês públicas que fazem propaganda de seus governos, é bom ressaltar que isso ocorre só nas ditaduras. Nem se trata de defender a privatização total das tevês, mas de se imaginar como se obter mais audiência na concorrência com tantas redes sociais convertidas em mini-TVs.

A TV Brasil gasta 600 milhões de reais por ano - este ano são 800 milhões - mas não tem audiência e nem metas a alcançar, comenta o influencer, professor e jurista José Fernandes Jr, entrevistado por Pedro Zambarda, do Portal Folha Democrata. A declaração foi a propósito do governo Lula não contar com uma boa base mediática para debater e divulgar as iniciativas do seu governo e seus ministérios.

Na verdade, praticamente só o canal 247 cuida disso, enquanto a oposição a Lula e a extrema direita dispõe de centenas de redes sociais populares, uma grande parte utilizando fake-news. Isso mostra não haver uma contrapartida para se enfrentar o enxame de canais preocupados em manter vivo o bolsonarismo.

E a totalidade desses canais é auto suficiente, mantida por seus criadores ou por pequenos grupos, contando com a monetização paga pelo youtube ou com contribuições de seguidores permitidas nas chamadas comunidades.

Uma das consequências da criação das redes sociais foi a da fragmentação e personificação de lideranças, tanto entre os bolsonaristas e evangélicos como entre as lideranças de esquerda. Embora pareça não haver ainda um estudo sobre a consequência da monetização dos influencers, aqueles que conseguem reunir um grupo importante de seguidores, centenas de milhares, passam a receber uma participação nas publicidades veiculadas com seus vídeos, equivalente a um salário.

Isso lhes permite ter um canal próprio independente, no  qual gozam de ampla liberdade sendo seus próprios editores, ficando ao seu critério pertencer ou não a um grupo de canais com ideias e objetivos semelhantes. Entre os influenciadores de esquerda, uma grande parte prefere se individualizar e guardar sua independência, livrando-se assim de críticas e da obrigação de obedecer a códigos de partidos ou obrigações comuns. Alguns se sentem mais fortes unidos em grupo para ter maior audiência como Opera Mundi, Forum, Meteoro, Metrópoles e MyNews. Outros preferem manter seu ideal de esquerda, sem abrir mão de sua individualidade - é o caso de Bob Fernandes, de Andrea Gonçalves, do controvertido Paulo Ghiraldelli ou do Clayson, para citar só alguns dos mais vistos entre canais de esquerda, para citar apenas alguns entre dezenas e centenas com menor número de seguidores.

Na sua crítica à TV Brasil, o influencer do Portal do José oferece a sugestão ao presidente Lula de frequentar e conceder entrevistas aos principais canais e portais Youtube, com audiência mínima de meio milhão de visualizações, e isso sem nenhum custo. Esse contato direto com youtubers e seguidores permitirá que as ações do governo cheguem ao povo e lhe garantam popularidade com alto nível e sem as baixarias do cercadinho.

A título de comparação, as Tvs francesas France 2 e France 3, assim como as suíças TS1 e TS2, mostram boa audiência e cumprem seu papel informativo sem se tornarem instrumentos de propaganda do governo. Isso valeria uma pesquisa, uma reflexão e uma avaliação pelo governo e parlamentares. (por Rui Martins)

terça-feira, 24 de setembro de 2024

A ESQUERDA QUE NÃO SE DEIXOU COOPTAR PELO CAPITALISMO: UM LEGADO (parte 4)

Entrei no ano de 1970 atuando novamente como comandante de Inteligência, só que no Rio de Janeiro e finalmente adaptado a tal função (que nunca sonhara vir a exercer). 

Assim, eu me reportava diretamente aos dois integrantes do Comando Nacional (o Jamil/Ladislau Dowbor e a Lia/Maria do Carmo Brito, esta de origem Colina)  que faziam a ponte entre a cidade e o campo, onde o terceiro comandante nacional (o Cid/Carlos Lamarca) tratava de implantar a escola de treinamento guerrilheiro. 

E mantinha-me em contato diário com os outros comandantes baseados no RJ, o Juvenal/Juarez Guimarães de Brito e o Roberto Gordo/José Ronaldo Tavares de Lira e Silva, responsáveis pelas nossas duas unidades de combate lá atuantes.

Já não era tratado como neófito inexperiente, mas aceito como igual pelos veteranos, naquela fase da luta em que sobreviver quase um ano aos perigos diários se tornara um marco inalcançável para muitos. 

E passara a ser colocado a par dos encaminhamentos mais importantes e consultado sobre as decisões a serem tomadas. Assim, quando o Mário Japa/Chizuo Ozava acidentou-se ao volante e a repressão encontrou no porta-malas do seu carro armas e documentos da Organização, estive próximo de todos os trâmites para resgatá-lo antes que a Oban percebesse que se tratava de um dirigente e intensificasse as torturas. O receio era que revelasse a localização da área ativa de treinamento, pois ele participava do trabalho de campo.
Como cantou Milton Nascimento, memória não morrerá!


Assim, sequestrado o cônsul japonês Nobuo Okuchi para servir-nos como moeda de troca, coube a mim a decisão de quantos prisioneiros exigiríamos por sua libertação. Era uma conta delicada, pois repercutira muito mal na esquerda armada a ingenuidade da ALN ao pedir tão somente 15 militantes pela devolução do embaixador estadunidense (por ele os militares dariam muitos mais!).

Ponderei que era arriscado exagerarmos, já que para a ditadura um embaixador dos EUA tinha peso muito maior do que um cônsul nipônico. Também não poderíamos trocá-lo apenas pelo Mário Japa, caso contrário cairia para o inimigo a ficha de que tinha nas mãos um quadro que valorizávamos muito. 

Então, precisávamos botar outros companheiros na lista, mas não a ponto de os fardados ficarem em dúvida sobre o atendimento ou não da nossa exigência. Propus o número de cinco, cinco pedimos e cinco obtivemos. 

Enviado o Japa para a Argélia, restava a dúvida sobre se ele teria dado alguma pista sobre a área ou os trabalhos  nela poderiam prosseguir normalmente. 

E foi uma aliada do meu setor que cumpriu a arriscada missão de contatar o Japa em Argel, apesar de provavelmente estar muito vigiado por espiões de outros países. A nossa enviada, uma aeromoça, conseguiu viajar até lá, falar rapidamente com ele e voltar com o sinal verde pelo qual ansiávamos. 
Albuquerque Lima (esq.) queria reproduzir no Brasil o 
nacionalismo do ditador peruano Juan Velasco Alvarado
Também coube a mim orientar a aliada jornalista que, namorando um colega envolvido com a ala nacionalista do Exército, dele extraía informações sobre a luta interna pelo poder supremo entre os altos oficiais. 

Se prevalecesse a tendência encabeçada pelo ministro do Interior  Afonso Albuquerque Lima, a repressão se radicalizaria ainda mais, daí a necessidade de estarmos sempre atentos sobre a correlação de forças na caserna.

Enfim, no RJ eu estava atuando verdadeiramente como um quadro de Inteligência, ao contrário do que acontecera em SP, onde a minha contribuição era maior como integrante do Comando estadual do que na minha função específica. 

Mais: desenvolveu-se uma grande  afinidade entre o Juvenal e eu, pois ambos éramos egressos do movimento estudantil (ele fora professor e se tornou o comandante militar do Colina, com um notável talento para planejar ações astutas como a expropriação do cofre do Ademar). 

Tínhamos formação humanista: acreditávamos na luta armada, mas travada com critério, sem bravatas nem desnecessário derramamento de sangue.  Nossa visão da organização era bem profissional, ao estilo dos tupamaros uruguaios. E sabíamos que, se porventura vencêssemos (hipótese que sabíamos ser remota), deveríamos evitar a todo custo as armadilhas do autoritarismo que desfigurara outras revoluções. 

Apesar de amargurado com as quedas e mortes de companheiros intensificando-se cada vez mais e possuindo informações suficientes para concluir que a luta se tornava adversa ao extremo para nós, ainda assim continuei firmemente decidido a marchar até o mais amargo fim. 
Depondo na Auditoria da Marinha um dia após a Dilma

Tanto quisera ser necessário para a revolução, então quando o estava sendo não poderia jamais optar pela autopreservação. Afora conservar alguma esperança de que, se conseguíssemos ativar a coluna guerrilheira, a luta ainda poderia ter uma reviravolta em nosso favor. 

Não se é verdadeiramente revolucionário sem esse desejo ardente de transformar a sociedade que nos leva a assumir os piores riscos que surjam pelo caminho. Mas, nem meus piores augúrios igualavam o pesadelo que veio a seguir. 

Se valho alguma coisa, foi por não ter-me deixado quebrar pelas adversidades que despencaram  sobre mim a partir daquela funesta quinta-feira, 16 de abril de 1970.

Antes, aconteceu o que se repetiria muitas vezes na minha militância: tive uma forte suspeita de que algo muito ruim estava a caminho, mas não consegui convencer quem poderia evitá-lo.

Foi num ponto meu com a Lia e o Jamil, na segunda ou terça-feira. Disseram que o Lamarca exigira a presença dos demais comandantes nacionais e dos comandantes de unidades de combate na área de treinamento guerrilheiro, pois temia que a Organização novamente não estivesse priorizando a tarefa principal (lançamento da coluna guerrilheira) como deveria. 

Afora esta notícia, os dois me trouxeram outra: a de que o Wellington Moreira Diniz (se bem me lembro, seu nome-de-guerra era Hélio) não comparecera ao ponto semanal com a VPR na manhã de sábado, nem na alternativa no início da noite. 
Wellington Moreira Diniz em
2013, ao ser julgada sua anistia

Ele tivera participação marcante nas ações armadas do Colina, praticamente como braço direito do comandante Juvenal. Mas, meses antes, foi diagnosticado que ele era portador de um problema cardíaco e a VPR retirou-o das ações armadas, permitindo que passasse a morar com uma namorada que não pertencia aos nossos quadros, tendo como única missão dar treinamento a grupos de esquerda inexperientes que se aproximavam da VPR.

Eu o conhecia do congresso de outubro da VAR-Palmares e não acreditava que faltaria a dois compromissos com a Organização por motivo fútil. Pensei logo que ele deveria ter sido morto ou preso.

E me ocorreu que, se ele houvesse mesmo caído no sábado, seria uma temeridade os comandantes estarem reunidos no campo e não a postos para lidar com uma possível emergência. A VPR, por causa das quedas que se sucediam implacavelmente, resolvera adotar um modelo vertical, com cada unidade de combate, bem como a minha de Inteligência, conhecendo apenas seu comandante. 

O contato entre elas era unicamente o contato entre os comandantes. Com estes ausentes, ficaria muito mais difícil cientificarmos uns aos outros e tomamos providências para evitar uma sucessão de quedas em cascata.

Insisti longamente com o Jamil e a Lia no sentido de que adiassem a reunião com o Lamarca, mas ambos não ousaram discrepar dele. Representavam dois terços do Comando Nacional, portanto poderiam fazê-lo, mas refugaram. Foi fatal.

O Wellington tinha mesmo sido preso no sábado e desde então sofria as piores torturas, mas aguentou bravamente  até a quarta-feira, quando acabou abrindo o fotógrafo ao qual conduzira o Lamarca para tirar fotos após a sua operação plástica. O fotógrafo, por sua vez, entregou um médico que era nossa principal fonte de aliados e, ao mesmo tempo, a maior vulnerabilidade que tínhamos no RJ. 

Esse médico abriu o ponto que tinha comigo. Outros companheiros também caíram, não sei exatamente como. E os comandantes que haviam se reunido no campo, foram sendo presos logo ao voltarem. A pior sequência de quedas da VPR varreu a organização em todos os estados nos quais estava estabelecida.
 Comissão Nacional da Verdade falhou em entregar
às famílias os restos mortais dos desaparecidos
  

Ao ser conduzido para a sede do DOI-Codi, no quartel da Polícia do Exército na Tijuca, eu quase sufocava por causa do capuz que me colocaram e de me forçarem a cabeça para baixo a fim de não ser visto da rua ou dos carros que passavam ao lado. 

Sabia que, mesmo se sobrevivesse, nunca mais seria o mesmo. E não tinha certeza de que valeria a pena sobreviver. 

Se funcionasse a capsula de cianureto produzida por estudantes de química aliados da VPR, eu a teria usado, mas aqueles aprendizes de feiticeiro haviam falhado em algum detalhe, de forma que poucos dias antes o Juvenal me informara do fracasso colhido por quem a utilizara. Então, só restava preparar-me para o pior. (por Celso Lungaretti)

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