terça-feira, 29 de abril de 2025

ACORDO STF/CÂMARA/SENADO ESVAZIARIA PLANO DO BOLSONARO DE PEGAR CARONA NUMA ANISTIA AOS PAUS MANDADOS DO 8/1

U
m acordo está sendo negociado entre o Supremo Tribunal Federal e os presidentes do Senado (Davi Alcolumbre) e da Câmara Federal (Hugo Motta), no sentido de:
-- atenuarem-se as penas dos descerebrados que participaram da tentativa de golpe de Estado de 8 de janeiro de 2023 sem uma real noção do que faziam (o tão fanatizado quanto imbecilizado gado bolsonarista);
-- aplicarem-se integralmente as penas a que fazem jus os líderes daquela intentona;
-- tornarem-se mais rigorosas as penas dos que repetirem tais tentativas de virada de mesa no futuro.

A informação é da colunista Mônica Begamo, da Folha de S. Paulo, cujas informações de bastidores costumam ser sempre quentes.

Seria uma forma de esvaziarem a sórdida tentativa do Jair Bolsonaro de, a pretexto de reduzir-se o excesso de rigor adotado contra os paus mandados. viabilizar uma anistia que acabasse incluindo também os mandantes, começando pelo próprio ex-presidente, o indiscutível líder e beneficiário do golpe, que várias vezes demonstrou estar apavorado com a perspectiva de ir merecidamente para trás das grades.

Neste meu post de exata uma semana atrás
 eu já sugerira a possibilidade de uma iniciativa desse tipo:
"Ele [Bolsonaro] finge cinicamente estar preocupado com os transtornos que causou a seus seguidores, sujeitando-os à prisão enquanto se colocava a salvo na Disneylândia... 
Se tivesse a mínima empatia com o sofrimento alheio, pediria em alto e bom som que fossem anistiados os golpistas ingênuos, mas não, nunca, jamais ele próprio, que passou o mandato presidencial inteiro conspirando para usurpar definitivamente o poder.  
O maior obstáculo à anistia ou redução das penas dos que não sabiam direito o que estavam fazendo é a possibilidade de isso vir a servir de cavalo de Tróia para os que sabiam muito bem quão criminosos eram os próprios atos. 
por Celso Lungaretti
Apesar de merecer o mesmo destino que tiveram congêneres seus como Hitler e Mussolini, a pena máxima que a Justiça brasileira poderá aplicar a Bolsonaro é de 30 anos de prisão. Para ele, isto seria lucro.  
Mesmo assim, faz uma descarada chantagem emocional e esperneia como um menininho que não quer tomar purgante. Que nojo!".

domingo, 27 de abril de 2025

FRANCISCO ERA UM LIBERAL QUE BUSCAVA COLOCAR A IGREJA CATÓLICA NO SÉCULO 19, MAS OS TEMPOS ATUAIS DÃO VITÓRIA A SEU ANTECESSOR.

 


O falecido Papa não era um homem de esquerda, apesar de ter angariado a simpatia de parte considerável da esquerda, órfã de lideranças e carente de um programa político robusto. De seu apoio à ditadura militar argentina e seu papel na perseguição a membros de sua ordem poucos falaram ultimamente, embevecidos com a retórica levemente progressista de Francisco. 

Jorge Mario Bergoglio ascendeu ao trono de São Pedro após a renúncia de Bento XVI em 2013. Ratzinger havia se tornado Papa em 2005 com um programa francamente reacionário, mas desfocado em relação à sua época. Na realidade, ele havia chegado cedo demais, pois a onda neofascista ainda estava embrionária e a esquerda liberal vivia seu auge com Obama, Lula, Kirchner e outras figuras semelhantes dominando o espaço público. O resultado era sua solidão mundial, uma voz de extrema-direita isolada em um mundo progressista. Diante disso, ele resolve renunciar ao papado, abrindo uma crise na igreja cuja resposta veio através da eleição de um cardeal conservador, mas com mentalidade mais liberal, trazido, pela primeira vez, da América Latina. 

A imagem de Bento 16 não era das melhores...

Não poderia existir antítese mais perfeita com relação a Bento 16 que Francisco. O antigo papa era extremamente reservado e frequentemente aparecia com uma carranca pesada. Seu discurso era antipático e seu gosto pelo luxo e pela pompa do Vaticano era imenso. Seu sucessor, contudo, era pura simpatia, tinha o discurso familiar e empático, além de ter quase nenhum apego às pompas e ao luxo. 

A missão de Francisco era aproximar do mundo moderno uma instituição esclerosada e para isso combinava o papel do Papa de consciência moral do mundo, algo já muito usado por João Paulo II, com algumas medidas liberalizantes. Enquanto Bento 16 era adepto do slogan o mundo que se curve à igreja, Francisco tentava conduzir uma aproximação com a realidade do século XXI, mas visando alcançar os níveis de desenvolvimento do século XIX. No fim, ambos estavam coagidos pela mesma situação: a perda histórica de relevância da Igreja Católica no mundo, mas enquanto Ratzinger buscava fazer o mundo retroagir para se adequar ao ser da igreja, Bergoglio buscava faze-la se adaptar à situação histórica atual. 

Por ironia, o Papa que chegou cedo demais agora está vencendo, pois a situação mundial hoje é mais adequada ao programa de Bento 16 e não ao de Francisco. Por isso, não será surpresa se o novo pontífice escolhido for alguém mais à direita, um herdeiro de Ratiznger e não de Bergoglio. O que isso significaria para o futuro do catolicismo é difícil dizer, mas é pouco provável que a derrocada dessa religião seja freada na Europa e na América Latina. 

...ao contrário do risonho Francisco.

Entre os europeus, a igreja vai perdendo espaço para os ateus e os sem religião, enquanto que entre os latino-americanos, ela perde terreno sobretudo para os evangélicos, embora os sem religião também cresçam por aqui. Somente a África ainda mantém fidelidade, mas por ser um continente politica e economicamente fraco, a sobrevivência católica ali pouco acrescentaria na balança da geopolítica. Por onde se olhe, o catolicismo vai se tornando uma relíquia e seus papas cada vez mais oscilarão entre serem rabugentos saudosistas do passado e senhores simpáticos a falar vagamente sobre as preocupações do momento

De qualquer forma, é preciso ter sempre em mente que a mudança radical hoje necessária no mundo nunca virá do Vaticano ou dos templos, mas da luta organizada dos trabalhadores do povo em geral. (por David Coelho) 




O GROTESCO EM BOLSONARO NÃO É UM ACIDENTE, É DOUTRINA. DAÍ ELE EXIBIR TANTO SUA PUTREFAÇÃO FÍSICA E MORAL.

O grotesco é o afeto que organiza o gozo fascista. 
E não qualquer gozo. Um gozo invertido, um prazer na destruição simbólica do outro. 

A cada imagem que escancara corpos abjetos, seja o da travesti espancada, do indígena invisibilizado, do pobre ridicularizado, a base se nutre. Ri, compartilha, venera. 

A gargalhada aqui é arma. Ela transforma a dor do outro em motivo de pertencimento. 

Como na cena em que Bolsonaro imita uma pessoa morrendo com falta de ar durante a pandemia, zombando do desespero de milhares que agonizavam sem oxigênio nos hospitais. 

Ou quando ri abertamente da morte de Rubens Paiva, desaparecido na ditadura.  

Ou ainda quando despreza e desumaniza a memória de Bruno Pereira e Dom Phillips, assassinados na Amazônia, insinuando que "isso acontece com quem vai por ali".

Em cada um desses episódios, a dor do outro é convertida em espetáculo. A agonia vira punchline. O luto se torna palanque. 

E é nesse teatro do escárnio que a base se reconhece, se reafirma, se alinha. Porque o grotesco aqui não é acidente. É doutrina. (trecho do artigo O mártir apodrece, o algoritmo alimenta: a guerra afetiva do grotesco de Bolsonaro, de Reynaldo José Aragon Gonçalves, cuja íntegra pode ser acessada no Brasil247) 
.
Observação -- esta constatação da afinidade do fascismo com as baixarias mais repulsivas e degradantes já não aparece na imprensa e nas redes sociais com a frequência de outrora, daí eu ter decidido publicar o trecho que considerei mais significativo no texto do Reynaldo Gonçalves, ao mesmo tempo que recomendo a todos que leiam o artigo na íntegra.

Vale acrescentar que o filme mais maldito do Pier Paolo Pasolini, Saló ou os 120 dias de Sodoma (1976), bate exatamente nesta tecla. Só que hoje é muito difícil de encontrar, inclusive no streaming. E exige de quem o assiste um estômago pra lá de forte. (CL)

sábado, 26 de abril de 2025

SE COLLOR MERECE OITO ANOS DE PRISÃO, BOLSONARO DEVERIA PEGAR OITO SÉCULOS

Q
uando Jair Bolsonaro, o pior presidente brasileiro de todos os tempos, tudo fazia para arrastar os trabalhadores a seus empregos no auge da pandemia de covid, com enormes riscos de encontrarem a morte após agonias terríveis, estávamos próximos da unanimidade. 

Quase todos os esquerdistas defendíamos com unhas e dentes que o direito das pessoas à vida prevalecia de forma esmagadora sobre o desespero dos agentes econômicos face aos prejuízos que estavam sofrendo.

Outros mudaram, mas eu não. Continuo sustentando que vida vale infinitamente mais do que grana.

Então, pergunto: se o também ex-presidente Fernando Collor de Melo merece cumprir oito anos e dez meses de prisão por corrupção passiva e lavagem de dinheiro, a quantos SÉCULOS de prisão Bolzonaro deveria ser condenado por, com sua sabotagem premeditada ao combate científico da covid, haver causado a morte de algo entre 350 mil e 400 mil brasileiros que, noutras circunstâncias, teriam sobrevivido à pandemia, segundo as projeções matemáticas CONFIÁVEIS de vários institutos científicos estrangeiros (já que os balanços brasileiros, subdimensionados desde a base, eram totalmente INCONFIÁVEIS!).

De resto, coerente com as convicções que nortearam toda a minha vida adulta, deixo registrado meu inconformismo com o vezo oportunista de nossa esquerda, que mais uma vez se curvou a uma conveniência de momento ao ínvés de ser fiel a seus valores e discursos anteriores.   

Refiro-me a não ter feito a mais ínfima ressalva à decisão do Supremo Tribunal Federal, de julgar primeiramente o golpismo (crime contra as instituições) e só depois a morosidade intencional na disponibilização de vacinas para o povo e a confusão causada pelo fato de o próprio presidente da República estar impingindo preferencialmente à população  ridículas pajelanças (crime contra a vida).

Simbolicamente, isto passou para o homem comum a noção de que a vandalização dos suntuosos palácios do poder seja um crime pior do que, com uma inconcebível e inaceitável omissão no cumprimento do dever, causar a morte por atacado de cidadãos em sua maioria fragilizados pela pobreza.

Acossados pela barbárie ultradireitista, muitos esquecemos que a democracia burguesa seja o que é: um avanço com relação ao absolutismo feudal, mas uma ordenação jurídica que consagra o direito à propriedade como superior a todos os demais.

Cabia, sim, lutarmos decididamente contra um retrocesso civilizatório que, em muitos aspectos, equivaleria a uma volta ao autoritarismo e ao obscurantismo da Idade Média. Mas foi um exagero nós também endeusarmos. ACRITICAMENTE, o dito estado democrático de direito. (por Celso Lungaretti)

sexta-feira, 25 de abril de 2025

TRUMP REVISITA O FASCISMO ESPANHOL: "MORRA A INTELIGÊNCIA, VIVA A MORTE!"

Unamuno, com barba branca, saindo da Universidade após confrontar os fascistas
Em outubro de 1936, numa solenidade que tinha lugar na universidade espanhola de Salamanca, algum professor dormia com o inimigo, proferindo um discurso de exaltação à irracionalidade franquista. 

Os descerebrados presentes se empolgaram e um deles gritou o lema da Falange fascista: "Viva a morte!". Outros o secundaram, bradando esta e outras palavras de ordem a favor de uma Espanha monárquica, ultranacionalista e ultracatólica no mau sentido. Enfim, como sempre brigavam com o presente e exigiam uma volta ao absolutismo feudal.

Lá estava também o general Milan-Astray, cujos seguidores ergueram o braço, fazendo a saudação usual ao ditador Francisco Franco em pleno ambiente universitário, como se ele se encontrasse no local. Uma contradição  em termos. 
Milan-Astray, o parceiro da morte

O reitor Miguel de Unamuno, um liberal humanista, confrontou corajosamente a horda, dizendo que falaria porque "ficar calado significaria mentir e o silêncio pode ser interpretado como aquiescência".

Rebateu a pretensão dos fascistas de estarem defendendo a civilização cristã, acrescentando que estava em curso uma guerra civil na qual vencer não significava convencer, mesmo porque "o ódio que não deixa lugar para a compaixão não pode convencer". 

O general Milán-Astray perdeu as estribeiras ao ouvir as fortes críticas ao seu modelo para a Espanha e, furibundo, urrou: "Morra a inteligência, viva a morte!".

Unamuno finalizou com uma frase que entraria para a História: "Vencereis, porque lhes sobra força bruta. Mas não convencereis, porque para convencer é preciso persuadir. E para persuadir é necessário algo que lhes falta: razão e direito na luta.".

Os descendentes de Unamuno começam a articular uma forte resistência civilizada à nova caça às bruxas ora em curso, tendo na última terça-feira (22) realizado a primeira manifestação generalizada contra as trevas trumpianas: cerca de cem reitores, representando dezenas de instituições acadêmicas, incluindo Yale, Princeton e Harvard, denunciaram a "interferência governamental sem precedentes" no ensino superior.

No dia anterior, Harvard iniciara a batalha jurídica ao estrangulamento financeiro como arma trumpiana para obter o que Unamuno qualificaria de aquiescência dos bem pensantes: entrou com uma ação judicial contra o bloqueio, por parte do Governo Trump, de US$ 2,2 bilhões em subsídios federais, como represália por tal universidade por haver rejeitado as exigências infames dos descendentes de Franco e do general Milan-Astray.

A China, apostando na inteligência, redobra esforços 
para se colocar cada vez mais na dianteira científica e tecnológica, inclusive fazendo altos investimentos para atrair cientistas de outros países - enquanto Trump, flertando com a morte, os aterroriza ao impor uma recaída dos EUA no macartismo. 

Não preciso de bola de cristal para saber quem  sairá fortalecido das atuais escaramuças e quem marcha para um fracasso retumbante e para o fim da hegemonia que herdou dos campos de batalha da segunda guerra mundial. (por Celso Lungaretti)  

quinta-feira, 24 de abril de 2025

MAMÃE EU QUERO, MAMÃE EU QUERO, MAMÃE EU QUERO ANISTIA, DÁ CHUPETA, DÁ CHUPETA PRO BOLSONARO NÃO CHORAR

Foi de uma pusilanimidade extrema o chororô de Jair Bolsonaro, queixando-se por ter recebido numa UTI a intimação para responder pelo crime de haver sido o principal responsável por uma tentativa fracassada de golpe de estado para derrubar e matar  o presidente eleito do Brasil, com o objetivo de obter um novo mandato virando a mesa, após ser derrotado nas urnas. 

Primeiramente porque, mesmo hospitalizado, continuava gravando peças propagandísticas de sua incessante campanha para escapar das grades, ainda que seja provocando um confronto de Poderes que poderia ter consequências trágicas para nosso país.

Depois porque dá um péssimo exemplo como cidadão e como homem tentando despertar a compaixão dos brasileiros em seu momento de desgraça, logo ele que antes simulava a masculinidade mais tóxica:
— normalizando o estupro de uma deputada; 
— lamentando que a ditadura militar não houvesse fuzilado "uns 30 mil" oposicionistas, "inclusive o FHC'; e
— avacalhando os coitadezas que agonizavam sem ar durante a pandemia, para cuja letalidade, aliás, ele contribuiu intensamente, ao sabotar vacinas e estimular pajelanças.  

E isto sem se dar conta do ridículo em que incidia, ao proclamar-se "imorrível, imbrochável e incomível", mesmo sendo amplamente conhecido que entregou. moto e arma para a bandidagem como um garotinho apavorado.

Além de haver convocado três vezes seus seguidores para a tomado do poder e se mantido longe do palco da ação em todas elas, inclusive indo refugiar-se na Disneylândia quando da terceira.

E que dizer de sua alucinada  comparação, agora, com as vítimas do nazismo?!
Você só está cumprindo ordem aqui, 
mas o pessoal dos tribunais do Hitler também cumpriam (sic) sua missão: colocavam judeus na câmara de gás. Todos pagaram seu preço um dia. Não vai ser diferente no Brasil, trovejou para a assustada oficial de justiça.

Mais megalomaníaco, impossível. Pois a única comparação pertinente não seria com o Holocausto, mas sim com os julgamentos de Nuremberg, dos quais o Bolsonaro de lá escapou pela via do suicídio. Já o Hitler de cá, por mais que esperneie, desta vez não deixaremos escapar. (por Celso Lungaretti)

quarta-feira, 23 de abril de 2025

COM A DELICADEZA DE UM MESTRE CRONISTA, APOLLO NATALI EXALTOU A BELEZA DA VIDA: "A FLOR E O PASSARINHO"

T
em uma florzinha roxinha meio azulada grudada no chão do meu portão. Chove e ela está toda encolhidinha. Assim que o sol der uma espiadela no pedaço, ela vai se espreguiçar, sorrir, se abrir.

É rasteira mas é só se achegar a um pedacinho de parede e ela se estica toda, e vai se agarrando, e vai subindo. No chão e na parede mãos invisíveis espalham tinta de cores mil e está pronta a pintura da flor que faz trepidar o coração. Ela olha para mim, olhinhos brilhantes, a menina feliz. Só falta falar.

Mas ela fala! Está me dizendo agora mesmo que eu posso sentir Deus só de olhar para ela. Encoste em mim a palma da tua mão, numa concha, faz carinho, diz ela, gargalhando gostosamente, você vai se arrepiar com a mensagem que vem lá do céu através de mim.

Eis senão quando, caminhando sobre a flor chega um pardal, atravessa o portão e alcança a porta da frente. Percorre a sala, sobe a escada encurvada rumo aos quartos de cima, olha, espia, volta saltitando, engraçadinho, pelos degraus. 

Que confiança é essa, menina? Sim, porque é uma passarinha mãezinha que recolhe migalhas de pão no chão e deposita no bico do filhote. Sim, porque ela trouxe o filho para comer e passear pela minha casa. 

A pequenina menina e seu filhote aparecem por lá de manhã e à tarde. Quando vão embora nem olham para trás. Nem dizem até logo. Sem se despedir, me deixam o peito apertado.

Mas eles voltam no dia seguinte, eu os espero, a minha casa está aberta para eles todas as manhãs e todas as tardes.

A flor que se fecha com a chuva, se abre com o sol, e gargalha com sua boquinha lindamente roxinha-azulada-princesinha, me diz, triste, que ela não vai estar lá por toda a vida. 

Suspira e profetiza que um dia qualquer aquela pintura de Deus abandona o portão, a parede velha, a flor, e vai embora para sempre.  O pardal mãezinha também me avisa que a vida dos pássaros é breve e logo ela e seu filhinho não vão voltar mais.

Florzinha, pardalzinho, ouçam, eu também entro e saio da minha casa todo santo dia, e vai chegar um momento em que vou entrar e não vou voltar mais. A mando de um poder maior, chega também para mim o tempo de ir embora. Saio carregado por quatro mãos agarradas àquelas alças douradas, sagradas, que sustentam corpos sem vida.

Mas não vai terminar nunca a festa de cores e de vida intensa na companhia desses meus amiguinhos.

Quando eles voltarem amanhã e tornarem a encher de alegria meu velho coração, vou correndo fazer um pedido aos dois. 

Pedir que supliquem ao poder maior para deixar-me encontrar com eles no outro lado da vida, em algum portão, alguma parede velha aconchegando uma flor roxinha-azulada-princesinha, alguma escada encurvada para mamãe passarinho subir...
 
(por Apollo Natali, saudoso amigo, colega de redação e colaborador deste blog, cujas crônicas no período final de sua vida --como esta, de junho de 2016-- eram tão belas que nem percebíamos serem também uma despedida antecipada de tudo que ele tanto amara)

terça-feira, 22 de abril de 2025

O GENERAL QUERIA MATAR O JECA, O JOCA E O JUCA. E O MANDANTE? ELE ESTAVA NA DISNEY, ACONSELHANDO-SE COM O PATETA

Hoje o Supremo Tribunal Federal começa a julgar seis integrantes do Alto Comando do golpe de Estado tentado em janeiro de 2023 para anular o resultado da eleição presidencial e empossar o candidato derrotado.

Destaque para o general Mário Fernandes, em cujo computador foi encontrado o plano Punhal Verde Amarelo, que incluía a execução do Jeca (Lula), do Joca (Alexandre de Moraes) e do Juca (Geraldo Alckmin).

Os conspiradores não negam a existência do plano, apenas tentam inutilmente tirar o corpo fora, inclusive incriminando os cúmplices. 

A Inteligência Artificial do mandante Jair Bolsonaro (a natural não serve pra nada...) se indigna: 

"Eles têm minhoca na cabeça. Mas ninguém pode me acusar disso, pois eu estava bem longe, aconselhando-me com o Pateta na Disneylândia".

Para azar de todos eles, o golpe não foi nenhum desenho animado. Existiu mesmo e está descrito nos mínimos detalhes, com toneladas de depoimentos e provas, na denúncia da Procuradoria Geral da República. (por Celso Lungaretti)

segunda-feira, 21 de abril de 2025

TIRADENTES PODERIA TER SIDO O BOLIVAR BRASILEIRO, MAS NOSSO POVO PREFERIU RECEBER A LIBERTAÇÃO COMO DÁDIVA

 "Brecht cantou: ‘Feliz é o povo que não tem
 heróis’. Concordo. Porém nós não somos
um povo feliz. Por isso precisamos de
heróis. Precisamos de Tiradentes"

(Augusto Boal, Quixotes e Heróis)
Será que os brasileiros sentem mesmo necessidade de heróis, salvo como temas dos intermináveis e intragáveis sambas-enredo? É discutível.

Os heróis são a personificação das virtudes de um povo que alcançou ou está buscando sua afirmação. Encarnam a vontade nacional.

Já os brasileiros, parafraseando o que Marx disse certa vez sobre os camponeses, constituem tanto um povo quanto as batatas reunidas num saco constituem um saco de batatas...


O traço mais característico da nossa formação é a subserviência face aos poderosos de plantão. Os episódios de resistência à tirania foram isolados e trágicos, já que nunca obtiveram adesões numericamente expressivas.


Demoramos mais de três séculos para nos livrar do jugo de uma nação minúscula, como um Gulliver imobilizado por um único liliputiano.

E o fizemos da forma mais vexatória, recorrendo ao príncipe estrangeiro para que tirasse as castanhas do fogo em nosso lugar; e à nação economicamente mais poderosa da época, para nos proteger de reações dos antigos colonizadores.

Isto depois de assistirmos impassíveis à execução e esquartejamento de nosso maior libertário.
Da mesma forma, o fim da escravidão só se deu por graça palaciana e quando se tornara economicamente desvantajosa.

Antes, os valorosos guerreiros de Palmares haviam sucumbido à guerra de extermínio movida pelo bandeirante Domingos Jorge Velho, que merecidamente passou à História como um dos maiores assassinos do Brasil em todos os tempos.


E foi também pela porta dos fundos que nosso país entrou na era republicana e saiu das duas ditaduras do século passado (a de Vargas terminou por pressões estadunidenses e a dos militares, por esgotamento do modelo político-econômico).

Leitura da sentença de Tiradentes (pintura histórica)

Todas as grandes mudanças positivas acabaram se processando via pactos firmados no seio das elites, com a população excluída ou reduzida ao papel de coadjuvante que aplaude.
  • É verdade que houve fugazes despertares da cidadania: em 1961, quando a resistência encabeçada por Leonel Brizola conseguiu frustrar o golpe de estado tentado pelas mesmas forças que seriam bem-sucedidas três anos mais tarde;
  • em 1984, com a inesquecível campanha das diretas-já, infelizmente desmobilizada depois da rejeição da Emenda Dante de Oliveira, com o poder de decisão voltando para os gabinetes e colégios eleitorais; e
  • em 1992, quando os  caras-pintadas  foram à luta para forçar o afastamento do presidente Fernando Collor.
Inconfidentes e sua falação. Só Tiradentes era homem de ação
Nessas três ocasiões, a vontade das ruas alterou momentaneamente o rumo dos acontecimentos, mas os poderosos realizaram manobras hábeis para retomar o controle da situação. Rupturas abertas, entre nós, só vingaram as negativas.

Vai daí que, em vez de heróis altaneiros, os infantilizados brasileiros são carentes mesmo é de figuras protetoras, dos coronéis nordestinos aos padins Ciços da vida, passando por pais dos pobres tipo Getúlio Vargas e Lula.

Então, Zumbi dos Palmares, Tiradentes, Frei Caneca, Carlos Marighella, Carlos Lamarca e outros dessa estirpe jamais serão unanimidade nacional, como o são Giuseppe Garibaldi na Itália ou Simon Bolívar para os hermanos sul-americanos.
O 21 de abril é um dos menos festejados de nossos feriados. E o próprio conteúdo revolucionário de Tiradentes é escamoteado pela História Oficial, que o apresenta mais como um Cristo (começando pelas imagens falseadas de sua execução, já que não estava barbudo e cabeludo ao marchar para o cadafalso) do que como transformador da realidade.

Então, vale uma citação da epígrafe escrita por Boal quando do lançamento da antológica peça Arena Conta Tiradentes, em 1967:
"Dez vidas eu tivesse, dez vidas eu daria para salvar a deles"
"Tiradentes foi um revolucionário no seu momento como o seria em outros momentos, inclusive no nosso. Pretendia, ainda que romanticamente, a derrubada de um regime de opressão e desejava substitui-lo por outro, mais capaz de promover a felicidade do seu povo. 
...No entanto, este comportamento essencial ao herói é esbatido e, em seu lugar, prioritariamente, surge o sofrimento na forca, a aceitação da culpa, a singeleza com que beijava o crucifixo na caminhada pelas ruas com baraço e pregação ... 
O mito está mistificado".
Quando o povo brasileiro estiver suficientemente amadurecido para tomar em mãos seu destino, decerto encontrará no revolucionário Tiradentes uma de suas maiores inspirações. 
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(por Celso Lungaretti)

PEQUENO DESABAFO QUE VIROU NECROLÓGIO INSÓLITO

Se eu estivesse no século 18, tiraria de letra a tarefa de escrever algo sobre a morte do Papa Franciso. Bastaria citar esta estrofe da poesia O século, do  Castro Alves:
  
"Quebre-se o cetro do Papa.
Faça-se dele — uma cruz!
A púrpura sirva ao povo
P'ra cobrir os ombros nus.
Que aos gritos do Niagara
— Sem escravos — Guanabara
Se eleve ao fulgor dos sóis!
Banhem-se em luz os prostíbulos,
E das lascas dos patíbulos
Erga-se a estátua aos heróis!"
No século passado, tudo que haveria de importante para se dizer já estava expresso na antológica La Saeta, do poeta Antonio Machado, cujos versos, musicados, foram gravados por vários artistas, com destaque para a interpretação emocionante de Joan Manuel Serrat.

"Oh, no eres tú mi cantar, 
no puedo cantar ni quiero
A este Jesús del madero
sino al que anduvo en la mar!'
("Oh, não é você meu cantar,
não posso cantar nem quero
a esse Jesus de madeira,
mas sim ao que caminhava sobre as ondas")

Neste depressivo século 21, contudo, já não me animo a rechaçar a Igreja Católica com a contundência de antes, pois quem disputa seu espaço, crescendo cada vez mais, são autênticos mercadores do templo, podres até a medula.

O Papa Francisco certamente não tinha a magnitude heroica do cardeal eterno de São Paulo, D. Paulo Evaristo Arns, que confrontou a ditadura militar com imensa coragem e salvou muitos companheiros nossos da morte.

Mas, comparado aos pastores do culto ao bezerro de ouro, com sua mentalidade de faço tudo pelo dízimo, sou obrigado a reconhecer que ele era um mal infinitamente menor do que as más lacraias de hoje que, não contentes com empobrecer e esfaimar os coitadezas, agora se põem até a tentarem desgraçar o Brasil com uma nova ditadura.

E me revira o estômago constatar que há tantos brasileiros incapazes de ver como patifes os patifes que são. 

Seja em fotos, imagens filmadas ou ao vivo, o mau caráter desses autonomeados bispos, apóstolos e sei lá quantos outros rótulos farsescos transparece indisfarçavelmente: são apenas e tão somente picaretas empedernidos. Nem isto nosso sofrido povo percebe?!

Se nunca acreditei que os sacerdotes católicos tivessem algo a ver com os personagens do drama bíblico, embora supostamente remontassem à igreja que Pedro ergueu por delegação de Cristo, mais inacreditáveis ainda são esses sacerdotes de si mesmos, sem batinas nem adereços medievais, que mais me parecem vendedores ambulantes de terrenos na lua.

Temo que, se tudo continuar piorando tanto quanto está, algum dia ainda terei saudades do Papa Francisco... (por Celso Lungaretti)

sexta-feira, 18 de abril de 2025

A NOSSA PAIXÃO É A DO CRISTINO E QUEM A CANTA NESTA 6ª FEIRA É GERALDO VANDRÉ

A
 Paixão segundo Cristino foi escrita por Geraldo Vandré, em 1968, para a celebração da Semana Santa na Igreja de São Domingos das Perdizes, em São Paulo. 

Com o assessoramento teológico dos frades dominicanos João Caldas Valença e Bernardo Pires de Vasconcelos, Vandré escreveu uma das mais belas páginas litúrgicas populares sobre a paixão e a morte de Jesus Cristo. 

Durante anos ela foi apresentada na igreja dos dominicanos como memória e celebração de tantos que, a partir de 1968, viveram na sua própria carne a perseguição, calúnia, exílio, agonia, paixão e morte. 

Suas vidas foram celebradas e suas esperanças renovadas a cada ano nas vidas e esperanças de seus irmãos.

Essa paixão é um tributo à resistência de tantos que nas suas vidas e caminhos recriaram a vida e os caminhos de todos os homens que lutaram pela justiça e liberdade. 

A Fundação Cultural de Curitiba, ao recriar esta obra, celebra todos os homens e mulheres que deram as suas vidas para que surja um mundo novo pleno de justiça e fraternidade. 
.
(por Carlos Frederico de Souza Filho, que presidia a Federação de Cultura de Curitiba quando esta lançou em disco a missa Paixão segundo Cristinocriada por Vandré e interpretada
por Paulo Cezar Botas, Marinho Gallera e o Coral de Curitiba)

quarta-feira, 16 de abril de 2025

16 DE ABRIL DE 1970, QUANDO O SONHO SE TORNOU PESADELO E O PESO DA DITADURA MILITAR DESABOU INTEIRO SOBRE MIM

Júlio chega à praça Saens Peña às 6h38 do dia 16 de abril de 1970.

É uma fase de arbítrio e intolerância. Os partidos e organizações que ousaram pegar em armas para resistir à ditadura militar pagam um preço bem alto: as notícias de prisão e morte de militantes são praticamente diárias. Há indícios de melhora da situação econômica do País.

Ele veio de ônibus, calculando que daria tempo. Deu. O ponto com o Ivo e os dois simpatizantes está marcado para as 6h45.

Outro motivo para ter optado pelo ônibus é a certeza de que o coletivo estaria quase vazio nesse horário. Ótimo para quem precisa tomar cuidado com o revólver que traz na cintura, encoberto pela camisa folgada, que usa fora da calça.

Nesta manhã de quinta-feira Júlio não tem outros compromissos. Baterá um rápido papo com os simpatizantes que Ivo vai lhe passar e pronto! Estará livre para voltar ao quarto que aluga na casa de uma simpática velhinha do Rio Comprido (ótima cobertura, nada de fichas para preencher, nada que possa atrair atenções indesejáveis).

Para manter a fachada de vendedor, às vezes ele é obrigado a ficar matando tempo pela cidade mesmo quando não tem nenhuma tarefa da Organização para cumprir. Nesta semana, entretanto, ele disse à Dª Chica que ganhou alguns dias de folga.
Como os dois comandantes de unidades de combate foram convocados pelo Lamarca para uma reunião de emergência na área guerrilheira, não há muito para um comandante de Inteligência fazer.

Assim, Júlio tratou de arrumar uma desculpa para manter horários mais flexíveis. E, como vantagem adicional, pôde sair à paisana, sem o terno desconfortável para o clima carioca nem a pasta 007 em que costuma levar o seu .38 e uma caixa de balas.

Esteve com 
Ivo na véspera, num restaurante da avenida Nossa Senhora de Copacabana. Encaminharam algumas tarefas, discutiram novidades, fizeram avaliações políticas. Sempre bem informado, Ivo ajuda Júlio a montar suas análises da situação.

O jovem comandante dá alguns detalhes de bastidores que lhe foram transmitidos por outros aliados, Ivo diz o que sabe a respeito, trocam ideias, tecem conjeturas.

A conversa rendeu tanto que acabaram separando-se às 22h40, meio tarde para quem precisa manter-se a salvo das batidas policiais. Foi quando Ivo disse ter dois simpatizantes para passar:

— Eles trabalham numa estatal e têm informações interessantes para o teu setor. Mas só podem te encontrar bem cedinho, o expediente deles começa às 8.

Júlio, que detesta cair da cama, foi obrigado a aceitar o horário desagradável. Consolou-se com a ideia de que depois poderia voltar para seu quarto e dormir mais um pouco.

Chega sem cautela nenhuma, pois confia no jeitão tranqüilo e na experiência de Ivo, um renomado ginecologista beirando os 40 anos, que chegara até a ser candidato à Prefeitura por um pequeno partido. Simpático e bem relacionado, ele é uma verdadeira mina de aliados e simpatizantes para a Vanguarda Popular Revolucionária.

Nas terríveis condições da clandestinidade, os militantes tentam agarrar-se a pequenas ilusões, que os ajudam a manter a ilusão maior de que exista alguma segurança para eles. Se encararem a verdade — de que, a cada instante, estão sujeitos a serem presos, torturados e mortos —, acabarão enlouquecendo.
Apelidamos ironicamente esses 
cartazes de "os imortais da Oban"
Assim, 
Júlio tem muito medo de cair num ponto com calouros na luta armada, mas confia quase cegamente nos veteranos — dentre os quais ele próprio se inclui, afinal já leva essa vida há um ano e a maioria não aguenta mais do que alguns meses.

Além disso, esteve com Ivo oito horas atrás. O que poderia acontecer ao bom doutor em tão curto espaço de tempo?

Se pressentisse algum perigo, Júlio teria ido de terno, com o braço para dentro e a arma já engatilhada na mão direita, oculta pelo paletó. É o que faz em pontos arriscados.

Até algumas semanas atrás, teria também uma cápsula de cianureto entre os dentes, pronta para ser rompida por uma mordida mais forte. Foi uma contribuição de simpatizantes da área de medicina, mas o primeiro quadro que preferiu a morte à tortura... sofreu apenas um ataque de diarreia que o debilitou ainda mais diante dos algozes. É que os aprendizes de feiticeiro ignoravam algum detalhe da fabricação do comprimido letal.

A notícia do fracasso chegou à Organização e os militantes mais queimado— aqueles com reais motivos para evitarem cair vivos — tiveram de voltar a conviver com seus temores, sem a opção de uma saída fácil e quase indolor.

O ponto é numa padaria da praça. Júlio olha para os lados antes de entrar, mas só por hábito. E começa a pedir um café no balcão, quando é violentamente agarrado por vários homens. Um o segura por trás, impedindo que mexa os braços. É arrastado para fora, desarmado, encapuzado e jogado no chão de um veículo. Percebe que seu pior pesadelo virou realidade.

Com as mãos algemadas para trás, o capuz apertado, a cara contra o chão, sente falta de ar. Alguém lhe segura a cabeça, forçando-a para baixo, de forma que fique bem oculto dos civis. Durante o trajeto, vai repassando na memória o que lera no panfleto Se Fores Preso, Companheiro, do experiente Carlos Marighella.

Lembra-se de que aconselhava o revolucionário a se comportar como um militar nas mãos do inimigo: dar só o nome (nem mesmo a patente poderia abrir). Mas, isso foi escrito em tempos distantes. Será possível manter agora essa atitude de desafio?
Morte por infarto do jovem Chael Charles
Schreier despertou indignação mundial

Um companheiro mandou do presídio uma descrição da sala de tortura, que disse ser envidraçada. Sugeriu que o preso se atirasse contra o vidro — o que ele próprio não fizera. 
Júlio pensa que é uma boa opção.

Isto, claro, se lhe derem chance. E se não lhe faltar coragem. A hora da verdade chegou e ele não tem certeza de como se comportará. 

Quanto durou o trajeto? Quinze minutos? Vinte? Percebe que chegou num quartel, o motorista explica-se ao sentinela. Acesso permitido. O veículo pára e Júlio é retirado aos trambolhões. Tiram as algemas, mas mantêm o capuz. Sente que está numa espécie de recepção.

- Nome!

Resolve ficar calado. Que vantagem há em revelar um nome que está nos cartazes de Terroristas Assassinos Procurados? Imediatamente começaria a ser tratado como um peixe grande.

-Nome!

- Como você se chama, filho-da-puta?

- É, assim não vai. Leva ele logo pro pau.C

Conduzem-no aos empurrões. Cai, levanta-se, tenta manter a dignidade. Finalmente tiram o capuz. Está numa sala repleta de homens fortes e mal-encarados. Procura os vidros contra os quais se atirar, mas não existe nenhum. As paredes são todas acolchoadas.

Mandam-no tirar a roupa. Fica imóvel, mas também não resiste quando lhe arrancam todas as peças. Sente-se inferiorizado e frágil diante dos brutamontes. Deixa que lhe envolvam os braços com tecido, amarrem com uma corda, coloquem um cabo de vassoura entre eles e as pernas e o icem. Fica pendurado sobre dois cavaletes, como um frango no grill das padarias.

Atam eletrodos nos dedos. Começam a girar a manivela de um telefone de campanha, lentamente. Ele concentra todas as suas forças em não gritar. Não lhes dar esse prazer. Não mostrar fraqueza. Resistir.
Eremias, meu amigo desde o primário,
morto por dezenas de tiros aos 18 anos
De repente, o torturador acelera, gira bem depressa a maquininha. A sensação é terrível. Não consegue respirar. Sufoca. Quando o choque cessa, 
Júlio tenta absorver todo o ar que existe na sala. Mas, giram de novo. Param. Giram. Param.

Percebe que esses gritos animalescos estão saindo de sua garganta.

Socam-lhe o corpo, a cabeça. Mas são os choques que o abalam de verdade. A impressão de que morrerá sufocado, de que seu coração vai estourar.

Deixam que tome fôlego, perguntam-lhe o nome. Percebe que não aguentará, vai ter de mudar de atitude. Precisa de tempo para pensar. Diz o nome.

- Tá mentindo, piroca! Fala a verdade! Como se chama? (outra descarga)

- (ofegando) Sou eu mesmo! O dos cartazes!

Vão digerir a informação. Tiram-no do pau-de-arara, mandam ficar em pé, com o rosto contra a parede. Deixam que amarre de qualquer jeito a calça e a camisa rasgada em torno do corpo.

Antes de dar-lhes as costas, vê os torturadores sorrindo, com ar de deboche. Odeia-se por não ter resistido mais.

Percebe que isso é só o começo, o pior está para vir.

Um grandalhão dá um tapa na sua nuca, depois tenta assustá-lo com o símbolo do Esquadrão da Morte. Com uma mão agarra-o pelos cabelos da nuca; com a outra, coloca bem diante dos seus olhos a caveira do ridículo anel que usa.

— Bem-vindo ao inferno!
platéia estoura em gargalhadas.

À dor e vergonha vem se somar o desânimo. “Até quando terei de suportar essa ralé?” — pensa Júlio. Sua impressão é de que realmente desceu ao inferno.

Acima reproduzi a introdução do meu livro Náufrago da Utopia (Geração Editorial, 2005).

Quando meu pior pesadelo se materializou há exatos 55 anos, eu só poderia supor que estivesse diante de três opções:
- sobreviver incólume;
- sobreviver lesionado;
- morrer.

Havia uma quarta, que nunca me ocorreria: sobreviver duplamente lesionado, fisica e moralmente,
por haver caído numa armadilha da História, em que me debateria pelos quase 35 anos seguintes.

Mas, somos mesmo joguetes dos deuses.

Quando já me conformava com a ideia de que a verdade a meu respeito só viria à tona -- se viesse --, após a morte, uma sequência de acontecimentos favoráveis alterou todo o cenário, no final de 2004.

Como se os fados quisessem me compensar pela maré de azar que me tornou bode expiatório de falhas alheias e por pouco não me destruíra em 1970.

Então, meia existência depois, os efeitos daquele terrível 16 de abril (e dos meses seguintes) foram superados. Passei a viver uma nova vida -- aquela que deveria ter vivido. (por Celso Lungaretti)
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