Ainformação é do Jamil Chade e está noUOL Notícias:
"O governo de Donald Trump iniciou uma campanha para incentivar estadunidenses e estrangeiros que estejam vivendo de forma regular nos EUA a denunciar vizinhos, companheiros de trabalho ou qualquer imigrante que não esteja com seus documentos em dia.
Na página oficial da Casa Branca, um cartaz foi postado mostrando o personagem Tio Sam (...) pregando um anúncio sobre como delatar seu vizinho.
Ajude seu país e a si mesmo, diz o pôster. 'Delate todos os invasores estrangeiros', completa a mensagem, que traz ainda um telefone para onde a pessoa pode ligar com as informações".
Só faltou mesmo o valor da recompensa para quem dedar o imigrante ilegal. conforme aparecia nos cartazes com fotos de bandidos procurados do velho Oeste.
Nos tempos bíblicos, a recompensa não era lá grande coisa:
"Então Judas Iscariotes, um dos doze discípulos, foi ter com os principais sacerdotes e perguntou: 'Quanto estão dispostos a pagar-me para vos entregar Jesus?' Deram-lhe trinta moedas de prata. A partir dali, Judas mantinha-se atento, à espera de ocasião para entregar Jesus"(Mateus, 26:14).
Suponho que o Trump pague mais do que o Caifás para quem for tão abjeto a ponto de degradar-se a esse ponto...
Às vezes até me causa estranheza a lembrança de que um dia minha foto e meu nome apareceram num dos cinco cartazes de procurados, cada um com oito militantes, que a ditadura militar fez afixarem em locais públicos.
O dinheiro dos contribuintes era dilapidado acusando-me de ser um dos "terroristas assassinos"que teriam"assassinado e roubado vários pais de família". Logo eu, que nunca tirei sangue de ser humano nenhum e na guerrilha atuava como comandante de Inteligência e não como participante de ações armadas!
[Faço questão, contudo, de deixar claro que sempre tive o maior respeito e admiração pelos companheiros que arriscavam a vida na luta contra a tirania. Se tivesse recebido tal atribuição, cumpriria meu dever de militante tão bem quanto pudesse. O que eu repudio é um governo ilegal e ilegítimo ter-me imputado crimes que não cometi, mesmo estando ciente de que minha função era outra.]
Eu saíra de casa alguns meses antes, quando tinha caído um companheiro que conhecia a escola onde eu estudava. Ele, contudo, resistiu bravamente durante muito tempo.
Pensei até que estivesse a salvo, mas, depois do drama que havia sido, para meus pais, verem o filho único ir "correr mundo, correr perigo"(saudoso Torquato Neto!), resolvi assumir a clandestinidade, estivesse ou não sendo procurado.
E o meu temor inicial acabou mesmo se concretizando, ainda que com substancial atraso. Foram no colégio MMDC, encontraram a foto que utilizariam no cartaz e também o endereço dos meus pais, indo em seguida aporrinhá-los em plena madrugada.
E, numa manhã em meados de 1969, ao passar pela banca de jornais a caminho da padaria, vi um jornal pendurado anunciando o lançamento daquela série de cartazes.
Meu nome e foto apareciam, assim como os do companheiro José Raimundo da Costa, outro membro do Comando Estadual de Sâo Paulo. Por medida de economia, alugáramos juntos um apê na Barra Funda e tinha sido com minha identidade real que eu fechara o contrato.
Ambos fizemos as malas rapidamente, deixando muita coisa para trás, e nos colocamos a salvo. Nunca soubemos se alguém alertou ou não a repressão. Enviamos uma carta ao proprietário do imóvel, pagando um aluguel extra e nos desculpando pelo abandono inesperado.
Os tais cartazes nos assustaram a princípio, mas ninguém da VPR acabou preso por causa deles, embora estivessem espalhados por estações rodoviárias e ferroviárias, repartições públicas, estabelecimentos comerciais, bancos, etc. Passamos a chamá-los zombeteiramente de "galeria dos imortais da Oban"(Operação Bandeirantes).
Certa vez, sentei-me à mesa num restaurante e, ao olhar para a parede ao lado, lá estava exatamente o cartaz no qual eu aparecia. Avaliei a situação e conclui que ninguém mais prestava atenção naquele lixo. Tinha se tornado parte da paisagem. Então, o melhor era eu manter a calma e só ir embora depois de fazer a minha refeição; caso contrário, aí sim alguém poderia estranhar.
Logo no início, contudo, eu ainda receava ser reconhecido e, obrigado a viajar para o Rio de Janeiro de ônibus, tendo como único documento um título eleitoral preenchido à mão (facílimo de falsificar, portanto), aceitei o oferecimento de uma aliada ligada ao teatro, que me deu um banho de loja, clareou e encaracolou meu cabelo, fez-me comprar um óculos com armação de tartaruga, mudou todo meu visual.
Viajei vestido como um jovem dândi, com gravata chique, blazer príncipe de Gales tendo emblema de grifo no bolso, óculos me fazendo parecer mais novinho ainda... Coerente com tal figura, eu me apresentava como um inofensivo professor catarinense.
Sobrevivi um ano na clandestinidade (o que não era para qualquer um no auge dos anos Médici) e acabei caindo por confiar demais num aliado de quem me separei lá pelas 23h00 de um dia para reencontrar às 6h45 da manhã seguinte.
Subestimei a possibilidade de, nesse curto intervalo, ele chegar em casa, ser preso, levado ao DOI-Codi da Tijuca, tomado uns cascudos e estar pronto para me apontar aos agentes no ponto que tínhamos marcado.
Curioso é o fato de, mesmo tendo esses episódios no meu passado, a primeira coisa que sempre me vem à mente, ao ouvir algo sobre delações partidas de pessoas comuns, é o trecho do livro 1984 de George Orwell, no qual um menino da juventude stalinista entrega o pai que, dormindo, gritara "Abaixo o Grande Irmão!"...(por Celso Lungaretti)
Chegou a ser chocante a incompetência com que os aprendizes de golpistas do 08.01.2023 tentaram seguir os passos dos seus antecessores de 1964, tropeçando nas próprias pernas e deixando um mundo de provas para trás, como se jamais lhes tivesse passado pelas cabeças ocas que seu putsch poderia fracassar, sujeitando os envolvidos na quartelada a severas punições.
É verdade que os castellistas aprenderam com o fracasso de 1961 a evitarem os principais erros cometidos, enquanto os bolsonaristas, depois de muito refugarem, tiveram de partir para o tudo ou nada, sem margem para uma segunda tentativa.
Afora que, como militar de carreira, Jair Bolsonaro jamais chegou aos pés do Castello Branco, tanto que o primeiro era respeitadíssimo por seus pares e o segundo acabou expulso da caserna, obrigado a aposentar a farda da forma mais desonrosa possível.
O esquema dos golpistas de 1964 vinha sendo montado desde a década anterior, mas ainda não estava pronto quando da renúncia do presidente Jânio Quadros em 25 de agosto de 1961.
Os conspiradores nela viram, contudo, uma oportunidade de queimar etapas, daí terem decidido precipitar as coisas: convenceram os comandantes das três Armas a tentarem impedir a posse do vice-presidente legal (João Goulart), que estava ausente, visitando a China em missão oficial.
Como o afobado come cru, eles foram derrotados:
1961: governador valente e general legalista barram o golpe
— pela resistência do governador do Rio Grande do Sul, Leonel Brizola, que passou a conclamar o Brasil inteiro a não permitir a usurpação de poder, utilizando para tanto uma rede de emissoras de rádio que se formou espontaneamente (a Rede da Legalidade);
— pela decisão do comandante do III Exército (RS), o general legalista Machado Lopes, de colocar-se ao lado de Brizola, passando, portanto, a existir a ameaça de militares combaterem uns aos outros, hipótese que sempre horrorizou nossas Forças Armadas; e
— pela firme oposição de cabos e sargentos do Exército e Marinha ao golpe, criando outra divisão entre os fardados.
A crise acabou com a solução conciliatória de se dar posse a Goulart mas instituir-se o parlamentarismo, de forma que os poderes presidenciais foram momentaneamente reduzidos (o plebiscito de janeiro de 1963, contudo, restabeleceu ostatus quo ante).
Os conspiradores, face ao fracasso inicial, tiveram de repensar todo seu planejamento. Desfecharam perseguições nos quartéis, isolando e transferindo para unidades distantes os líderes dos subalternos que haviam se colocado contra o golpe, enquanto o pusilânime Goulart nada fazia para proteger quem lhe havia sido leal.
E, percebendo que careciam de algum respaldo na coletividade, partiram para a conquista do apoio da classe média conservadora, contando para tanto com o apoio do clero reacionário e de entidades anticomunistas como a TFP e a TFM. Só se considerariam prontos para nova tentativa 20 meses depois.
Arcebispo de SP convenceu seu rebanho a ajudar os lobos
O passo final foi a conquista da caserna, empreitada facilitada pelo apoio crescente que passaram a ter da classe média (afinal, os oficiais eram majoritariamente dela oriundos) e pelos préstimos de provocadores como o cabo Anselmo, que radicalizaram ao máximo a insubordinação dos cabos e sargentos das Forças Armadas contra o oficialato.
[Meu saudoso companheiro na VPR, o José Raimundo da Costa, o Moisés, era um dos líderes dos marinheiros e nunca quis acreditar que Anselmo fosse um infiltrado, embora já existissem suspeitas.
O Moisés me contou como ele e os marujos atiraram no mar um capitão que veio prendê-lo. O oficial, furibundo com a humilhação que sofrera, ingressou no Cenimar após o golpe e o que mais fez foi perseguir o Moisés, com o propósito obsessivo de capturá-lo para o torturar até a morte.]
O que os oficiais mais prezam é sua autoridade. E, dias antes do golpe, a viram estridentemente ultrapassada por Jango.
Com o mandato cada vez mais ameaçado, Goulart havia finalmente descido do muro; daí ter ousado proibir a prisão de marinheiros e fuzileiros navais responsáveis por uma comemoração levada a efeito depois de vetada pelos escalões superiores. Foi a gota d'água: o oficialato alinhou-se em massa com o golpe.
Johnson gostava de ser clicado como Texas ranger
A ruptura da ordem legal àquela altura já estava sendo amplamente requerida pelos capitalistas e latifundiários, além de endossada pelo presidente Lyndon Johnson.
A CIA favorecia e financiava os conspiradores há muito tempo, mas John Kennedy, caso tivesse sobrevivido ao atentado de Dallas, dificilmente lhe daria sinal verde, assim como não autorizou a disponibilização de cobertura aérea para a invasão da Baía dos Porcos, crucial para o sucesso da empreitada, mas que deixaria as digitais dos EUA impressas numa flagrante interferência na política interna de um país soberano (Cuba).
A posse em 22 de novembro de 1963 de Johnson, um texano anticomunista que comeria na mão da CIA, significou a remoção de um importante obstáculo para o golpe, tanto que, a partir daí, só transcorreriam quatro meses e uma semana até Olympio Mourão Filho começar a descer a BR-3 (hoje rodovia BR-040) com suas tropas.
Enfim, com idênticas intenções. os golpistas de 1964 foram profissionais ao planejarem e executarem a tomada ilegal do poder, enquanto os de 2023 pavimentaram o caminho do fracasso com uma sucessão interminável de erros e lambanças.
Se, por um milagre, gente tão despreparada como os bolsonaristas lograsse êxito, teríamos obtusos irascíveis no poder. Seus principais quadros eram vira-latas mesmo para os pouco exigentes padrões da direita brasileira.
Amanhã (25) se comemora mais um Dia do Soldado, instituído em homenagem ao Duque de Caxias, que nasceu em 25 de agosto de 1803. A data despertou em mim duas lembranças dos anos de chumbo.
Em 1969, um pequeno grupo de esquerda independente procurou a Vanguarda Popular Revolucionária com uma proposta inusitada: queria destruir, na madrugada de 25 de agosto, a estátua do Duque de Caxias que existe até hoje na praça Princesa Isabel, no bairro paulistano de Campos Elísios.
Havia descoberto que a base era oca, tornando facílimo mandá-la pelos ares. Só precisava de explosivos, que nós tínhamos para fornecer, se assim o decidíssemos.
O Comando estadual da VPR contava, àquela altura, com três membros: José Raimundo da Costa (Moisés), Samuel Iavelberg (Moraes) e eu (Douglas). Aprovamos a ideia, até porque seria uma forma de vingarmos a captura do quarto membro, João Domingues da Silva, o Elias.
[Logo adiante esse bravo companheiro morreria de hemorragia, por terem-no torturado antes que se restabelecesse suficientemente do ferimento sofrido na troca de tiros com agentes da repressão.]
Mas o Comando Nacional vetou a ideia, convencido pelo comandante Carlos Lamarca de que seria uma provocação inconsequente e poderia acirrar a bestialidade dos militares contra nós.
Meu lado racional até concordou, mas passei muito tempo sonhando com a satisfação que sentiria ao infligir tal humilhação à ditadura militar numa data tão simbólica. Teria sido de lavar a alma.
Aqui serviu o professor de tortura Ailton Joaquim. Aqui, em junho/1970, me deixaram meio surdo para sempre.
A segunda lembrança é de quando eu já estava preso, na PE da Vila Militar: o tenente Ailton Joaquim, considerado um dos dez piores torturadores do período pelo grupo Tortura Nunca Mais, a pavonear-se pelo quartel com a Medalha do Pacificador que lhe entregaram no Dia do Soldado de 1970.
[Adivinhem onde eu gostaria que aquela latinha fosse enfiada...]
Frequentemente lembrado por um episódio dos mais repulsivos –torturou presos políticos apenas para demonstrar as técnicas das quais era mestre, durante palestra que fez a oficiais no RJ–, tal tenente foi responsável direto por eu ter ficado para sempre com um tímpano estourado e propensão a labirintite, pois o cabo Marco Antônio Povoreli, espancador de presos indefesos, pertencia à sua equipe.
Dita medalha foi instituída em homenagem a Caxias, chamado de pacificador por seus fãs. A pacificação por ele conduzida na Guerra do Paraguai se expressou numericamente no assassinato de 10 mil "pobres, negros e mestiços", segundo historiadores afrodescendentes.
Na era Médici, era comum agraciarem com essa medalha os carrascos da ditadura. E, em plena democracia, os militares aproveitaram o 25º aniversário da quartelada para outorgá-la a mais uma leva de personagens com esqueletos no armário – provocação que a chamada Nova República engoliu da forma mais pusilânime.(por Celso Lungaretti)
"Relembro nesta hora tudo que ocorreu, memória não morrerá!"
OJamil (Ladislau Dowbor) era um militante brasileiro de ascendência polonesa que, após absorver novidades importantes em teoria revolucionária durante seus estudos acadêmicos em Israel e na Europa, voltara ao Brasil para participar da luta armada, ingressando na VPR.
Não vejo necessidade de expor aqui, mais de meio século depois, a fundamentação econômica de suas teses. Exatamente por causa de sua relativa complexidade, não despertaram o interesse da grande maioria dos quadros da organização.
O que me pareceu um verdadeiro ovo de Colombo foi sua conclusão. Se não, vejamos.
A esquerda brasileira se dividia de forma exacerbada entre dois segmentos. Um, o que prevalecia acentuadamente antes do golpe de 1964, acreditava na necessidade de uma etapa inicial, democrático-burguesa na nossa revolução, para extirpar resquícios feudais que ainda continuariam existindo no campo.
Como consequência, os camponeses também estariam entre os sujeitos revolucionários e haveria uma burguesia nacional que poderia ser nossa aliada durante tal fase.
O outro, cujos adeptos eram principalmente os esquerdistas empenhados em aprofundar os motivos da derrota infame diante da quartelada castellista, via o Brasil como um país definitivamente capitalista, cuja burguesia se atrelava à sua congênere internacional e cujos sujeitos revolucionários seriam os explorados das cidades e dos campos (os últimos lutando não pela posse individual da terra, mas para dela disporem visando à produção coletiva).
O Jamil simplesmente quebrou o brinquedo predileto dos scholars de esquerda, que adoravam discutir se quem estava certo era Nelson Werneck Sodré com sua revolução inicialmente popular ou Caio Prado Jr. com sua revolução socialista desde o início.
Dowbor hoje leciona economia e administração na PUC
Argumentou que, ao contrário dos modelos estrangeiros (principalmente a revolução russa de 1917), não havia no Brasil nenhuma força de esquerda capaz de ser a dominante naquele momento, como o Partido Comunista Brasileiro havia sido durante mais de quatro décadas, após vencer a disputa com os anarquistas e incorporar parte deles aos seus quadros.
Então, a revolução brasileira só teria alguma chance de êxito se iniciada pelo conjunto de forças de esquerda, cada uma dando a contribuição a seu alcance, até que, ao longo do processo, alguma se afirmasse (ou não) como a principal.
E seria também o próprio transcurso do processo revolucionário que daria a última palavra sobre se haveria ou não uma etapa democrático-burguesa. Os que a pregavam lutariam por ela, mas certamente não se deteriam caso tal etapa fosse ultrapassada de passagem e o processo seguisse adiante; nem os adeptos do socialismo direto tinham motivo para ficar querendo comprovar sua estratégia no blablablá se poderiam fazê-lo na prática.
Assim, cada partido e organização de esquerda começaria perseguindo seus objetivos por si só, no seu território próprio e com os recursos que possuísse, depois alianças iram se forjando ao sabor da luta.
Tal proposta permitia desatar o nó que produzira situações ridículas como a da ocasião em que uma passeata estudantil contra a ditadura terminou com um discurso de Zé Dirceu num dos cantos do Largo São Francisco (SP) e um de Catarina Meloni no outro lado, cada um pretendendo representar a verdadeiraUnião Estadual dos Estudantes (a entidade saíra rachada de um congresso recente).
E, no caso da VAR-Palmares, Jamil acenava com a possibilidade de os quadros de origem VPR se ocuparem das tarefas militares do processo (o lançamento da guerrilha rural e a propaganda armada nas cidades), pois é para isto que tinham expertise.
Torturado quando convalescia de ferimentos, o Elias morreu
Enquanto isto, os néo-massistas continuariam procurando atuar simultaneamente na luta armada e no trabalho de massas, embora a segunda tarefa ensejasse vulnerabilidades enormes para a primeira. Tanto que desempenhou papel secundário nas lutas travadas dali em diante.
Seria ocioso relatar de novo, detalhadamente, como transcorreu este novo processo de luta interna nas fileiras da VPR (com o acréscimo dos quadros do Colina, durante aqueles poucos meses em que ambas as organizações estiveram unidas na VAR-Palmares). Já o fiz no meu livro Náufrago da Utopia (Geração Editorial, 2005), então vou resumir:
-- a queda e morte sob tortura do quarto integrante do Comando Estadual de SP, João Domingos da Silva, o Elias, responsável pelas ações armadas, deixou nós outros três à volta com uma enorme crise de segurança, pois o bravo guerreiro não compartilhara com ninguém a localização de depósitos de armas, aparelhos de reserva, dinheiro para emergências, etc. Companheiros se amontoavam nos aparelhos ainda tidos como seguros: -- nessas circunstâncias, os três remanescentes do Comando Estadual decidimos não realizar a conferência preliminar do Congresso da VAR-Palmares na qual seriam escolhidos os dois delegados de SP, avocando a indicação (eu e o Moisés optamos por nós mesmos); -- o terceiro comandante de SP se uniu, então, aos dois comandantes nacionais que víamos como néo-massistas, dando-lhes a justificativa para um contra-ataque em que fomos, eu e o Moisés, apresentados como golpistas e tivemos nossa delegação anulada; -- no transcurso do Congresso da VAR-Palmares, contudo, o comandante Carlos Lamarca concluiu que a organização estava mesmo esvaziando a montagem da coluna revolucionária e priorizando implicitamente o crescimento nas cidades, então encabeçou o chamado racha dos sete (o Moisés e eu inclusos), que encampou as principais propostas de nós dois: a volta à identidade de VPR e a adoção das Teses do Jamil como plataforma revolucionária.
No fundo, aquela nossa iniciativa apenas direcionou um terço da VAR-Palmares para a única posição possível para a esquerda armada continuar lutando a partir das derrotas terríveis que sofreria a partir de 1970, enquanto os dois terços restantes, sem seus melhores combatentes, rapidamente seriam tragados pelas circunstâncias extremadas que a luta assumiu.
Logo a união de várias forças da esquerda se tornou não uma opção escolhida, mas um imperativo para a concretização das ações armadas mais ambiciosas que nenhuma delas conseguia mais realizar sozinha.
De resto, eu não poderia deixar de reivindicar o papel que desempenhei no racha dos sete e foi geralmente escamoteado nas histórias contadas por outros autores, pois nada do legado que pretendo a duras penas ter deixado para a esquerda brasileira faria sentido sem levar-se em conta a origem da estigmatização que eu sofreria, nem o porquê de eu ter-me tornado uma espécie de lobo solitário. (por Celso Lungaretti)
Ao acordar em maio de 1987 na enfermaria do Hospital das Clínicas (SP) com quatro fraturas na perna direita, sem sequer lembrar-me de como chegara àquela situação (havia sido atropelado por uma moto com passageiro), tive plena consciência de que estar vivo era um acaso e de que se podia morrer de um momento para outro, às vezes sem sequer perceber.
Desde então preocupei-me bem mais com o legado que deixaria para os pósteros, pois não tinha certeza de quanto tempo me restava para produzi-lo, nem de se teria condições para registrar uma mensagem derradeira.
Talvez haja sido mais eficiente em forjar meu legado do que em escrever uma espécie de autobiografia precoce, lembrando o livro de Yevgeny Yevtushenko que tanto me impressionou quando eu ainda era um aprendiz de revolucionário. Pois é disto que se tratava: dar ainda vivo uma interpretação final da minha trajetória no bom combate.
O certo é que agora, no finzinho de junho, hospitalizado por causa de uma doença infecciosa muito resistente, tive um piripaque que, durante uma hora, me deixou com a impressão de que chegara ao fim da linha.
O ataque passou e agora, novamente dono do meu ser e do meu destino, resolvi não postergar mais a tarefa de redigir um balanço da minha jornada, na esperança de que sirva da inspiração para os que virão depois, já que é remota a perspectiva de ver ainda em vida germinarem as sementes revolucionárias que plantei.
Colegas no primário, depois fomos companheiros de militância
Bem mais provável é a prevalência, em futuro imediato, dos mostrengos engendrados pelos palhaços do apocalipse, semeadores de urtigas.
Ela começa exatamente nas férias escolares entre 1967 e 1968, quando, depois de umas poucas semanas de imersão, junto com outros recrutas, nas obras dos papas do marxismo (bem no estilo da mostrada em A Chinesa, do Godard), decidi dedicar a minha vida à revolução.
Mal acabara de completar 18 anos, portanto poderia apenas estar lançando palavras ao vento. Mas, no meu íntimo, já encarava-a como uma decisão para toda a vida. E foi: lá se vai mais de meio século e continuo tão fiel quanto possível àquela longínqua opção revolucionária.
Rico em aprendizado, o ano de 1968 daquele grupo de oito secundaristas da zona leste paulistana não diferiu do de tantos outros companheiros que iam às ruas confrontar a ditadura militar. Aceitamos todas as missões e nos desincumbimos delas com o arrojo próprio da idade.
A coisa começou a mudar de figura com o AI-5, que marcou a transição da ditadura militar para o terrorismo de estado pleno, tornando a militância revolucionária quase kamikaze. Não ignorávamos os riscos que correríamos com a radicalização repressiva e, mesmo assim, os oito líderes da Frente Estudantil Secundarista na zona leste paulistana optamos por seguir adiante.
Aí sim se estabeleceu uma diferenciação, pois muito maior foi o número dos passeateiros que se omitiram quando a radicalização ditatorial deu um salto qualitativo com a assinatura do AI-5, preferindo não encarar o combate nas trevas.
Nosso grupo de jovens (o mais novo com 18 anos e o mais velho com 21) preferiu os perigos bem maiores que passaram a existir para quem estava na linha de frente do que a autopreservação pusilânime. As mortes de dois dos nossos, Eremias Delizoicov e Gerson Theodoro de Oliveira, foram um dos preços que pagamos por nosso destemor. A captura e as torturas que quatro de nós sofremos, outro.
Mal acabávamos de ser admitidos na Vanguarda Popular Revolucionária, em abril de 1969, fui surpreendido com a inusitada designação para criar um setor de Inteligência em São Paulo, alçado de imediato ao segundo escalão da VPR. Acima, só estava o Comando Nacional.
O Gerson morreu baleado na rua
Visto por alguns veteranos como um estranho no ninho, pois não possuía os méritos que eles haviam acumulado em duras batalhas nas fases anteriores (muitos deles vinham na luta desde a vitoriosa resistência à tentativa golpista de 1961), era, quanto muito, tratado com uma camaradagem condescendente.
Ninguém esperava grande coisa de mim, mas, como a investidura não me subira à cabeça e eu mostrava muito empenho em acertar, estava sendo razoavelmente bem aceito.
Era, ao que eu saiba, o mais jovem comandante de uma organização revolucionária brasileira nos anos de chumbo, mas isto não me iludia: percebia claramente que a minha participação vistosa no congresso de abril/1969 da VPR não justificava tal condição.
Ademais, tinha sido designado para um trabalho pioneiro (não havia comandante de Inteligência nas demais organizações) e sem peso real na correlação interna de forças da VPR, já que eu não comandava militantes, apenas coordenava simpatizantes e aliados.
Os acasos, no entanto, me projetaram muito acima do que eu pudesse imaginar ou, mesmo, quisesse. Começando por ter alugado um apartamento em parceria com outro comandante estadual, José Raimundo da Costa, pelos prosaicos motivos de que a grana estava curta para ambos e meu nome real poderia ser usado no contrato de locação, pois ainda não caíra.
A convivência com o Moisés, remanescente das mobilizações da marujada contra a direita golpista no pré-1964. me permitiu tomar rapidamente conhecimento da história da VPR e de suas lutas internas.
Ele tinha na ponta da língua cada detalhe e eu sede de conhecer o passado da organização. Também me interessavam muito os acontecimentos do período em que a esquerda deixara a épica vitória de 1961 se transformar na derrota sem luta de 1964.
Graças ao Moisés, fiquei conhecendo a encarniçada disputa de poder interno, ao longo de 1968, entre as chamadas tendências militarista e massista, a primeira priorizando as ações armadas contra a ditadura e a segunda insistindo na manutenção de vínculos orgânicos com os movimentos de massa.
O acerto de contas acabou ocorrendo no início de 1969, paralelamente à pior crise de segurança até então enfrentada pela VPR, com quedas de alguns de seus quadros mais importantes. Houve, em seguida, aquele congresso em Mongaguá para colocar a casa em ordem e foi quando Carlos Lamarca se tornou o líder explícito da organização.
O Moisés seria executado na Casa da Morte de Petrópolis
Mas os comandantes estaduais de São Paulo passamos a ter vários motivos de insatisfação com o(s) comandante(s) nacional(is) aos quais estávamos submetidos. Até que o Moisés e eu chegamos à conclusão de que eles, na prática, agiam para sabotar a luta principal e inchar a organização nas cidades, ressuscitando a derrotada tendência massista.
O Comando Nacional passou a ter quatro integrantes dedicados à preparação do lançamento da guerrilha rural e um à ligação com os comandos estaduais; a fusão com o Colina manteve o mesmo desenho, com quatro comandantes incumbidos da luta principal e dois de fazerem o meio de campo com as cidades.
Começamos a divagar sobre a possibilidade de, aproveitando a realização do congresso nacional convocado pela VAR-Palmares para legitimar a fusão VPR-Colina, colocarmos em xeque a própria fusão, pregando a retomada da identidade de VPR. Parecia-nos que fora o ingresso dos militantes de origem Colina que impulsionara o novo fortalecimento da ala massista.
Mas, é quase certo que ambos desistiríamos de dar um passo tão maior que nossas pernas se uma munição inesperada não tivesse caído em nossas mãos. Ela já era conhecida na organização, mas não estava sendo levada a sério.
Ao perceber que circulava internamente, mas sem ser levado a sério, um documento que propunha a melhor resposta aos impasses da esquerda armada naquele momento, eu não vacilei, endossando-o de imediato, incondicionalmente.
A coisa então mudou de figura, pois se tratava do endosso estridente de um comandante estadual, mesmo que fosse provavelmente o de menor prestígio dentre todos. As chamadas Teses do Jamil já não podiam ser ignoradas e mantidas desdenhosamente à parte do debate das propostas estratégicas a serem abordadas no Congresso de Teresópolis, tanto que néo-massistas correram a lançar documentos refutando-as.
Eu colocara em movimento a roda do destino de uma forma inimaginável, ainda mais por isto estar partindo de quem tinha tão pouca influência, prestígio e poder dentro da organização. E, claro, atraí para mim desgraças jamais sonhadas. (por Celso Lungaretti)
"O que sou nunca escondi/ Vantagem nunca contei/ Muita luta já perdi/ Muita esperança gastei/ Até medo já senti/ E não foi pouquinho,
não/ Mas fugir, nunca fugi/ Nunca abandonei meu chão"
Eu vou! Eu vou! Eu vou derrubar o governo, agora eu vou! Pararatimbum, pararatimbum!
O esquema dos golpistas de 1964 vinha sendo montado desde a década anterior, mas ainda não estava pronto quando da renúncia do presidente Jânio Quadros em agosto de 1961.
Os conspiradores nela viram, contudo, uma oportunidade de queimar etapas e resolveram precipitar as coisas: convenceram os comandantes das três Armas a tentarem impedir a posse do vice-presidente legal (João Goulart), que estava ausente, visitando a China em missão oficial.
Como o afobado come cru, eles foram derrotados:
— pela resistência do governador do Rio Grande do Sul, Leonel Brizola, que passou a conclamar o Brasil inteiro a não permitir a usurpação de poder, utilizando para tanto uma rede de emissoras de rádio que se formou espontaneamente (a Rede da Legalidade);
O governador corajoso e o general legalista foram decisivos para evitar que o golpe ocorresse já em 1961
— pela decisão do comandante do III Exército (RS), o general legalista Machado Lopes, de colocar-se ao lado de Brizola, passando, portanto, a existir a ameaça de militares combaterem uns aos outros, hipótese que sempre horrorizou nossas Forças Armadas; e
— pela firme oposição de cabos e sargentos do Exército e Marinha ao golpe, criando outra divisão entre os fardados.
A crise acabou com a solução conciliatória de se dar posse a Goulart mas instituir-se o parlamentarismo, de forma que os poderes presidenciais foram momentaneamente reduzidos (o plebiscito de janeiro de 1963, contudo, restabeleceu o status quo ante).
Os conspiradores, face ao fracasso inicial, tiveram de repensar todo seu planejamento. Desfecharam perseguições nos quartéis, isolando e transferindo para unidades distantes os líderes dos subalternos que haviam se colocado contra o golpe, enquanto o pusilânime Goulart nada fazia para proteger quem lhe havia sido leal.
E, percebendo que careciam de algum respaldo na coletividade, partiram para a conquista do apoio da classe média conservadora, contando para tanto com o apoio do clero reacionário e de entidades anticomunistas como a TFP e a TFM.
Goulart só desistiu de agradar ao oficialato, tomando o partido dos subalternos, quando já era tarde demais.
[Afora a mãozinha estadunidense, com a enxurrada de investimentos em Bolsa de Valores, suficiente para forjar o boom econômico de curta duração conhecido como milagre brasileiro.]
Os viradores de mesa só se considerariam prontos para nova tentativa 20 meses depois.
O passo final foi a conquista da caserna, empreitada facilitada pelo apoio crescente que passaram a ter da classe média (afinal, os oficiais eram majoritariamente dela oriundos) e pelos préstimos de provocadores como o marinheiro de 1ª classe Anselmo (erroneamente apelidado de cabo), que radicalizaram ao máximo a insubordinação dos cabos e sargentos das Forças Armadas contra o oficialato.
[Meu saudoso companheiro na VPR, o José Raimundo da Costa, dito Moisés, era um dos líderes dos marujos e nunca quis acreditar que Anselmo fosse um infiltrado, embora já existissem suspeitas. Pagou com a vida por seu apreço pelo colega de antigas jornadas.]
O que os oficiais mais prezam é sua autoridade. E, dias antes do golpe, a viram estridentemente ultrapassada por Jango. É que, com o mandato cada vez mais ameaçado, Goulart havia finalmente descido do muro, daí ter ousado proibir a prisão de marinheiros e fuzileiros navais responsáveis por uma comemoração levada a efeito depois de vetada pelos escalões superiores. Foi a gota d'água: o oficialato alinhou-se em massa com o golpe.
Lyndon Johnson, com seu chapéu de cowboy: o homem errado, no lugar errado, na hora errada
A ruptura da ordem legal àquela altura já estava sendo amplamente requerida pelos capitalistas e latifundiários, além de endossada por Lyndon Johnson, que herdou a presidência após John Kennedy ser assassinado por um fogo cruzado até agora atribuído oficialmente a um único aturador (seria o Lee Oswald um homem-polvo?!).
A CIA favorecia e financiava os conspiradores havia muito tempo, mas John Kennedy, caso tivesse sobrevivido ao atentado de Dallas, dificilmente lhes daria sinal verde.
Vale lembrar que ele não autorizou a disponibilização de cobertura aérea para a invasão da Baía dos Porcos, crucial para o sucesso da empreitada, mas que deixaria as digitais dos EUA impressas numa flagrante interferência na política interna de um país soberano (Cuba).
A posse em 22 de novembro de 1963 de Johnson, um caipirão texano que obviamente comeria na mão da CIA, significou a remoção de um importante obstáculo para o golpe brasileiro, tanto que, a partir daí, só transcorreram 130 dias até Olímpio Mourão Filho começar a descer a BR-3 (hoje rodovia BR-040) com suas tropas, iniciando a quartelada.
Anticomunista com carteirinha assinada e falsário desmascarado em vida (forjou o chamado Plano Cohen para alavancar a instalação do Estado Novo em 1937), Mourão antecipou-se por alguns dias ao cronograma dos conspiradores históricos, mas nada lucrou com isto: o poder não ficou com o ejaculador precoce, mas sim com o esquema golpista que vinha sendo laboriosamente montado desde a década anterior.
Tão vergonhosa foi a facilidade com que um aventureiro desprestigiado na própria caserna e seus recrutas imberbes derrubaram Goulart que a esquerda entrou num longo processo de crítica e autocrítica, do qual decorreram o colapso da hegemonia do PCB e a ascensão da luta armada como principal forma de resistência à ditadura após a assinatura do AI-5. (por Celso Lungaretti)
Hoje é domingo, domingo de Páscoa. Dois motivos para sair um pouco do usual deste blog e apresentar uma divagação, digamos, mais íntima. Sei lá por quê, foi o que me apeteceu fazer(1).
É que me lembrei da velha constatação de Freud e de muitos artistas, de que aquilo que nos acontece no início da vida define nossos padrões de comportamento para sempre.
Eu fui criança enfermiça até os sete anos, amiúde gripado e febril, muito magro. Tuberculose era um fantasma que assombrava o sono dos meus pais, mais ou menos exorcizado com as antigas vacinas BCG que me eram aplicadas no posto de saúde, mas elas não dissipavam todos os seus temores.
E um tio farmacêutico, numa época em que os controles de seu ofício quase inexistiam, aplicava-me penicilina sempre que necessário, por conta própria e sem me causar nenhum dano.
Aliás, para a clientela pobre do bairro, ele substituía com vantagem os médicos que os coitadezas não tinham como bancar (os serviços públicos eram dantescos e a maioria fugia deles, salvo nos casos realmente graves).
Só entrei na escola com sete anos, em 1958. Comecei a cursar o 1º ano do curso primário com tais limitações. Nas férias, fui operado das amigdalas... e meus problemas mudaram quase instantaneamente.
2023: sempre no bom combate.
Passei a ser saudável... demais. Com enorme apetite, que meus pais correram a satisfazer, aliviados por se verem livres dos receios que a minha magreza antes lhes causava.
Fiquei obeso até lá pelos 12, 13 anos, quando o crescimento me colocou no peso normal.
Mas, o fato é que, primeiramente por ter saúde frágil, depois por ter ficado gordo, não me enturmei bem com os colegas do primário. E adquiri o perfil de lobo solitário, que acabou me ficando para sempre.
Excluído da panelinha dos mais destacados e brilhantes, reagi ficando na moita e não me esforçando até o exame final, quando surpreendia a todos obtendo o melhor resultado da classe.
No ginásio começaram os trabalhos em grupo e eu desenvolvi outra estratégia: formei minha própria panelinha, agrupando os patinhos feios e liderando-os de tal forma que o conjunto acabasse competitivo em relação à panelinha dos brilhantes e até a superasse.
Percebendo que meus protegidos jamais exporiam os trabalhos tão bem quanto os desembaraçados, mesmo que eu lhes preparasse ótimos scripts, introduzi a apresentação em forma de jogral. Imprimia o texto, distribuía as cópias com as falas de cada um sublinhadas, ensaiávamos, destacávamos os trechos mais importantes recitando-os em coro, etc. Funcionava.
Março/68: morte do Edson Souto. Foi a minha primeira passeata.
De resto, tinha um ou outro amigo isolado, para conversar, ir ao futebol e ao cinema, jogar sinuca, remar no lago do Ibirapuera, sair atrás de garotas (quase sempre sem sucesso) e das prostitutas do centro da cidade (barra que não era sensato encarar sozinho).
Um episódio marcante: certo sábado, eu e um colega da escola, não propriamente amigo, fomos ao centrãoe ele gostou de uma prostituta. Tinha dinheiro para pagar e eu, não. Mesquinhamente, não se propôs a me emprestar o necessário, então abandonei-o lá. Na 2ª feira, estava com ferimentos feios no braço. Houve uma desavença e ela o feriu com gilete...
Só no movimento estudantil me vi como parte de um conjunto de iguais – e foi um tempo inesquecível. De uma ou outra forma, éramos todos diferentes dos jovens da nossa idade; e, irmanados pelo ideal comum, não competíamos entre nós, respeitando e prestigiando o talento de cada um. O meu era a redação. O grupo assumiu que eu deveria escrever os textos de panfletos, manifestos, etc., e ponto final.
Com a radicalização da luta, acabei separado dos meus caros amigos. E, mais uma vez, enfrentando rejeições em função da precocidade que, de um lado, me tornou, provavelmente, o mais jovem comandante da guerrilha de então, aos 18 anos, como integrante do Comando Estadual da VPR em São Paulo (abaixo apenas do Comando Nacional).
De outro, valendo-me invejas e hostilizações que afloraram quando o José Raimundo da Costa e eu iniciamos o processo que acabaria levando ao racha dos 7 e à recriação da VPR.
Também atirei minha pedra no governador Sodré, que a esquerda escorraçou do 1º de maio na Praça da Sé.
Inicialmente, fomos combatidos com distorções e calúnias, acabando isolados e só não perdendo a parada porque, em função dos rumos do Congresso de Teresópolis da VAR-Palmares, em outubro de 1969, o Lamarca encamparia nossa visão; e, mais ainda no ano seguinte, quando foi tão facilmente aceita uma grave acusação contra mim que, alguns pelo menos, sabiam ser falsa (e eu, preso, não tinha como dela me defender).
Passei o resto da vida fora das panelinhas e tendo uma relação conflitante com elas. É claro que tudo se tornou bem mais difícil, pessoalmente, para mim.
Por outro lado, escapei da tendência bem brasileira de se relevar os erros dos amigos e transigir em relação a princípios. Pouco importando se sozinho ou com muitos ao meu lado, defendo sempre o que julgo ser correto. E desenvolvi uma couraça que me tornou imune à ação de rolos compressores.
Para mim, a política não se reduz a um jogo de futebol, em que tudo é visto pelo prisma do time pelo qual se torce e o gol impedido no finzinho do jogo merece aplausos.
Maio 2020: a avenida Paulista, da qual os fascistas expulsaram os petistas em 2016, era retomada por secundaristas e torcedores de futebol. As novas gerações são nossa esperança!
Então, por piores que sejam as práticas em que o inimigo incorra, serei fiel até o fim aos valores originais do marxismo. Devemos contribuir para o advento de um estágio superior de civilização, com cada um de nós corporificando pelo menos algumas das virtudes dos homens novos que, numa sociedade igualitária e livre, todos nos tornaremos.
No fluxo revolucionário dos anos 60, era mais fácil defender tais posições (depois taxadas de utópicaspelos inimigos de 1968). Hoje, no refluxo, parece até lógico o retorno ao velho maniqueísmo stalinista e à realpolitik do tempo da guerra fria, aceitando-se como males menoresdéspotas maiores do tipo de Gaddafi e Saddam Hussein(2), apenas porque seus interesses não se alinha(va)m com os de EUA, Israel e países europeus.
A sobrevida do capitalismo durou bem mais do que Marx previa, mas sua margem de manobra é cada vez menor.
Esquece-se até que de revolucionários eles não tinham ou têm absolutamente nada!
Só que tais males menores, por sua ignorância, iniquidade e barbárie, produzem, na verdade, o pior de todos os males: a descaracterização da esquerda.
Deixamos de representar, aos olhos dos injustiçados e dos oprimidos, a alternativa à desumanidade do capitalismo putrefato e à liquidação dos valores mais nobres sob o primado dos cálculos mesquinhos.
Quando encaminhamo-nos para cenários propícios à retomada das lutas pela revolução mundial (3), é hora de voltarmos a pensar grande. E com ética. E com humanidade.
E com, no mínimo, senso comum: quem quer mudar o mundo, não pode estar associado ao que de pior o mundo já produziu.
Se minha sofrida trajetória teve algum sentido, foi o de me preparar para o desempenho do atual papel, de trincheira contra a descaracterização da esquerda, mantendo viva a lembrança das premissas libertárias do marxismo, que os pragmáticos de hoje tudo fazem para relegar ao olvido. (por Celso Lungaretti)
1. Este artigo foi escrito e publicado pela primeira vez em 2011, mas continua expressando fielmente meus valores e sentimentos;
2. Hoje seriam os igualmente desprezíveis Putin, Ortega e assemelhados, gente disposta a passar sobre montanhas de cadáveres para satisfazer suas ambições e/ou compulsões torpes;
3. Sim, 12 anos atrás eu estava esperançoso quanto ao que adviria da insustentabilidade definitiva do capitalismo e da escalada do aquecimento global. Incurável otimista, não me passavam pela cabeça as hipóteses da entropia, do caos e do retrocesso civilizatório. E continuo até hoje acreditando que a humanidade acabará sobrevivendo aos estertores agônicos do capitalismo e aos horrores decorrentes das alterações climáticas, mesmo pagando um preço terrível por sua demora em buscar a salvação. (CL)
Poesia-tributo aos companheiros que comigo ingressaram na VPR.
Após a morte do Eremias, Gerson, Mané e Gilson, restamos quatro: o
Diego, o Edmauro, a Teresa e eu. Declamei-a por insistência da
minha prima Nádia Stabile, que decidira gentilmente criar este vídeo.