Jacques Brel me chamou a atenção como ator de um filme notável de André Cayatte: Testemunhas do Medo (Les assassins de l'ordre).
Interpretou um juiz de instrução íntegro, tentando fazer com que policiais fossem condenados por espancarem um preso comum até a morte, na conservadora sociedade francesa do pós-1968.
Seus esforços e sacrifícios são inúteis, a impunidade dos assassinos da ordem prevalece.
O filme é de 1971, mas, tendo sido lançado com grande atraso no Brasil, estava em evidência mais ou menos na época do Caso Herzog.
Os pontos de contato nos chocaram, a arte antecipara a vida.
Depois, tomei conhecimento da carreira musical de Brel, cujo destaque absoluto é a canção que está na janelinha abaixo, "Ne me quitte pas", composta para a companheira que o estava abandonando: a cantora, atriz e apresentadora de TV Suzanne Gabrielle.
Foi em 1959, quando ele tinha 30 anos.
Os versos são um arraso. Belíssimos. Daqueles que qualquer poeta gostaria de ter composto.
E a interpretação de Brel, no calor dos acontecimentos, é simplesmente dilacerante.
Merece ser vista e revista infinitas vezes, por aqueles que são suficientemente fortes para gritar suas dores, ao invés de sofrerem em silêncio, como é de bom tom na nossa sociedade repressiva e hipócrita.
NÃO ME ABANDONES
Não me abandones. É preciso esquecer, tudo pode ser esquecido depois que já passou. Esquecer a fase dos mal-entendidos e o tempo perdido tentando saber o motivo. Esquecer as horas que às vezes mataram, com sopros de porquês, a última felicidade. Não me abandones.
Eu te oferecerei pérolas de chuva, vindas de países onde nunca chove. Eu escavarei a terra, eu escaparei da morte para cobrir teu corpo de ouro e de luzes. Eu criarei um país onde o amor será rei, onde o amor será lei e tu serás rainha. Não me abandones.
Não me abandones. Eu te inventarei palavras absurdas que tu compreenderás. Eu te falarei daqueles amantes que viram de novo seus corações incendiados. Eu te contarei a história daquele rei morto por não ter podido te reencontrar. Não me abandones.
Quantas vezes não vimos renascer o fogo do antigo vulcão que pensávamos extinto? Há até quem fale de terras calcinadas produzindo mais trigo do que no melhor abril. E quando vem a noite, com um céu flamejante, veja como se casam o vermelho e o negro, para que o céu se inflame. Não me abandones.
Não me abandones. Eu não vou mais chorar, não vou mais falar. Eu me esconderei lá para te contemplar a dançar e sorrir. E para te ouvir cantar e, então, rir. Deixe que eu me torne a sombra da tua sombra, a sombra da tua mão, A sombra do teu cão. Não me abandones. (CL)
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