Depois de sair quase destruído dos porões da ditadura, fiquei pouquíssimo tempo com meus pais. Estava uma pilha de nervos. Queria de qualquer forma reagir ao achatamento de personalidade que sofrera. Precisava desabafar, mas como? Com quem? Nunca sentira tanto ódio me corroendo por dentro.
Aí, provavelmente por meu pai ter tentado me acalmar, reagi de uma maneira injusta: toquei várias vezes seguidas na vitrola a canção Sr. Cidadão, do TomZé.
Como se meu pai fosse um conservador; só que não era.
E como se eu não tivesse um enorme dever de gratidão pelo ano que ele passara indo a cada duas semanas me visitar na PE da Vila Militar, com seu velho fusca caindo aos pedaços, só por milagre não quebrando na serra das Araras (Via Dutra).
Ele ouvira a música quieto, mas algumas horas depois pediu para eu tocá-la de novo. Percebi que me excedera e disse para não levar aquilo a sério, tinha sido só coisa de momento.
Mas, adiante, até muito tempo depois, ele continuava pedindo para ouvir de novo o Tomzé. Deve ter-se tornado uma espécie de símbolo para ele. Da minha ingratidão? Provavelmente.
Mesmo assim, não passava as 24 horas do dia na comunidade, e foi a minha pior fase de loucuras. Como se procurasse o perigo, para sentir que ainda conseguia derrotá-lo.
E vinha utilizando o LSD que eventualmente conseguia obter para aclarar a minha mente (tinha até dúvidas sobre lembranças do DOI-Codi que não sabia se eram reais ou meros pesadelos), então corri reais riscos de ser preso de novo, como dependente químico.
Só que, de alguma forma, o inferno pelo qual passara me dotara de uma capacidade que antes não tinha de safar-me dos perigos. Era um kamikaze teimando em sobreviver. Até que numa viagem dessas, vi uma ponte à minha frente e sabia que, se a atravessasse, ficaria para sempre naquele limbo. Resolvi não o fazer. E nunca mais repeti esse tipo de viagem.
Passei a juntar os cacos da minha existência, até porque nesse exato período a comunidade implodiu e tive de buscar meu caminho sem a família e sem os velhos companheiros. Acabei alugando uma pequena quitinete com minha última namorada e arrumando um emprego em assessoria de imprensa. Decidira sobreviver, com a esperança de um dia lutar de novo.
E o relacionamento com meus pais voltou ao normal. Toda noite de sábado eu e minha namorada os visitávamos levando pizza e passávamos horas jogando buraco. Mais tarde, quando chegou a onda do VHS, tive a satisfação de conseguir para o velho vários filmes dos mocinhos de bang-bang que ele curtira quando jovem. Era coisa rara, difícil de encontrar.
Tinha o trauma de haver perdido o pai com 11 anos de idade, assassinado com um tiro nas costas por um subalterno a quem demitira (era mestre de uma tecelagem no RJ) Assim, da noite para o dia passou a levar vida de adulto, obrigado a trabalhar em período integral para botar o pão na mesa familiar. Parentes ajudaram a conseguir-lhe emprego com a idade que tinha, embora o mínimo legal fosse 14 anos.
A tragédia o tornou cauteloso, tinha receio de ser também assassinado e me legar o mesmo sacrifício. Então admirei-o intensamente ao tomar conhecimento do que se passara quando o DOI-Codi foi finalmente me procurar, em vão porque eu já estava fora de casa havia alguns meses.
Depois de revistarem tudo e não acharem nada (eu fizera uma limpeza em regra antes de sair), um oficial tentou convencê-lo a me recomendar a rendição, pois só assim eles poderiam me ajudar.
Ele, que passara a vida inteira mantendo-se longe de encrencas, daquela vez não se conteve: "E foi para ajudar o meu filho que vocês vieram aqui em plena madrugada e viraram minha casa de cabeça para baixo, exibindo toda essa artilharia?".
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