domingo, 9 de abril de 2023

MEMÓRIA E PROFISSÃO DE FÉ

1970: aos 19 anos,
preso político.
 
H
oje é domingo, domingo de Páscoa. Dois motivos para sair um pouco do usual deste blog e apresentar uma divagação, digamos, mais íntima. Sei lá por quê, foi o que me apeteceu fazer(1).

É que me lembrei da velha constatação de Freud e de muitos artistas, de que aquilo que nos acontece no início da vida define nossos padrões de comportamento para sempre.

Eu fui criança enfermiça até os sete anos, amiúde gripado e febril, muito magro. Tuberculose era um fantasma que assombrava o sono dos meus pais, mais ou menos exorcizado com as antigas vacinas BCG que me eram aplicadas no posto de saúde, mas elas não dissipavam todos os seus temores. 

E um tio farmacêutico, numa época em que os controles de seu ofício quase inexistiam, aplicava-me penicilina sempre que necessário, por conta própria e sem me causar nenhum dano. 

Aliás, para a clientela pobre do bairro, ele substituía com vantagem os médicos que os coitadezas não tinham como bancar (os serviços públicos eram dantescos e a maioria fugia deles, salvo nos casos realmente graves).

Só entrei na escola com sete anos, em 1958. Comecei a cursar o 1º ano do curso primário com tais limitações. Nas férias, fui operado das amigdalas... e meus problemas mudaram quase instantaneamente.
2023: sempre no
bom combate
.

Passei a ser saudável... demais. Com enorme apetite, que meus pais correram a satisfazer, aliviados por se verem livres dos receios que a minha magreza antes lhes causava.

Fiquei obeso até lá pelos 12, 13 anos, quando o crescimento me colocou no peso normal.

Mas, o fato é que, primeiramente por ter saúde frágil, depois por ter ficado gordo, não me enturmei bem com os colegas do primário. E adquiri o perfil de lobo solitário, que acabou me ficando para sempre.

Excluído da panelinha dos mais destacados e brilhantes, reagi ficando na moita e não me esforçando até o exame final, quando surpreendia a todos obtendo o melhor resultado da classe.

No ginásio começaram os trabalhos em grupo e eu desenvolvi outra estratégia: formei minha própria panelinha, agrupando os patinhos feios e liderando-os de tal forma que o conjunto acabasse competitivo em relação à panelinha dos brilhantes e até a superasse.

Percebendo que meus protegidos jamais exporiam os trabalhos tão bem quanto os desembaraçados, mesmo que eu lhes preparasse ótimos scripts, introduzi a apresentação em forma de jogral. Imprimia o texto, distribuía as cópias com as falas de cada um sublinhadas, ensaiávamos, destacávamos os trechos mais importantes recitando-os em coro, etc. Funcionava.
Março/68: morte do Edson Souto.
Foi a minha primeira passeata.
 

De resto, tinha um ou outro amigo isolado, para conversar, ir ao futebol e ao cinema, jogar sinuca, remar no lago do Ibirapuera, sair atrás de garotas (quase sempre sem sucesso) e das prostitutas do centro da cidade (barra que não era sensato encarar sozinho).

Um episódio marcante: certo sábado, eu e um colega da escola, não propriamente amigo, fomos ao  
centrão  e ele gostou de uma prostituta. Tinha dinheiro para pagar e eu, não. Mesquinhamente, não se propôs a me emprestar o necessário, então abandonei-o lá. Na 2ª feira, estava com ferimentos feios no braço. Houve uma desavença e ela o feriu com gilete...

Só no movimento estudantil me vi como parte de um conjunto de iguais  e foi um tempo inesquecível. De uma ou outra forma, éramos todos diferentes dos jovens da nossa idade; e, irmanados pelo ideal comum, não competíamos entre nós, respeitando e prestigiando o talento de cada um. O meu era a redação. O grupo assumiu que eu deveria escrever os textos de panfletos, manifestos, etc., e ponto final.

Com a radicalização da luta, acabei separado dos meus caros amigos. E, mais uma vez, enfrentando rejeições em função da precocidade que, de um lado, me tornou, provavelmente, o mais jovem comandante da guerrilha de então, aos 18 anos, como integrante do Comando Estadual da VPR em São Paulo (abaixo apenas do Comando Nacional).

De outro, valendo-me invejas e hostilizações que afloraram quando o José Raimundo da Costa e eu iniciamos o processo que acabaria levando ao racha dos 7 e à recriação da VPR.
Também atirei minha pedra no governador Sodré, que
a esquerda escorraçou do 1º de maio na Praça da Sé.

Inicialmente, fomos combatidos com distorções e calúnias, acabando isolados e só não perdendo a parada porque, em função dos rumos do Congresso de Teresópolis da VAR-Palmares, em outubro de 1969, o Lamarca encamparia nossa visão; e, mais ainda no ano seguinte, quando foi tão facilmente aceita uma grave acusação contra mim que, alguns pelo menos, sabiam ser falsa (e eu, preso, não tinha como dela me defender).

Passei o resto da vida fora das panelinhas e tendo uma relação conflitante com elas. É claro que tudo se tornou bem mais difícil, pessoalmente, para mim.

Por outro lado, escapei da tendência bem brasileira de se relevar os erros dos amigos e transigir em relação a princípios. Pouco importando se sozinho ou com muitos ao meu lado, defendo sempre o que julgo ser correto. E desenvolvi uma couraça que me tornou imune à ação de rolos compressores.

Para mim, a política não se reduz a um jogo de futebol, em que tudo é visto pelo prisma do time pelo qual se torce e o gol impedido no finzinho do jogo merece aplausos.
Maio 2020: a avenida Paulista, da qual os fascistas expulsaram os petistas em 2016, era
 retomada por secundaristas e torcedores de futebol. As novas gerações são nossa esperança!
Então, por piores que sejam as práticas em que o inimigo incorra, serei fiel até o fim aos valores originais do marxismo. Devemos contribuir para o advento de um estágio superior de civilização, com cada um de nós corporificando pelo menos algumas das virtudes dos homens novos que, numa sociedade igualitária e livre, todos nos tornaremos.

No fluxo revolucionário dos anos 60, era mais fácil defender tais posições (depois taxadas de  utópicas  pelos inimigos de 1968). Hoje, no refluxo, parece até lógico o retorno ao velho maniqueísmo stalinista e à  realpolitik  do tempo da guerra fria, aceitando-se como  males menores  déspotas maiores do tipo de Gaddafi e Saddam Hussein(2), apenas porque seus interesses não se alinha(va)m com os de EUA, Israel e países europeus. 
A sobrevida do capitalismo durou bem mais do que Marx
previa, mas sua margem de manobra é cada vez menor.

Esquece-se até que de revolucionários eles não tinham ou têm absolutamente nada!

Só que tais  males menores, por sua ignorância, iniquidade e barbárie, produzem, na verdade, o pior de todos os males: a descaracterização da esquerda

Deixamos de representar, aos olhos dos injustiçados e dos oprimidos, a alternativa à desumanidade do capitalismo putrefato e à liquidação dos valores mais nobres sob o primado dos cálculos mesquinhos.

Quando encaminhamo-nos para cenários propícios à retomada das lutas pela revolução mundial (3), é hora de voltarmos a pensar grande. E com ética. E com humanidade.

E com, no mínimo, senso comum: quem quer mudar o mundo, não pode estar associado ao que de pior o mundo já produziu.

Se minha sofrida trajetória teve algum sentido, foi o de me preparar para o desempenho do atual papel, de trincheira contra a descaracterização da esquerda, mantendo viva a lembrança das premissas libertárias do marxismo, que os  pragmáticos  de hoje tudo fazem para relegar ao olvido. (por Celso Lungaretti)
1Este artigo foi escrito e publicado pela primeira vez em 2011, mas continua expressando fielmente meus valores e sentimentos;
2Hoje seriam os igualmente desprezíveis Putin, Ortega e assemelhados, gente disposta a passar sobre montanhas de cadáveres para satisfazer suas ambições e/ou compulsões torpes;
3Sim, 12 anos atrás eu estava esperançoso quanto ao que adviria da insustentabilidade definitiva do capitalismo e da escalada do aquecimento global. Incurável otimista, não me passavam pela cabeça as hipóteses da entropia, do caos e do retrocesso civilizatório. E continuo até hoje acreditando que a humanidade acabará sobrevivendo aos estertores agônicos do capitalismo e aos horrores decorrentes das alterações climáticas, mesmo pagando um preço terrível por sua demora em buscar a salvação. (CL)
Poesia-tributo aos companheiros que comigo ingressaram na VPR.
Após a morte do Eremias, Gerson, Mané e Gilson, restamos quatro: o 
Diego, o Edmauro, a Teresa e eu. Declamei-a por insistência da  
minha prima Nádia Stabile, que decidira gentilmente criar este vídeo.

3 comentários:

SF disse...

Hoc non pereo habebo fortior me.
“O que não me mata, faz-me mais forte”.

Anônimo disse...

https://gilvanmelo.blogspot.com/2023/04/muniz-sodre-um-nome-para-o-inominavel.html

Anônimo disse...

https://www.ihu.unisinos.br/627720-oligopolios-na-alimentacao-mundial-lucros-milionarios-e-a-pandemia-de-fome

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