terça-feira, 24 de setembro de 2024

A ESQUERDA QUE NÃO SE DEIXOU COOPTAR PELO CAPITALISMO: UM LEGADO (parte 4)

Entrei no ano de 1970 atuando novamente como comandante de Inteligência, só que no Rio de Janeiro e finalmente adaptado a tal função (que nunca sonhara vir a exercer). 

Assim, eu me reportava diretamente aos dois integrantes do Comando Nacional (o Jamil/Ladislau Dowbor e a Lia/Maria do Carmo Brito, esta de origem Colina)  que faziam a ponte entre a cidade e o campo, onde o terceiro comandante nacional (o Cid/Carlos Lamarca) tratava de implantar a escola de treinamento guerrilheiro. 

E mantinha-me em contato diário com os outros comandantes baseados no RJ, o Juvenal/Juarez Guimarães de Brito e o Roberto Gordo/José Ronaldo Tavares de Lira e Silva, responsáveis pelas nossas duas unidades de combate lá atuantes.

Já não era tratado como neófito inexperiente, mas aceito como igual pelos veteranos, naquela fase da luta em que sobreviver quase um ano aos perigos diários se tornara um marco inalcançável para muitos. 

E passara a ser colocado a par dos encaminhamentos mais importantes e consultado sobre as decisões a serem tomadas. Assim, quando o Mário Japa/Chizuo Ozava acidentou-se ao volante e a repressão encontrou no porta-malas do seu carro armas e documentos da Organização, estive próximo de todos os trâmites para resgatá-lo antes que a Oban percebesse que se tratava de um dirigente e intensificasse as torturas. O receio era que revelasse a localização da área ativa de treinamento, pois ele participava do trabalho de campo.
Como cantou Milton Nascimento, memória não morrerá!


Assim, sequestrado o cônsul japonês Nobuo Okuchi para servir-nos como moeda de troca, coube a mim a decisão de quantos prisioneiros exigiríamos por sua libertação. Era uma conta delicada, pois repercutira muito mal na esquerda armada a ingenuidade da ALN ao pedir tão somente 15 militantes pela devolução do embaixador estadunidense (por ele os militares dariam muitos mais!).

Ponderei que era arriscado exagerarmos, já que para a ditadura um embaixador dos EUA tinha peso muito maior do que um cônsul nipônico. Também não poderíamos trocá-lo apenas pelo Mário Japa, caso contrário cairia para o inimigo a ficha de que tinha nas mãos um quadro que valorizávamos muito. 

Então, precisávamos botar outros companheiros na lista, mas não a ponto de os fardados ficarem em dúvida sobre o atendimento ou não da nossa exigência. Propus o número de cinco, cinco pedimos e cinco obtivemos. 

Enviado o Japa para a Argélia, restava a dúvida sobre se ele teria dado alguma pista sobre a área ou os trabalhos  nela poderiam prosseguir normalmente. 

E foi uma aliada do meu setor que cumpriu a arriscada missão de contatar o Japa em Argel, apesar de provavelmente estar muito vigiado por espiões de outros países. A nossa enviada, uma aeromoça, conseguiu viajar até lá, falar rapidamente com ele e voltar com o sinal verde pelo qual ansiávamos. 
Albuquerque Lima (esq.) queria reproduzir no Brasil o 
nacionalismo do ditador peruano Juan Velasco Alvarado
Também coube a mim orientar a aliada jornalista que, namorando um colega envolvido com a ala nacionalista do Exército, dele extraía informações sobre a luta interna pelo poder supremo entre os altos oficiais. 

Se prevalecesse a tendência encabeçada pelo ministro do Interior  Afonso Albuquerque Lima, a repressão se radicalizaria ainda mais, daí a necessidade de estarmos sempre atentos sobre a correlação de forças na caserna.

Enfim, no RJ eu estava atuando verdadeiramente como um quadro de Inteligência, ao contrário do que acontecera em SP, onde a minha contribuição era maior como integrante do Comando estadual do que na minha função específica. 

Mais: desenvolveu-se uma grande  afinidade entre o Juvenal e eu, pois ambos éramos egressos do movimento estudantil (ele fora professor e se tornou o comandante militar do Colina, com um notável talento para planejar ações astutas como a expropriação do cofre do Ademar). 

Tínhamos formação humanista: acreditávamos na luta armada, mas travada com critério, sem bravatas nem desnecessário derramamento de sangue.  Nossa visão da organização era bem profissional, ao estilo dos tupamaros uruguaios. E sabíamos que, se porventura vencêssemos (hipótese que sabíamos ser remota), deveríamos evitar a todo custo as armadilhas do autoritarismo que desfigurara outras revoluções. 

Apesar de amargurado com as quedas e mortes de companheiros intensificando-se cada vez mais e possuindo informações suficientes para concluir que a luta se tornava adversa ao extremo para nós, ainda assim continuei firmemente decidido a marchar até o mais amargo fim. 
Depondo na Auditoria da Marinha um dia após a Dilma

Tanto quisera ser necessário para a revolução, então quando o estava sendo não poderia jamais optar pela autopreservação. Afora conservar alguma esperança de que, se conseguíssemos ativar a coluna guerrilheira, a luta ainda poderia ter uma reviravolta em nosso favor. 

Não se é verdadeiramente revolucionário sem esse desejo ardente de transformar a sociedade que nos leva a assumir os piores riscos que surjam pelo caminho. Mas, nem meus piores augúrios igualavam o pesadelo que veio a seguir. 

Se valho alguma coisa, foi por não ter-me deixado quebrar pelas adversidades que despencaram  sobre mim a partir daquela funesta quinta-feira, 16 de abril de 1970.

Antes, aconteceu o que se repetiria muitas vezes na minha militância: tive uma forte suspeita de que algo muito ruim estava a caminho, mas não consegui convencer quem poderia evitá-lo.

Foi num ponto meu com a Lia e o Jamil, na segunda ou terça-feira. Disseram que o Lamarca exigira a presença dos demais comandantes nacionais e dos comandantes de unidades de combate na área de treinamento guerrilheiro, pois temia que a Organização novamente não estivesse priorizando a tarefa principal (lançamento da coluna guerrilheira) como deveria. 

Afora esta notícia, os dois me trouxeram outra: a de que o Wellington Moreira Diniz (se bem me lembro, seu nome-de-guerra era Hélio) não comparecera ao ponto semanal com a VPR na manhã de sábado, nem na alternativa no início da noite. 
Wellington Moreira Diniz em
2013, ao ser julgada sua anistia

Ele tivera participação marcante nas ações armadas do Colina, praticamente como braço direito do comandante Juvenal. Mas, meses antes, foi diagnosticado que ele era portador de um problema cardíaco e a VPR retirou-o das ações armadas, permitindo que passasse a morar com uma namorada que não pertencia aos nossos quadros, tendo como única missão dar treinamento a grupos de esquerda inexperientes que se aproximavam da VPR.

Eu o conhecia do congresso de outubro da VAR-Palmares e não acreditava que faltaria a dois compromissos com a Organização por motivo fútil. Pensei logo que ele deveria ter sido morto ou preso.

E me ocorreu que, se ele houvesse mesmo caído no sábado, seria uma temeridade os comandantes estarem reunidos no campo e não a postos para lidar com uma possível emergência. A VPR, por causa das quedas que se sucediam implacavelmente, resolvera adotar um modelo vertical, com cada unidade de combate, bem como a minha de Inteligência, conhecendo apenas seu comandante. 

O contato entre elas era unicamente o contato entre os comandantes. Com estes ausentes, ficaria muito mais difícil cientificarmos uns aos outros e tomamos providências para evitar uma sucessão de quedas em cascata.

Insisti longamente com o Jamil e a Lia no sentido de que adiassem a reunião com o Lamarca, mas ambos não ousaram discrepar dele. Representavam dois terços do Comando Nacional, portanto poderiam fazê-lo, mas refugaram. Foi fatal.

O Wellington tinha mesmo sido preso no sábado e desde então sofria as piores torturas, mas aguentou bravamente  até a quarta-feira, quando acabou abrindo o fotógrafo ao qual conduzira o Lamarca para tirar fotos após a sua operação plástica. O fotógrafo, por sua vez, entregou um médico que era nossa principal fonte de aliados e, ao mesmo tempo, a maior vulnerabilidade que tínhamos no RJ. 

Esse médico abriu o ponto que tinha comigo. Outros companheiros também caíram, não sei exatamente como. E os comandantes que haviam se reunido no campo, foram sendo presos logo ao voltarem. A pior sequência de quedas da VPR varreu a organização em todos os estados nos quais estava estabelecida.
 Comissão Nacional da Verdade falhou em entregar
às famílias os restos mortais dos desaparecidos
  

Ao ser conduzido para a sede do DOI-Codi, no quartel da Polícia do Exército na Tijuca, eu quase sufocava por causa do capuz que me colocaram e de me forçarem a cabeça para baixo a fim de não ser visto da rua ou dos carros que passavam ao lado. 

Sabia que, mesmo se sobrevivesse, nunca mais seria o mesmo. E não tinha certeza de que valeria a pena sobreviver. 

Se funcionasse a capsula de cianureto produzida por estudantes de química aliados da VPR, eu a teria usado, mas aqueles aprendizes de feiticeiro haviam falhado em algum detalhe, de forma que poucos dias antes o Juvenal me informara do fracasso colhido por quem a utilizara. Então, só restava preparar-me para o pior. (por Celso Lungaretti)

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