quarta-feira, 13 de novembro de 2024

A ESQUERDA QUE NÃO SE DEIXOU COOPTAR PELO CAPITALISMO: UM LEGADO (parte 6)

Sítio que serviu como fachada para a segunda
área de treinamento da VPR em Registro

Passados dois meses, eu já antevia  o momento em que sairia da chamada fase operacional, passando a levar a vida enfadonha dos presos políticos que já não detinham informações  do interesse da repressão e, portanto, só voltariam a ser espremidos caso viessem à baila fatos novos ou se outras capturas fizessem os torturadores perceberem que suas vítimas anteriores não haviam contado tudo que sabiam.

Embora eu houvesse, nos piores momentos, duvidado de que sobreviveria, o saldo até então era positivo em meu favor, pois a minha culpa pelas quedas em cascata era quase nenhuma. 

Afinal, meu principal papel na organização era o de municiar os outros comandantes com informações e análises; e, como as prisões de alto escalão tiveram outras origens, a organização só poderia me recriminar a dissimulação a que eu recorria, sempre fingindo estar mais abalado pelas torturas do que realmente estava.   

Até que ponto eu conseguia enganar os torturadores e até que ponto eles às vezes não iam às últimas consequências comigo por temerem que eu morresse? Jamais saberei ao certo, mas, dois dias depois da minha prisão, um velho militar suspeitou que eu estivesse passando mal e chamou o médico. 

Minha pressão deveria estar assustadora, pois logo me encheram de calmantes e escalaram aquele oficial para conversar comigo e me tranquilizar um pouco. 

Como nunca fui ingênuo, avaliei que a morte recente do jovem companheiro Chael Charles Schereier repercutira mal mundo afora e eles temiam que uma ocorrência semelhante. tendo como vítima um militante mais jovem ainda, provocasse outra onda de denúncias e indignação contra a ditadura no exterior. 
A morte em novembro de 1969 de Chael Charles Schreier, com inconfundíveis marcas de
tortura, repercutiu mundialmente e até inspirou  matéria de capa famosa da revista Veja
Mas, o alívio durou pouco e em maio já voltavam a me torturar com mão pesada.  A diferença era que já não esperavam descobrir nada importante por meu intermédio, tanto que me transferiram da solitária ao lado da sala de torturas para uma cela para vários prisioneiros no andar de cima e a frequência com que me buscavam para interrogatórios diminuíra. 

Tudo me fazia crer que eu já estava prestes a ser transferido, para finalização de inquérito em algum dos quartéis da Vila Militar quando, no dia 11 de junho, a VPR e a Ação Libertadora Nacional sequestraram o embaixador alemão  Ehrenfried von Holleben.

Os analistas da repressão mandaram agentes do Deops me interrogarem para a finalização do que dizia respeito a mim nos inquéritos da VPR e da VAR-Palmares (ou seja, éramos obrigados a repetir sem torturas tudo que eles haviam arrancado de nós mediante torturas, sendo esta  versão indolor então encaminhada às auditorias militares. 

Se confirmássemos aquilo de que nos acusavam, tínhamos a incomunicabilidade  quebrada e ficávamos aguardando julgamento em unidades militares que não integravam a estrutura de terrorismo de estado criada para o combate à subversão e à luta armada. 
Este interrogatório na auditoria da Marinha, em processo da
VAR-Palmares, ocorreu um dia após o da foto famosa da Dilma
 

Se nos negássemos a admitir o que já tínhamos admitido anteriormente, nos mandavam de volta para o DOI-Codi e nos torturavam de novo até que nos conformássemos em jogar o jogo do jeito deles.

Geralmente a transferência para unidade não-torturadora antecedia a tomada de depoimentos para fins jurídicos, assim a farsa ficava completa. Os relatórios sangrentos produzidos pelo DOI-Codi permaneciam secretos e os depoimentos que embasavam nossas condenações não tinham manchas de sangue. 

Mas, com o sequestro do embaixador  von Holleben em curso, nem se preocuparam em me transferir para outra unidade; pegaram meu depoimento no DOI-Codi mesmo. A própria repressão dava como favas contadas que meu nome estaria entre os 40 da lista de troca.    

O avião partiu no dia 16 e eu fui deixado para trás, sendo alvo inclusive de zombarias dos torturadores ("Levaram até lastro no seu lugar"). Como eu atendia aos critérios para inclusão entre os libertados e não fora responsável por nenhuma queda de quadro importante, logo imaginei que a exclusão do meu nome tinha a ver com a queda da área de treinamento guerrilheiro.

A VPR estava me atribuindo tal delação embora eu nem sequer conhecesse a localização da dita área: tinha sido um dos cinco integrantes da equipe precursora da instalação de uma escola de guerrilha na região de Registro, SP; mas, como o local se revelou inadequado para nosso propósito, após três semanas abandonamos o sítio que havíamos adquirido e o trabalho foi transferido para outro lugar, já sem minha participação.  
Foram 40 os presos políticos trocados pelo embaixador Ehrenfried von Holleben
Então, por óbvia medida de segurança, os dois que decidimos não continuar no trabalho de campo fomos,  no dia da desativação da primeira área, levados de volta para a Capital: eu, para retomar a atividade de comandante de Inteligência noutro estado, o Rio de Janeiro; e o Massafumi Yoshinaga para desfiliar-se da organização. 

A localização da segunda área, a definitiva, por parte do DOI-Codi/RJ, se deu em 8 de abril de 1970, um sábado, dois dias após minha prisão. Durante aquela tarde, houve uma reunião com a participação de uns 40 altos oficiais visitantes  e eu fui conduzido até ela. Quando chegava na sala onde o encontro se realizava, cruzei com integrante da VPR que dela estava saindo. Sua prisão ocorrera naquele sábado.

De mim queriam saber detalhes sobre a primeira área, a abandonada. Mas, o inusitado daquela reunião e a má ideia que tiveram de atar-me eletrodos nos dedos, criando a ameaça de choques elétricos, produziu efeito contrário. Foi quando um dos oficiais visitantes suspeitou que eu estivesse passando mal e fez com que viesse o médico.

Acabei não os ajudando em nada, mas, ao me retirarem da sala, um dos oficiais comentou com o outro que, de qualquer forma, eles já sabiam o que precisavam saber.
Formatura do Lamarca: 10 anos depois,
venceria o Exército que o cercava em Registro
 

Ou seja:
eu nunca ignorei quem entregara a área definitiva. A pessoa estava pálida como fantasma quando cruzei com ela, então não tive duvida de que durante algumas horas ela sofrera as piores torturas. 

Depois, na segunda-feira, fomos ambos levados até Registro num jatinho da FAB, para ficarmos à disposição dos responsáveis pela caçada aos companheiros. Quando aterrissamos, nos separaram e nunca mais falei com tal pessoa.

Tinha quase certeza de que eu fora preterido na lista de troca do embaixador alemão por estar servindo de bode expiatório da delação da área enquanto quem tinha realmente fraquejado decolava com o prestígio intacto para a Argélia. Fiquei perplexo e desolado. 

Continuei acreditando firmemente (até hoje!) na necessidade de uma urgente revolução anticapitalista, mas perdi para sempre a confiança cega nos companheiros. 

Levei muito tempo para compreender que, num instante em que a VPR sofria a pior de suas crises de segurança e precisava repor com urgência os quadros que perdera, a verdade sobre quem entregara ao inimigo as joias da coroa teria um efeito acachapante, dificultando ainda mais seus esforços para dar a volta por cima. Compreendi adiante o porquê, mas aos 19 anos não se aceita facilmente uma injustiça dessas. Quase fui destruído   

Preso, não tinha como restabelecer a verdade. Solto, continuava tão indignado com os companheiros que haviam me condenado sem sequer procurarem conhecer a minha versão que decidi não denunciar quem estava me deixando carregar em seu lugar  culpa tão terrível. Resolvi reagir à indignidade sendo mais digno do que todos que me atacavam.   

Só vim a levantar essa lebre no final de 2004, por ter surgido uma oportunidade de provar a minha inocência sem necessidade de apontar a quem pertencia a culpa. 
As Forças Armadas mobilizaram 2.954 homens para NÃO
capturarem Lamarca e uns poucos aprendizes de guerrilheiros

 

E, em 1970, ainda houve outra consequência nefasta para mim: o fato de que parte da estrutura da VPR no RJ sobrevivera às quedas em cascata e conseguira sequestrar o embaixador alemão em parceria com a ALN fez os torturadores do DOI-Codi notarem que eu omitira a existência de uma unidade de combate que permanecera incólume: a que era comandada pelo falecido Juarez Guimarães de Brito.

Eles acreditavam ter liquidado completamente a VPR naquele estado e devem ter ouvido poucas e boas dos superiores, pois tinham inclusive descoberto o plano para sequestrarmos o von Holleben e não lhe providenciaram proteção, provavelmente supondo que não havia mais ninguém para efetuar a proeza. Só que houve.

Um deles descarregou a raiva em mim. O oficial responsável pelo inquérito da VAR-Palmares viera tomar meu depoimento e um raivoso do DOI-Codi, ao passar pelo corredor, viu-me e perdeu a cabeça. Entrou e esmurrou-me tão violentamente pelas costas que me derrubou da cadeira e jogou a mesinha em cima do oficial visitante.

Só que aquele oficial era superior a ele em termos hierárquicos e ficou furibundo por ter a patente duplamente desrespeitada (eu estava sob a guarda dele naquele instante e nenhum outro poderia intervir sem sua permissão).

Discutiram aos berros no corredor, quase chegando às vias de fato. Quando o visitante sentou-se de novo, disse-lhe que, se permanecesse no DOI-Codi, acabariam me matando. 
"Longe, longe, ouço essa voz que o tempo não vai levar"

Bingo. Logo no dia seguinte fui transferido. Eu avaliara bem que, oferecendo uma oportunidade de revanche para o ultrajado, este mobilizaria suas influências, se as tivesse, na direção que me convinha.  

Mas, foi sair do fogo para cair na frigideira. Enviaram-se para a pior unidade do RJ depois do próprio DOI-Codi: a PE da Vila Militar.  (por Celso Lungaretti)

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