Sítio que serviu como fachada para a segunda área de treinamento da VPR em Registro |
Afinal, meu principal papel na organização era o de municiar os outros comandantes com informações e análises; e, como as prisões de alto escalão tiveram outras origens, a organização só poderia me recriminar a dissimulação a que eu recorria, sempre fingindo estar mais abalado pelas torturas do que realmente estava.
Até que ponto eu conseguia enganar os torturadores e até que ponto eles às vezes não iam às últimas consequências comigo por temerem que eu morresse? Jamais saberei ao certo, mas, dois dias depois da minha prisão, um velho militar suspeitou que eu estivesse passando mal e chamou o médico.
Minha pressão deveria estar assustadora, pois logo me encheram de calmantes e escalaram aquele oficial para conversar comigo e me tranquilizar um pouco.
A morte em novembro de 1969 de Chael Charles Schreier, com inconfundíveis marcas de tortura, repercutiu mundialmente e até inspirou matéria de capa famosa da revista Veja |
Tudo me fazia crer que eu já estava prestes a ser transferido, para finalização de inquérito em algum dos quartéis da Vila Militar quando, no dia 11 de junho, a VPR e a Ação Libertadora Nacional sequestraram o embaixador alemão Ehrenfried von Holleben.
Os analistas da repressão mandaram agentes do Deops me interrogarem para a finalização do que dizia respeito a mim nos inquéritos da VPR e da VAR-Palmares (ou seja, éramos obrigados a repetir sem torturas tudo que eles haviam arrancado de nós mediante torturas, sendo esta versão indolor então encaminhada às auditorias militares.
Este interrogatório na auditoria da Marinha, em processo da VAR-Palmares, ocorreu um dia após o da foto famosa da Dilma |
Geralmente a transferência para unidade não-torturadora antecedia a tomada de depoimentos para fins jurídicos, assim a farsa ficava completa. Os relatórios sangrentos produzidos pelo DOI-Codi permaneciam secretos e os depoimentos que embasavam nossas condenações não tinham manchas de sangue.
Mas, com o sequestro do embaixador von Holleben em curso, nem se preocuparam em me transferir para outra unidade; pegaram meu depoimento no DOI-Codi mesmo. A própria repressão dava como favas contadas que meu nome estaria entre os 40 da lista de troca.
O avião partiu no dia 16 e eu fui deixado para trás, sendo alvo inclusive de zombarias dos torturadores ("Levaram até lastro no seu lugar"). Como eu atendia aos critérios para inclusão entre os libertados e não fora responsável por nenhuma queda de quadro importante, logo imaginei que a exclusão do meu nome tinha a ver com a queda da área de treinamento guerrilheiro.
Foram 40 os presos políticos trocados pelo embaixador Ehrenfried von Holleben |
A localização da segunda área, a definitiva, por parte do DOI-Codi/RJ, se deu em 8 de abril de 1970, um sábado, dois dias após minha prisão. Durante aquela tarde, houve uma reunião com a participação de uns 40 altos oficiais visitantes e eu fui conduzido até ela. Quando chegava na sala onde o encontro se realizava, cruzei com integrante da VPR que dela estava saindo. Sua prisão ocorrera naquele sábado.
De mim queriam saber detalhes sobre a primeira área, a abandonada. Mas, o inusitado daquela reunião e a má ideia que tiveram de atar-me eletrodos nos dedos, criando a ameaça de choques elétricos, produziu efeito contrário. Foi quando um dos oficiais visitantes suspeitou que eu estivesse passando mal e fez com que viesse o médico.
Formatura do Lamarca: 10 anos depois, venceria o Exército que o cercava em Registro |
Depois, na segunda-feira, fomos ambos levados até Registro num jatinho da FAB, para ficarmos à disposição dos responsáveis pela caçada aos companheiros. Quando aterrissamos, nos separaram e nunca mais falei com tal pessoa.
Tinha quase certeza de que eu fora preterido na lista de troca do embaixador alemão por estar servindo de bode expiatório da delação da área enquanto quem tinha realmente fraquejado decolava com o prestígio intacto para a Argélia. Fiquei perplexo e desolado.
Continuei acreditando firmemente (até hoje!) na necessidade de uma urgente revolução anticapitalista, mas perdi para sempre a confiança cega nos companheiros.
Levei muito tempo para compreender que, num instante em que a VPR sofria a pior de suas crises de segurança e precisava repor com urgência os quadros que perdera, a verdade sobre quem entregara ao inimigo as joias da coroa teria um efeito acachapante, dificultando ainda mais seus esforços para dar a volta por cima. Compreendi adiante o porquê, mas aos 19 anos não se aceita facilmente uma injustiça dessas. Quase fui destruído
As Forças Armadas mobilizaram 2.954 homens para NÃO capturarem Lamarca e uns poucos aprendizes de guerrilheiros |
Eles acreditavam ter liquidado completamente a VPR naquele estado e devem ter ouvido poucas e boas dos superiores, pois tinham inclusive descoberto o plano para sequestrarmos o von Holleben e não lhe providenciaram proteção, provavelmente supondo que não havia mais ninguém para efetuar a proeza. Só que houve.
Um deles descarregou a raiva em mim. O oficial responsável pelo inquérito da VAR-Palmares viera tomar meu depoimento e um raivoso do DOI-Codi, ao passar pelo corredor, viu-me e perdeu a cabeça. Entrou e esmurrou-me tão violentamente pelas costas que me derrubou da cadeira e jogou a mesinha em cima do oficial visitante.
"Longe, longe, ouço essa voz que o tempo não vai levar" |
Mas, foi sair do fogo para cair na frigideira. Enviaram-se para a pior unidade do RJ depois do próprio DOI-Codi: a PE da Vila Militar. (por Celso Lungaretti)
PARA ACESSAR TODOS OS POSTS DESTA SÉRIE, CLIQUE EM
PARTE 1, PARTE 2, PARTE 3, PARTE 4, PARTE 5, PARTE 6
Nenhum comentário:
Postar um comentário