quinta-feira, 15 de agosto de 2024

A ESQUERDA QUE NÃO SE DEIXOU COOPTAR PELO CAPITALISMO: UM LEGADO (parte 2)

O Jamil (Ladislau Dowbor) era um militante brasileiro de ascendência polonesa que, após absorver novidades importantes em teoria revolucionária durante seus estudos acadêmicos em Israel e na Europa, voltara ao Brasil para participar da luta armada, ingressando na VPR.

Não vejo necessidade de expor aqui, mais de meio século depois, a fundamentação econômica de suas teses. Exatamente por causa de sua relativa complexidade, não despertaram o interesse da grande maioria dos quadros da organização.

O que me pareceu um verdadeiro ovo de Colombo foi sua conclusão. Se não, vejamos. 

A esquerda brasileira se dividia de forma exacerbada entre dois segmentos. Um, o que prevalecia acentuadamente antes do golpe de 1964,  acreditava na necessidade de uma etapa inicial, democrático-burguesa na nossa revolução, para extirpar resquícios feudais que ainda continuariam existindo no campo. 

Como consequência, os camponeses também estariam entre os sujeitos revolucionários e haveria uma burguesia nacional que poderia ser nossa aliada durante tal fase.

O outro, cujos adeptos eram principalmente os esquerdistas empenhados em aprofundar os motivos da derrota infame diante da quartelada castellista, via o Brasil como um país definitivamente capitalista, cuja burguesia se atrelava à sua congênere internacional e cujos sujeitos revolucionários seriam os explorados das cidades e dos campos (os últimos lutando não pela posse individual da terra, mas para dela disporem visando à produção coletiva).

O Jamil simplesmente quebrou o brinquedo predileto dos scholars de esquerda, que adoravam discutir se quem estava certo era Nelson Werneck Sodré com sua revolução inicialmente popular ou Caio Prado Jr. com sua revolução socialista desde o início.
Dowbor hoje leciona economia e administração na PUC

Argumentou que, ao contrário dos modelos estrangeiros (principalmente a revolução russa de 1917), não havia no Brasil nenhuma força de esquerda capaz de ser a dominante naquele momento, como o Partido Comunista Brasileiro havia sido durante mais de quatro décadas, após vencer a disputa com os anarquistas e incorporar parte deles aos seus quadros. 

Então, a revolução brasileira só teria alguma chance de êxito se iniciada pelo conjunto de forças de esquerda, cada uma dando a contribuição a seu alcance, até que, ao longo do processo, alguma se afirmasse (ou não) como a principal.

E seria também o próprio transcurso do processo revolucionário que daria a última palavra sobre se haveria ou não uma etapa democrático-burguesa. Os que a pregavam lutariam por ela, mas certamente não se deteriam caso tal etapa fosse ultrapassada de passagem e o processo seguisse adiante; nem os adeptos do socialismo direto tinham motivo para ficar querendo comprovar sua estratégia no blablablá se poderiam fazê-lo na prática.

Assim, cada partido e organização de esquerda começaria perseguindo seus objetivos por si só, no seu território próprio e com os recursos que possuísse, depois alianças iram se forjando ao sabor da luta.

Tal proposta permitia desatar o nó que produzira situações ridículas como a da ocasião em que uma passeata estudantil contra a ditadura terminou com um discurso de Zé Dirceu num dos cantos do Largo São Francisco (SP) e um de Catarina Meloni no outro lado, cada um pretendendo representar a verdadeira União Estadual dos Estudantes (a entidade saíra rachada de um congresso recente).

E, no caso da VAR-Palmares, Jamil acenava com a possibilidade de os quadros de origem VPR se ocuparem das tarefas militares do processo (o lançamento da guerrilha rural e a propaganda armada nas cidades), pois é para isto que tinham expertise. 
Torturado quando convalescia
de ferimentos, o Elias morreu

Enquanto isto, os néo-massistas continuariam procurando atuar simultaneamente na luta armada e no trabalho de massas, embora a segunda tarefa ensejasse vulnerabilidades enormes para a primeira. Tanto que desempenhou papel secundário nas lutas travadas dali em diante. 

Seria ocioso relatar de novo, detalhadamente, como transcorreu este novo processo de luta interna nas fileiras da VPR (com o acréscimo dos quadros do Colina, durante aqueles poucos meses em que ambas as organizações estiveram unidas na VAR-Palmares). Já o fiz no meu livro Náufrago da Utopia (Geração Editorial, 2005), então vou resumir:
-- a queda e morte sob tortura do quarto integrante do Comando Estadual de SP, João Domingos da Silva, o Elias, responsável pelas ações armadas, deixou nós outros três à volta com uma enorme crise de segurança, pois o bravo guerreiro não compartilhara com ninguém a localização de depósitos de armas, aparelhos de reserva, dinheiro para emergências, etc. Companheiros se amontoavam nos aparelhos ainda tidos como seguros:
-- nessas circunstâncias, os três remanescentes do Comando Estadual decidimos não realizar a conferência preliminar do Congresso da VAR-Palmares na qual seriam escolhidos os dois delegados de SP, avocando a indicação (eu e o Moisés optamos por nós mesmos);
-- o terceiro comandante de SP se uniu, então, aos dois comandantes nacionais que víamos como néo-massistas, dando-lhes a justificativa para um contra-ataque em que fomos, eu e o Moisés, apresentados como golpistas e tivemos nossa delegação anulada;
-- no transcurso do Congresso da VAR-Palmares, contudo, o comandante Carlos Lamarca concluiu que a organização estava mesmo esvaziando a montagem da coluna revolucionária e priorizando implicitamente o crescimento nas cidades, então encabeçou o chamado racha dos sete (o Moisés e eu inclusos), que encampou as principais propostas de nós dois: a volta à identidade de VPR e a adoção das Teses do Jamil como plataforma revolucionária.

No fundo, aquela nossa iniciativa apenas direcionou um terço da VAR-Palmares para a única posição possível para a esquerda armada continuar lutando a partir das derrotas terríveis que sofreria a partir de 1970, enquanto os dois terços restantes, sem seus melhores combatentes, rapidamente seriam tragados pelas circunstâncias extremadas que a luta assumiu. 

Logo a união de várias forças da esquerda se tornou não uma opção escolhida, mas um imperativo para a concretização das ações armadas mais ambiciosas que nenhuma delas conseguia mais realizar sozinha.

De resto, eu não poderia deixar de reivindicar o papel que desempenhei no racha dos sete e foi geralmente escamoteado nas histórias contadas por outros autores, pois nada do legado que pretendo a duras penas ter deixado para a esquerda brasileira faria sentido sem levar-se em conta a origem da estigmatização que eu sofreria, nem o porquê de eu ter-me tornado uma espécie de lobo solitário. (por Celso Lungaretti -- continua)    

Para acessar a primeira parte desta série, tecle aqui

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