sexta-feira, 31 de julho de 2009

CAI A MÁSCARA DO SARNEY. E TAMBÉM A DA "FOLHA"

Com a coluna desta 6ª feira de José Sarney na Folha de S. Paulo, intitulada O fim dos direitos individuais (ver aqui), caiu mais uma máscara que o jornal utilizava para conceder privilégios indevidos aos amigos do rei. É uma história que merece ser contada em detalhes.

Diante das evidências gritantes de que práticas ilicitas nas esferas executiva e legislativa tinham participação, acobertamento, consentimento ou omissão de José Sarney, leitores da Folha vinham manifestando, há várias semanas, sua indignação por ele manter um espaço fixo como colunista.

Um desses leitores foi meu companheiro de lutas na defesa dos direitos humanos, o promotor Jorge Marum. Associei-me à sua manifestação de repúdio, estendendo-a a Delfim Netto que, como signatário do AI-5, deu sinal verde não só para todos os genocídios e atrocidades perpetrados pela ditadura militar a partir de dezembro/1968, como também para a censura e intimidação da imprensa. Que memória curta tem a Folha!

Na verdade, não são apenas os dois que jamais deveriam ter espaços fixos como colunistas em veículo nenhum da mídia. Mesmo no caso de uma ave de outra plumagem, como Fernando Gabeira, há um óbvio conflito entre o papel de deputado envolvido nas lutas políticas e o de comentarista que opina sobre elas.

Direta ou indiretamente, poderá sempre estar advogando em causa própria. Então, o justo é que o faça nos espaços noticiosos, como parte do tiroteio político. Não num espaço opinativo, que teoricamente deveria ser reservado para analistas, tanto quanto possível, equidistantes e neutros.

Ou seja, concede-se a um ator político um espaço cativo no jornal, mas não se dá o mesmo direito aos demais atores políticos que possam sentir-se prejudicados por seus textos. Para um, visibilidade e prestígio. Para os que queiram constestá-lo, a seção de leitores, que Paulo Francis apropriadamente chamava de muro das lamentações.

DEMOCRATIZAÇÃO ABORTADA

O ombudsman da Folha, Carlos Eduardo Lins da Silva, sabe muito bem quais são as boas práticas jornalísticas e quais as que as infringem. Então, agiu certo, tanto quanto nos casos da ditabranda, da ficha policial falsa de Dilma Rousseff e da manchete alarmista sobre a gripe suína: comunicou suas críticas à redação.

Infelizmente, os leitores há muito deixaram de ser representados no jornal, que só mantém a seção do ombudsman para não passar recibo de que sua arrogância olímpica é incompatível com os limites que jornais mais sérios impõem a si próprios.

Criou tal seção, apresentou-a como um grande avanço na democratização dos meios de comunicação, depois arrependeu-se do que havia feito e a esvaziou, mantendo-a apenas como fachada.

Então, de nada adianta Carlos Eduardo estar sempre com a posição correta, salvo em benefício de sua biografia como profissional de dignidade exemplar. Mas, a única obrigação da redação da Folha tem sido a de escutar pacientemente suas ponderações; depois, age como bem entende.

Uma maneira evasiva de mascarar a contradição entre o papel de senador e o de colunista na imprensa vinha sendo a escolha, por Sarney, de temas distantes de suas preocupações e atribuições como presidente do Senado.

Assim, nas últimas semanas, com a cabeça permanentemente a prêmio, ele escreveu sobre a afirmação econômica da China, a disputa de mercado Windows/Google e o acordo nuclear EUA/Rússia, além de prestar homenagem ao falecido professor José Aristodemo Pinotti.

Tal comedimento foi para o espaço diante da evidência de que será mesmo expelido da presidência do Senado, agora que perdeu seu último sustentáculo, o presidente Luiz Inácio Lula da Silva.

Aliás, ao desembarcar da canoa furada, Lula cometeu mais uma frase extremamente infeliz:
"Não é problema meu. Não votei no Sarney para ser presidente do Senado nem votei para ele ser senador no Maranhão [na verdade, Amapá]".
Depois de empenhar todo seu prestígio para tentar evitar a degola de Sarney, retardando inutilmente a única solução cabível, Lula agora dá de ombros, como se não tivesse feito uma opção desastrosa e eticamente inaceitável.

Tanto quanto no recente episódio em que andou aos sorrisos e abraços com Fernando Collor, deveria pedir humildes desculpas a quem acreditou em suas promessas e o ajudou a chegar onde ele está. Pois, não foi para isto que os militantes deram sangue, suor e lágrimas nos tempos difíceis.

DE FLEUMÁTICO A DESTRAMBELHADO

Quanto a Sarney, perdeu até a pose, usando o espaço que a Folha lhe concede para um desabafo irado:
"Hoje, com a sociedade de comunicação, os princípios da guerra aplicados à política são mais devastadores do que a guilhotina da praça da Concorde. O adversário deve ser morto pela tortura moral disseminada numa máquina de repetição e propagação, qualquer que seja o método do vale-tudo, desde o insulto, a calúnia, até a invenção falsificada de provas.

"Como julgar uma democracia em que não se tem lei de responsabilidade da mídia nem direito de resposta, diante desse tsunami avassalador da internet e enquanto a Justiça anda a passos de cágado? Como ficam os direitos individuais, a proteção à privacidade, o respeito pela pessoa humana?"
Para quem sempre recebeu tratamento diferenciado da imprensa, é de um ridículo atroz vir agora se queixar de que seu direito de resposta não foi respeitado. Bastaria Sarney ter convocado uma coletiva e todos os espaços se-lhe abririam, caso tivesse alguma resposta consistente a dar. Mas, não tinha. Só enrolava e despencou como uma fruta podre.

Já a internet só parece um "tsunami avassalador" para quem acostumou-se à conivência da imprensa burguesa diante dos maiores descalabros, como o cometido por alguém que falseia domicílio eleitoral para eleger-se senador a despeito de estar sendo merecidamente repudiado pelo seu Estado de origem.

Finalmente, cabem duas indagações à Folha de S. Paulo:
  1. considera que o jus sperniandi de Sarney é uma opinião relevante para os leitores que compram o jornal?
  2. caso contrário, que motivo ainda falta para que sua coluna seja extinta?

quinta-feira, 30 de julho de 2009

GILMAR MENDES ACABOU COM A PROFISSÃO DE JORNALISTA, DIZ ALBERTO DINES

"O fim da exigência do diploma era uma fixação do empresariado jornalístico, obsessão alimentada pela má consciência do patronato durante os 21 anos de regime militar."

Alberto Dines, um dos maiores nomes da resistência jornalística à ditadura de 1964/85, é uma lenda viva da nossa (ex?) profissão.

Aos 77 anos de idade e mais de 50 de carreira, continua defendendo exemplarmente os valores humanísticos e os direitos dos cidadãos face à atuação cada vez mais crapulosa da indústria cultural.

É um privilégio continuarmos aprendendo com o mestre e seus artigos que simplesmente esgotam os temas abordados.

Caso de O tamanho do estrago, que está no ar no site do Observatório da Imprensa, sobre a lambança a que o Supremo Tribunal Federal foi compelido pelo reacionarismo e vedetismo do seu presidente Gilmar Mendes, ao decidir sobre o diploma de jornalismo.

Recomendando enfaticamente a leitura do artigo inteiro (acessar aqui), transcrevo os principais trechos:
No lugar de tornar o processo jornalístico mais claro, mais compreensível e mais eficaz, as duas decisões [do STF] – fim da Lei de Imprensa e da obrigatoriedade do diploma de jornalismo para o exercício da profissão – estabeleceram uma tremenda confusão.

A pretexto de restabelecer a normalidade democrática foram criados dois vácuos legais, rigorosamente injustificados, com enorme prejuízo para a magistratura que fica sem referências para a tomada de decisões e, principalmente, para a sociedade empurrada a um perigoso ceticismo no tocante à racionalidade da nossa Suprema Corte.

No caso do fim da obrigatoriedade do diploma para o exercício do jornalismo, a indústria jornalística foi parte, atuou direta e ostensivamente através de uma de suas entidades corporativas.

Agora, quando começa a ficar visível o tamanho do estrago produzido pela afoiteza da maioria dos ministros do STF, as empresas de comunicação engavetam qualquer tipo de reflexão sobre o ocorrido.

O voto do relator da matéria, ministro Gilmar Mendes, atual presidente do STF, deveria ser exposto, traduzido e discutido em detalhes.

O Meritíssimo partiu de uma premissa errada ao endossar a tese de que a exigência do diploma para o exercício do jornalismo constitui um entrave à liberdade de expressão. Entusiasmado com a sua cruzada libertária, acabou com a profissão de jornalista no Brasil.

Passou ao largo de diversos estatutos que sequer estavam mencionados na questão e passou uma borracha num pedaço da história política do país. (...) Agora, somos meros mestres cucas: quando nos for exigida uma qualificação profissional, basta escrever 'sem ofício conhecido'.

O enorme saber jurídico do relator-presidente do STF não o animou a estudar os antecedentes históricos do caso que o Estado colocara em suas mãos: ignorou que no Senado romano já existiam jornalistas (diurnarii ou actuarii, redatores das Actae Diurnae), ignorou a designação de "redatores das folhas públicas" consignada por Hipólito da Costa em junho de 1808 e, como grande apreciador da cultura alemã, ignorou que em Leipzig, 1690, um teólogo de nome Tobias Paucer apresentou uma tese de doutoramento, De relationibus novellis – O Relato Jornalístico – comprovando a sua especificidade e suas diferenças com outros gêneros narrativos. Segundo Paucer, a publicação de notícias (novellae) tem uma técnica e uma ética próprias.

Antes de determinar a extinção da profissão de jornalista confundindo-a simplisticamente com a questão do diploma, o ministro Gilmar Mendes deveria ter estudado a questão com mais cuidado e profundidade.

De nada adianta aquela formidável exibição de malabarismo jurídico nas 91 páginas do seu parecer, se o ministro Mendes não conseguiu compreender duas questões comezinhas e cruciais:

1. O fim da obrigatoriedade do diploma de jornalista para o exercício profissional é apenas um aspecto da questão. A especificidade da profissão de jornalista é outra. O ministro Gilmar Mendes sabe que as grandes empresas jornalísticas mantêm há décadas cursos de aperfeiçoamento para formandos de jornalismo. Viu neles apenas uma prova da deficiência acadêmica, não conseguiu enxergar neste mesmo fato a demonstração cabal de que a própria indústria reconhece a especificidade do conhecimento para o exercício do jornalismo.

2. Ao aceitar a ação proposta pelo Ministério Público Federal e o Sertesp, o ministro Mendes caiu na armadilha armada pelo seu vasto arsenal de conhecimentos. No final da argumentação, faz pesada carga contra as empresas de comunicação:

"No Estado democrático de Direito, a proteção da liberdade de imprensa também leva em conta a proteção contra a própria imprensa".

Ora, se a imprensa está envolta em suspeições por que razão Sua Excelência endossa as teses de uma corporação empresarial ainda mais suspeita?

"...hoje não são tanto os media que têm de defender a sua posição contra o Estado, mas, inversamente, é o Estado que tem de acautelar-se para não ser cercado, isto é, manipulado pelos media..."

"...os meios de comunicação de massa já não são expressão da liberdade e autonomia individual dos cidadãos, antes relevam dos interesses comerciais ou ideológicos de grandes organizações empresariais, institucionais ou de grupos de interesse."

"...o exercício da atividade jornalística está invariavelmente associado à mobilização de recursos e investimentos de peso considerável. O que, se por um lado resulta em ganhos indisfarçáveis de poder, redunda ao mesmo tempo na submissão a uma lógica orientada para valores de racionalidade econômica."

Como explicar tamanha contradição? Como conciliar este arrasador ataque aos grandes grupos de comunicação com o generoso acolhimento dos argumentos propostos por um sindicato de empresas do ramo beneficiadas por concessões públicas e notoriamente desatentas aos seus compromissos sociais?

Esquizofrenia ideológica, exercício de retórica jurídica ou a certeza de que este relatório jamais seria publicado na íntegra em veículos de grande tiragem? Qualquer que seja a explicação – certamente haverá outras menos drásticas – flagrou-se a precariedade do processo decisório vigente nesta República.

O fim da exigência do diploma era uma fixação do empresariado jornalístico, obsessão alimentada pela má consciência do patronato durante os 21 anos de regime militar. Em 1985, ao invés da purgação saneadora, a exacerbação dos piores instintos acaba por extinguir a própria profissão de jornalista.

A indústria e os industriais do jornalismo finalmente desfizeram-se dos industriários. Com o twitter são perfeitamente dispensáveis. Como diz José Saramago, com o twitter nos encaminhamos decisivamente para o grunhido. E o STF oferece o suporte legal.

quarta-feira, 29 de julho de 2009

RESISTÊNCIA: MEMÓRIA, REFLEXÃO, PERSPECTIVAS

"Sometimes I feel so uninspired", lamentou-se o Steve Winwood, numa bela canção do repertório do Traffic.

Hoje, para mim, é um desses dias. Talvez porque o noticiário não esteja nada inspirador: nenhuma notícia ou artigo, dos muitos que eu li, pareceu-me acrescentar algo ao que já se sabia. E eu detesto chover no molhado.

Então, lembrei-me de uma entrevista que concedi recentemente à comunidade Ditadura Militar do Orkut (íntegra aqui) , a convite do meu bom amigo Alex Monnerat -- caso raro de jurista que é dono de comunidade dedicada a um assunto fora de sua área profissional. Ele dá uma contribuição valiosíssima para que a temática política seja discutida de forma consistente e civilizada.

Deve ter sido a entrevista mais consistente das que já participei, em várias comunidades (Palpiteiros do Orkut, Apesar de Você...1964/85, Meus Pensamentos & Entrevistas, ALN Ação Libertadora Nacional e mais duas ou três cujo nome não recordo).

Talvez algumas passagens possam interessar aos leitores deste blogue. Eis as que avaliei como mais significativas:

FERNANDO CLARO - Qual sua opinião, hoje, sobre as reais condições de quem escolheu seu caminho e o regime que se pretendia derrubar. Ou seja, a correlação de forças, como você a vê atualmente?

A correlação de forças não nos parecia tão desfavorável assim no primeiro semestre de 1969, logo após a assinatura do AI-5. Chegamos a surpreender a ditadura, que não esperava ações tão eficientes de nossa parte.
No entanto, nós também subestimamos a capacidade de reaglutinação do inimigo: com a criação da Oban para combater a luta armada em SP (depois expandida para todo o Brasil, com a disseminação dos DOI-Codi's), o aprendizado de técnicas de tortura com instrutores estadunidenses, a generalização das práticas hediondas (que atingiram um patamar de máxima bestialidade), etc., eles conseguiram tomar a dianteira da guerra, DO PONTO DE VISTA MILITAR, no 2º semestre.
O golpe de misericórdia foi a injeção maciça de recursos externos para criar uma euforia econômica em 1970. Em 1969, a própria classe média discordava dos militares, embora estivesse amedrontada demais para nos apoiar francamente. Em 1970, com investimentos na Bolsa de Valores e fusquinha na garagem, passou a aplaudir o regime. Então, em desvantagem nas duas frentes (militar e política), nossa derrota era só questão de tempo.
Mas, sempre digo nas minhas palestras que, se um milhar de resistentes não tivesse ousado confrontar aquele terrorismo de estado dantesco, seríamos um povo muito desprezível. Não ganhamos a guerra, mas salvamos a honra dos brasileiros, exatamente como a Resistência Francesa, sem cuja existência a França seria identificada com Pétain e a República de Vichy.

CARLOS - Você via na época as ações como atos de resistência ou como parte de um projeto revolucionário de tomada de poder?

Francamente! Não éramos doidos varridos. Sabíamos muito bem que a luta seria dificílima e que nenhum grupo, partido ou organização tinha condições de derrotar a ditadura sozinho.
Então, já que precisaríamos lutar em frente e os outros grupos não tinham exatamente os mesmos pontos-de-vista, o que supúnhamos era a constituição de um tipo de parlamento no "day after", para que as disputas políticas se processassem civilizadamente.
Acreditávamos que, no final da linha, prevaleceria a posição mais coerente. Mas, tínhamos clareza de que o processo revolucionário brasileiro seria bem diferente do cubano, p. ex., com um único grupo dirigente chegando ao poder.
No nosso caso, seria um saco de gatos chegando ao poder. E o exemplo da Revolução Francesa, claro, nos assustava. Não queríamos lutas políticas resolvidas à bala ou com guilhotinas. Pretendíamos aproveitar as lições da História para não incorrermos nos erros do passado.

LUCIANO - Pode-se dizer que existe um movimento da extrema direita na internet preocupada em distorcer a história do período do regime militar?

Os sites fascistas difundem aquilo que os militares concluíram a partir dos seus Inquéritos Policiais-Militares, todos eles conduzidos com a prática generalizada e exacerbada da tortura. É claro que os IPM's não têm valor legal nenhum nem servem como referência histórica.
Várias vezes já comentei que, em cada ação armada da esquerda, os IPM's relacionavam muito mais participantes do que os que realmente estiveram envolvidos na operação. Por que? Porque obtiveram essas informações de caras que estavam pendurados no pau-de-arara tomando choques. Então, o torturado só se preocupava em evitar a prisão dos companheiros, não estava nem aí para enquadramentos legais.
Se o torturador perguntava "Fulano estava no sequestro?", o torturado, percebendo que era nisso que o fdp acreditava, dizia que sim. Não se desperdiçava energia para resistir nesse aspecto. O que importava mesmo era preservar as informações que levassem a quedas e desbaratamento de nossa estrutura.
Então, os tais IPM's não passam de um samba-do-crioulo-doido. E esse pessoal de extrema direita, QUE CONSERVOU TUDO ISSO CONSIGO EM VEZ DE ENTREGAR PARA OS ARQUIVISTAS, deve até acreditar que está dizendo a verdade, nas acusações que lança contra cada um de nós.
Mas, é um rosário de fantasias. Já disseram até que eu fui jurado num tribunal revolucionário. Nem sequer conheço o militante que dizem ter sido julgado, nunca julguei ninguém na vida e não soube de nenhum tribunal convocado pela VPR durante minha militância.

FERNANDO CLARO - Será que não havia uma glamourização em decorrência do êxito da Revolução Cubana?

Nossa inspiração maior eram os tupamaros uruguaios, que conseguiam golpear a ditadura de lá e chegaram a montar uma estrutura tão eficaz que parecia imune ao desbaratamento.
Nós também tentávamos manter e fazer crescer a luta nas cidades. Pretendíamos derrubar a ditadura a partir da conjugação das lutas urbanas e rurais no país inteiro.
A coluna guerrilheira só teria função propagandística, no início. Cabia-lhe fustigar o inimigo e escapar, PROVANDO QUE OS MILITARES PODIAM SER DERROTADOS. Estávamos plenamente cientes de que, se tentássemos formar um exército no campo, ele seria esmagado pelo inimigo. A coluna deveria apenas sobreviver e servir como exemplo, não crescer.
Esta concepção, aliás, foi desenvolvida pelo Lamarca, conhecedor do poder de fogo do Exército. Já tínhamos deixado bem pra trás o foquismo dos cubanos.
De certa forma, a fuga mirabolante do Lamarca do Vale do Ribeira até lhe pareceu dar razão. Mas, ele deve ter percebido que a desigualdade de forças era tão acentuada que o passe de mágica dificilmente se repetiria. Aquela proeza foi fantástica... e única.

MARIA CAROLINA- Gostaria de saber sobre o financiamento da ditadura. Quem financiava a OBAN e os outros órgãos repressivos?

A Oban nasceu clandestina. Foi criada por oficiais das Forças Armadas, com o apoio financeiro de empresários fascistas. Esses caras eram tão podres que alguns deles iam até praticar torturar por mero sadismo. Como estavam pagando, tinham direito. Foi por saber dessas histórias todas que o delegado Sérgio Fleury, quando tentou chantageá-los, acabou morto, numa das versões mais difíceis de engolir que já ouvi na vida: era dono de barco e teria caído ao no mar, afogando-se. Acredite quem quiser.
É claro que, para os defensores dos direitos humanos no exterior, foi um prato cheio poderem trombetear que o Governo brasileiro mantinha um centro clandestino de tortura... com maior poder do que o Deops, a quem teoricamente deveria caber o papel de reprimir a luta armada.
Depois, houve a morte do Chael Charles Schreier, no RJ, que escandalizou o mundo. O Chael era de ascendência judaica e os judeus têm enorme repugnância por mortes dos seus em situações que lembrem as práticas nazistas.
O Chael morreu no quartel da PE da Vila Militar, no pau-de-arara. E os altos comandantes militares concluíram que a prática de cada Arma perseguir os militantes da luta armada por sua própria conta (de olho nas recompensas dos empresários fascistas e em tudo aquilo que apreendiam conosco e depois dividiam entre si) facilitava o descontrole. No caso do RJ, p. ex., a PE da Tijuca e a da Vila Militar não colaboravam entre si, mas competiam pelas presas.
Então, resolveram botar ordem na casa: decidiram, de um lado, legalizar a Oban, transformando-a em DOI-Codi/SP, de forma que passou a receber recursos do governo (o que não impediu os empresários de continuarem dando propinas "por fora").
Do outro, unir as três Armas nesses DOI-Codi's, de forma que nenhuma unidade saísse à caça por conta própria.
E, no caso do RJ, determinaram que só participaria do DOI-Codi a equipe da PE da Tijuca. A da Vila Militar foi excluída do esquema, até como punição por ter deixado o Chael morrer.

FERNANDO CLARO - Não temos a sociedade com que sonhamos. Como você vê que seja travada a luta na atualidade e em que peca o governo Lula?

O maior pecado do Governo Lula, sem dúvida, foi o de ter adotado uma política econômica neoliberal, para gaudio dos banqueiros e dos grandes empresários.
Mas, não vejo muita saída na política oficial, tanto que nem tenho criticado muito o Lula. Presumo que qualquer outro acabaria agindo da mesma maneira, já que o poder real é o econômico, sobrando pouquíssima margem de manobra para um presidente da República fazer verdadeiras mudanças.
Em suma: o fundamental é intocável e o presidente só tem autonomia para decidir o secundário.
É hora de apostarmos na organização autônoma e não-autoritária dos cidadãos, contra o capitalismo e contra o Estado.

CAMILA - Qual o seu sonho de um país?

O meu sonho é, basicamente, o sonho original de Marx: a humanidade liberta dos grilhões da necessidade, sem fronteiras, estados nem forças repressivas, com as pessoas colaborando para o bem comum ao invés de focadas no progresso pessoal.
Depois, a repressão brutal dos exércitos estrangeiros à Comuna de Paris fez Marx retroceder um pouco, admitindo a necessidade do Estado enquanto o socialismo não se disseminasse por todo o planeta.
Só que não deu certo. As revoluções em países isolados, ou foram sufocadas, ou se desvirtuaram. Então, eu defendo a retomada do projeto de 1848: a revolução internacional e consensual (ou seja, com o aval da maioria dos trabalhadores), ao invés de revoluções nacionais e do vanguardismo.
O alerta que Trotsky lançou há um século permanece válido: "Primeiramente, o partido substituirá a classe operária. Depois. o Comitê Central substituirá o partido. Finalmente, um ditador substituirá o Comitê Central".
Então, a tese leninista de que é necessária uma vanguarda para "explicar" a revolução ao povo atrasado resultou nefasta. Os trabalhadores têm de voltar a ser o sujeito da revolução, jamais seu objeto (ou seja, os beneficiários últimos das ações desenvolvidas em seu nome).

CAMILA - Qual o seu sonho de governo?

A abolição de governos como entes separados e colocados acima da sociedade, com suas funções sendo assumidas e incorporadas à rotina diária do conjunto dos cidadãos. Em suma, uma atualização do modelo da democracia grega, em que as decisões eram tomadas pelos cidadãos reunidos em praça pública.
Aliás, vale lembrar que ser presidente, governador ou parlamentar não constituía profissão no início da própria democracia burguesa. Era uma honra e uma prestação de serviços à comunidade, não uma forma de ganhar dinheiro.
Hoje, a política oficial atrai principalmente os indivíduos que têm mentalidade criminosa mas são covardes demais para correrem os riscos inerentes ao banditismo. A escória da escória.

CAMILA - Você se identifica mais com o anarquismo e a falta de governo?

Hoje sou, sim, anarquista. Mas, eu não diria "falta de governo". O governo se tornaria desnecessário, à medida que os cidadãos gerissem a si próprios, organizando-se para prover o necessário a cada um deles, de forma que pudessem todos desenvolver-se plenamente como seres humanos.

CAMILA - Se fosse dado a você o poder de reorganizar a sociedade, os meios de produção, imprensa, enfim, tudo, como seria a sociedade dos seus sonhos?

Se o aparato produtivo fosse todo direcionado para a produção do socialmente útil, cada cidadão desfrutaria de tudo de que realmente necessita, trabalhando apenas uma fração do que trabalha agora. E lhe sobraria tempo para viver.
Isto implica a extinção de tudo que é parasitário e inútil, como instituições financeiras, propaganda, forças repressivas, etc. Quando a humanidade sair de sua pré-história, não precisará de nada disso.
Se alguém quiser depois desperdiçar seu tempo livre criando/trocando/buscando artigos de luxo, será seu direito. Mas, talvez as pessoas aprendam que gratificante mesmo é o convivío fraterno com os iguais.
Num filme de Godard, uma frase maravilhosa foi atribuída a Lênin, mas nunca consegui confirmar se é verdadeira ou criada pelo próprio cineasta: a de que a ética seria a estética do futuro.
Aliás, uma pequena amostra do que seja viver numa coletividade em que cada um se preocupava com o outro e tentava seriamente contribuir para a felicidade alheia, eu tive vivendo em comunidade alternativa, em 1971/2.
Quando você tem laços profundos com as pessoas de sua convivência, não precisa de geringonças tecnológicas nem de objetos que firmam status. Tínhamos poucos bens, mas não sentíamos falta de nada.

CAMILA - Qual era a sociedade dos seus sonhos na adolescência e quando você militou nos movimentos de esquerda?

CELSO - Exatamente aquela a que me referi acima, a visão do Marx pré-Comuna de Paris. Uma sociedade em que cada um contribuísse no limite de suas possibilidades para que fossem atendidas as necessidades materiais de todos. O reino da liberdade, para além da necessidade - ou seja, com o homem livre de grilhões materiais, podendo gastar o melhor de suas energias para atividades criativas e prazerosas, não para essa competição obsessiva do capitalismo, essa corrida de ratos em que todos acabam, de uma forma ou de outra, derrotados. Era este o ponto de chegada de nossos esforços, o que nos animava a correr os riscos e suportar as dores daquela luta desigual que travamos.

CAMILA - Mudou em relação a hoje? No que a sua vida lhe modificou?

O sonho é o mesmo, só que eu era um jovem ingênuo, hoje sou um homem sofrido. Mas, continuo considerando que se justificam todos os esforços que eu possa fazer para legar um mundo bem melhor para minhas filhas e netos. O capitalismo atual é um pesadelo, conspurca tudo que há de belo, justo, digno e idealista nos seres humanos. Estimula e faz aflorar o que as pessoas têm de pior.

CAMILA - Quais os seus conselhos aos jovens de hoje que você gostaria de ter recebido, quando também era jovem, dos mais velhos e experientes?

Talvez eu não estivesse disposto a ouvir esses conselhos. Talvez os jovens de hoje não queiram meus conselhos.
Mas, há duas lições aprendidas na minha caminhada, que eu tento passar às novas gerações: mais do que nunca, é necessário mudar o mundo, para que a vida valha realmente a pena ser vivida; mas, a empolgação nunca deve anular a reflexão, pois essas cruzadas envolvem riscos imensos.
Como dizia uma velha canção tropicalista: "É preciso estar atento e forte", pois tudo é não só "divino-maravilhoso", como também "perigoso".

WALTER - O você acha das idéias de Darcy Ribeiro, quando falava que tudo teria de partir da educação?

A verdadeira educação ajudaria muito. Mas, não essa que está aí agora.
A educação deveria ter o objetivo de formar cidadãos, no sentido maior do termo. Pessoas capazes de refletir sobre o mundo em que vivem e de nele atuarem conscientemente. Quem tem esse conhecimento mais amplo, domina facilmente as ferramentas da profissão que escolher.
No entanto, a educação foi aviltada e desvirtuada, passando a priorizar as ferramentas, as profissões; o secundário, enfim. Capacita um indivíduo para trabalhar num ramo qualquer e mais nada.
É por isso que hoje não formamos uma verdadeira elite, capaz de impor um rumo à sociedade e de evitar esse verdadeiro waterloo moral que as nossas instituições exibem. Já não temos dirigentes com visão de conjunto, apenas pessoas treinadas a pensar uma parte da parte.
Quanto à resistência à ditadura, o quadro então era bem diferente. Tínhamos, sim, uma juventude intelectualizada, brilhante e criativa. Mas, os militares tinham a força bruta, em doses descomunais. E, infelizmente, a vida real é bem diferente dos episódios bíblicos. Quase sempre é Golias quem vence Davi.
Ah, uma curiosidade: há um Colégio de São Paulo que atua exatamente na linha que eu proponho, priorizando a formação do cidadão, do líder e do dirigente da sociedade, não do mero profissional. E não tem nada de esquerdista. Pelo contrário, é rotariano. Trata-se do Colégio Rio Branco, no bairro de Higienópolis.

CAMILA - Por que uma forma de vida mais simples e mais prazeirosa, considerando o homem como ser social, são engolidas por outra que vai contra a essência do ser humano? Não é uma involução da sociedade?

Sua pergunta é ótima... mas requer uma resposta que não cabe nos limites deste papo. Se você quiser enfrentar o desafio, eu lhe recomendaria livros como A Ideologia da Sociedade Industrial e Eros e Civilização, de Herbert Marcuse; e Morte Contra Vida, de Norman O. Brown.
De uma forma extremamente simplificada, eu colocaria que a desigualdade e o espírito de competição levaram os homens a realizarem os esforços necessários para o desenvolvimento das forças produtivas. O privilégio, o ter mais do que os outros, era a cenoura que se colocava na frente dos asnos para fazê-los andar para a frente.
Até onde isso fazia sentido? Até que o homem, em sua escalada para o progresso, atravessasse a barreira da necessidade. Ou seja, até que desenvolvesse a tal ponto a capacidade produtiva, que se tornasse capaz de produzir o suficiente para suprir as necessidades básicas de todos os homens do planeta.
Chegado esse ponto, a desigualdade não teria mais papel, tornando-se inútil e odiosa. Havendo riquezas suficientes, estavam criadas as premissas para um mundo solidário e justo.
No entanto, o capitalismo organizou-se para impedir que a produção se direcionasse para o socialmente útil, que as riquezas fossem divididas equitativamente, que os homens trocassem a competição pela cooperação, que a jornada de trabalho fosse reduzida e os cidadãos tivessem mais tempo para desenvolverem-se como seres humanos.
Isto vem desde o século passado: queimas de produtos para evitar a queda de preços, desenvolvimento de burocracias e atividades parasitárias, belicismo (a produção de armamentos e munição é uma forma de mobilizar trabalho sem trazer contribuição nenhuma às pessoas).
Se se utilizassem os esforços para produzir o que é necessário e distribui-lo equitativamente, todos viveríamos infinitamente melhor. Mas, os esforços foram desviados para outras finalidades e o básico continuo faltando para boa parte da humanidade.
Assim, como nem todos têm tudo de que necessitam, continua havendo o estímulo para alguns tentarem ter mais do que os outros; e continua havendo uma fatia da produção voltada para a ostentação e o luxo, o suntuoso e o desnecessário.
E a indústria cultural, cada vez mais articulada para a manipulação científica das consciências, cumpre exatamente o papel de incutir nos seus públicos a noção de que esse mundo degradado é o único possível, e de que quem propõe alternativas não tem senso de realidade.

terça-feira, 28 de julho de 2009

NENÊS VIRAM ATRAÇÃO DE REALITY SHOW

"Telas falam colorido
de crianças coloridas,
de um gênio televisor.
E no andor de nossos novos santos,
o sinal de velhos tempos:
morte, morte, morte ao amor!"
("Milagre dos Peixes", Milton
Nascimento/Fernando Brant)

Uma estadunidense da California deu à luz oito nenês em janeiro. Acaba de autorizar a participação da filharada num reality show.

Além dos gêmeos, atuarão também os demais rebentos da fulana: seis, todos com idade inferior a nove anos.

A justiça foi acionada. Por incrível que pareça, não defendeu a privacidade dos 14 menores, nem mandou prender quem transforma criancinhas em fonte de renda. Apenas indicou um guardião para zelar pelos interesses financeiros dos óctuplos.

Que efeito terá sobre eles essa exposição tão precoce à repulsiva bisbilhotice da indústria cultural?

Não preciso de nenhuma bola de cristal para antecipar: o pior possível.

Estarão dia e noite expostos como curiosidades num aquário.

Não vão criar laços normais e sadios com as outras crianças.

Serão levados a crer que se tratam de pessoas especiais, diferentes, únicas.

Como consequência, tendem a tornar-se adultos encruados, malresolvidos, qual Michael Jackson.

Se o Sérgio Porto estivesse vivo, certamente encontraria uma definição mais acachapante ainda para a TV. Máquina de fazer doido é pouco.

Se o Paulo Francis estivesse vivo, provavelmente concluiria que, além de pamonha, o inferno agora é também medonho, de tão desumano que ficou.

Quanto mais se acentua a decadência capitalista, mais a indústria cultural cumpre o papel de emporcalhar tudo que há de belo e digno na existência humana. Nem as crianças respeita mais.

Faz-me lembrar o declínio do Império Romano. Sociedades que conseguem impedir a revolução necessária, como Roma fez com a revolta dos gladiadores, condenam-se ao lento apodrecimento.

Ao invés de avançarem para um estágio superior de civilização, desintegram-se, perdendo todas as suas referências -- inclusive as morais. E acabam preparando o advento da barbárie.

É para onde nos conduzem os malditos inutilities shows.

Fonte: BBC Brasil.

segunda-feira, 27 de julho de 2009

A CRISE CAPITALISTA E A IMPOTÊNCIA DOS GOVERNOS

Desempregados na fila da sopa, durante a Grande Depressão.

O filósofo francês Luc Ferry é um pensador estimulante. Chama-nos a atenção para fenômenos que estavam nos passando despercebidos e ousa questionar o chamado politicamente correto.

P. ex.: devemos, em nome do respeito às tradições de outros povos, concordar com a utilização da burca pelas mulheres de religião muçulmana? Ferry, quando ministro da Educação, a proibiu nas escolas francesas. E justifica:
"...a burca (...) não tem nada de símbolo religioso. Ela não consta em lugar nenhum na lista das obrigações determinadas pela religião muçulmana às mulheres. A burca é um sinal de vínculo ao fundamentalismo. Ela significa que as mulheres não devem ter lugar na esfera pública e que elas devem ficar em casa. Se saírem, elas têm de se dissimular. Devemos aceitar essa concepção do lugar da mulher? Respondo tranquilamente não, cem vezes não. E eu não digo isso porque defendo uma tradição cultural ocidental, mas porque penso que as mulheres simplesmente fazem parte da humanidade. Nesse tema, o relativismo é sempre cúmplice dos totalitarismos".
Entrevistado pela Folha de S. Paulo (ver aqui), Ferry foi muito feliz ao discorrer sobre a crise global do capitalismo, vindo ao encontro de algumas posições por mim defendidas. Se não, vejamos:
"Ao contrário do que se diz, não se trata de uma crise financeira, mas de uma crise econômica no sentido tradicional. A visão ingênua pela qual existem uma 'boa economia', a economia 'real' e uma economia 'ruim', a economia especulativa, não resiste à análise.

"Os países ocidentais mais industrializados, os Estados Unidos particularmente, conheceram nos anos 90 uma forte bipolarização do mundo do trabalho. Nessa época, criou-se um cenário onde havia, de um lado, trabalhadores altamente qualificados e bem-remunerados e, do outro, uma massa de trabalhadores mal paga por ser menos qualificada. Ou seja, a globalização fez as classes médias minguarem. O problema é que eram elas que geravam o crescimento e que mais consumiam.

"Foi nesse cenário que surgiu nos EUA o recurso ao endividamento maciço dos lares mais populosos e menos ricos, os famosos 'subprimes'. A partir daí não foram mais os salários das classes médias que geraram crescimento, mas o endividamento dos pobres. Em outras palavras, a riqueza passou a ser aumentada não mais a partir da riqueza em si, mas a partir de dívidas! E assim multiplicaram-se nos EUA, nos últimos 15 anos, sistemas de empréstimo de alto risco.

"Foi no contexto dessa nova lógica econômica que a crise financeira veio se inserir. Demorou até os créditos de risco serem transformados em títulos que acabaram espalhados por bancos do mundo todo e viraram, com o apoio das agências de classificação de risco, produtos financeiros de difícil leitura.

"É evidente que esse processo só aconteceu graças à cumplicidade de banqueiros, incluindo o banco central americano, que sabia muito bem o que estava acontecendo. Mas o importante é que o mundo financeiro, por mais culpado seja, não está na raiz da crise, que é antes de mais nada uma crise da economia real".
Desde o primeiro momento afirmei que se tratava da versão modernizada das crises cíclicas do capitalismo, tão bem dissecadas outrora pelos pensadores marxistas. Hoje elas podem ser represadas por mais tempo, mas não eliminadas.

Continua existindo a velha contradição entre o total de produtos oferecidos ao consumo e o poder aquisitivo dos consumidores, já que estes não recebem, como remuneração por seu trabalho, o exato valor dos bens que produziram. A velha mais-valia, enfim.

Ora, a margem de manobra do capital é hoje muito maior. Ele cria consumidores, ao conceder-lhes crédito praticamente ilimitado. Mas, claro, o elástico estica, estica, até que um dia arrebenta.

Aí, a indústria cultural vende a idéia que o capitalismo produtivo é bom e o capitalismo especulativo é ruim. Papo furado. O médico e o monstro são a mesmíssima pessoa, como no clássico de Robert Louis Stevenson.

Tal contradição é impossível de ser resolvida nos quadros do capitalismo: trata-se do sistema econômico alicerçado sobre a existência da mais-valia, quer ela se apresente com a clareza cristalina dos tempos de Marx, quer dissimulada pelos jogos de espelhos da sociedade atual.

Então, depois que o mundo inteiro pagar o preço da irracionalidade capitalista nesta crise, novos mecanismos reguladores serão instituídos para disciplinar o mercado financeiro e a indústria cultural venderá a ilusão de que Mr. Hyde nunca mais dará as caras. Foi o que aconteceu depois do crash de 1929 e da década inteira de depressão subsequente.

Ora, todos aqueles erros que nunca mais seriam cometidos, o foram novamente na atualidade. E, se não nos livrarmos do capitalismo, o Dr. Jekyll voltará a virar monstro daqui a umas tantas décadas. É simples assim.

PODER POLÍTICO x PODER ECONÔMICO

Na entrevista hoje publicada, Ferry veio ao encontro de outra tese que eu e muitos esposamos: a de que o poder Executivo é hoje satelizado pelo capitalismo globalizado e não serve como ferramenta para mudarmos a sociedade num sentido anticapitalista:
"No universo globalizado em que estamos mergulhados, as ferramentas tradicionais das políticas nacionais se tornam cada dia menos relevantes. O maior fenômeno desta virada de século é a impotência pública, o fato de nossos políticos terem perdido praticamente todo o poder diante de um desenvolvimento globalizado que lhes escapa por toda parte. É o grande problema da política moderna: a questão hoje não é mais somente o que fazer, mas principalmente como recuperar o controle, como recuperar um pouco de poder e de margem de manobra.

"[Um grande desafio é] resolver o problema duplo levantado pela crise. Primeiro: como reatar com um crescimento acarretado pela riqueza verdadeira, e não pelo endividamento. Segundo: como recuperar o controle sobre um mundo globalizado que nos escapa por todos os lados, tanto no plano econômico como no ecológico".
Trocando em miúdos: os governos são impotentes para impedirem que o capitalismo continue gerando depressões econômicas e desastres ecológicos cada vez piores.

E, acrescento eu, continuarão sendo-o até que a humanidade morra abraçada com o capitalismo.

A alternativa é os cidadãos comuns, independentemente dos governos, agindo em nome da sobrevivência da nossa espécie, tomarem seu destino nas mãos, construindo uma economia baseada no atendimento das necessidades humanas e na convivência harmoniosa com o meio ambiente.

Mas, terão de fazer isto logo, antes que os danos causados pela componente destrutiva do capitalismo ultrapassem o ponto de não-retorno.

domingo, 26 de julho de 2009

UMA EPIDEMIA MAIS GRAVE QUE A GRIPE SUÍNA: A DE MAU JORNALISMO

Uma epidemia muito pior que a gripe suína está grassando: a do alarmismo jornalístico.

A nova modalidade de influenza é uma moléstia que ainda não atingiu contingentes mais significativos da população brasileira, além de bem pouco letal.

Mas, trombeteando dia após dia a mórbida contagem de cadáveres, o noticiário causa, em leitores pouco afeitos a estatísticas, a impressão de que estejam diante de uma terrível ameaça.

Longe disto. Em comparação com as grandes pestes do passado, a gripe suína é refresco.

Vale lembrar, p. ex., que a gripe espanhola matou quase 2% da população brasileira, no final da década de 1920: aproximadamente 300 mil pessoas.

Pior ainda é se compararmos os dados da gripe suína com outras causas de mortandade. Aí o que fica evidenciado é a má fé da imprensa.

Vejam o caso da cidade de São Paulo: o número de óbitos ainda não chega a oito.

Pois bem, em maio eu alertei (ver aqui) que a concentração criminosamente elevada de enxofre no diesel mata, somente em São Paulo, capital, 3 mil pessoas ao ano -- ou seja, oito por dia!

Mas, como há interesses econômicos de grande monta envolvidos, o assunto é praticamente banido do noticiário.

Já o terrorismo midiático em torno da gripe suína tem sinal verde porque não afetou negócios importantes, pelo menos até agora. Só fez diminuir um pouco o turismo.

Vamos ver se a imprensa manterá o mesmo comportamento leviano caso o público venha a desertar consideravelmente das salas de espetáculos, comprometendo as receitas dos cadernos de variedades.

De resto, tenho a satisfação de louvar, mais uma vez, o corajoso trabalho do ombudsman da Folha de S. Paulo, Carlos Eduardo Lins da Silva, que ousou neste domingo qualificar o estardalhaço promovido por seu jornal em torno da gripe suína como irresponsável (ver aqui).

Seu comentário é uma verdadeira aula de ética jornalística. Vale a pena reproduzir os principais trechos:
"A reportagem e principalmente a chamada de capa sobre a gripe A (H1N1) no domingo passado constituem um dos mais graves erros jornalísticos cometidos por este jornal desde que assumi o cargo, em abril de 2008.

"O título da chamada, na parte superior da página, dizia: 'Gripe suína deve atingir ao menos 35 milhões no país em 2 meses'. A afirmação é taxativa e o número, impressionante.

"Nas vésperas, os hospitais estavam sobrecarregados, com esperas de oito horas para atendimento.

"Mesmo os menos paranoicos devem ter achado que suas chances de contrair a enfermidade são enormes. Quem estivesse febril e com tosse ao abrir o jornal pode ter procurado assistência médica.

"O texto da chamada dizia que um modelo matemático do Ministério da Saúde 'estima que de 35 milhões a 67 milhões de brasileiros podem (...) ser afetados pela gripe suína em oito semanas (...). O número de hospitalizações iria de 205 mil a 4,4 milhões'.

"É quase impossível ler isso e não se alarmar. Está mais do que implícito que o modelo matemático citado decorre de estudos feitos a partir dos casos já constatados de gripe A (H1N1) no Brasil.

"Mas não. Quem foi à página C5 (...) descobriu que o tal modelo matemático, publicado em abril de 2006, foi baseado em dados de pandemias anteriores e visavam formular cenários para a gripe aviária (H5N1).

"O pior é que a Redação não admite o erro. Em resposta à carta do Ministério da Saúde, que tentava restabelecer os fatos, respondeu com firulas formalistas como se o missivista e os leitores não soubessem ver o óbvio. Em resposta ao ombudsman, disse que considera a chamada e a reportagem 'adequadas' e que 'informar a genealogia do estudo na chamada teria sido interessante, mas não era absolutamente essencial'."

sábado, 25 de julho de 2009

ROTA CONTINUA EXALTANDO A DITADURA MILITAR

Em outubro/2008, enviei carta aberta ao governador José Serra (ver aqui), protestando contra os elogios que a Rota (ex-Rondas Extensivas Tobias de Aguiar) fazia, em sua página virtual, à atuação por ela desenvolvida durante a ditadura militar, quando apoiou o arbítrio.

Historiei a atuação dessa unidade da Polícia Militar, criada para combater a guerrilha urbana e que, depois de massacrados os combatentes da resistência à ditadura, passou a aplicar os mesmos métodos de torturas e assassinatos contra criminosos comuns.

Lembrei que o excelente livro Rota 66, do colega jornalista Caco Barcellos, documentara "4.200 casos de assassinatos cometidos pela Rota nas décadas de 1970 e 1980, tendo como vítimas, quase sempre, jovens pobres, pardos e negros (muitas vezes sem antecedentes criminais)".

E cheguei ao fulcro da questão: a Rota continuava destacando, com indisfarçável orgulho, os atentados que cometeu contra a democracia (ver, aqui, os itens História do Batalhão e Os Boinas Negras).

Reproduzi vários trechos da página virtual, como este:
"Mais uma vez dentro da história, o Primeiro Batalhão Policial Militar 'Tobias de Aguiar', sob o comando do Ten Cel Salvador D’Aquino, é chamado a dar seqüência no seu passado heróico, desta vez no combate à Guerrilha Urbana que atormentava o povo paulista".
Aliás, tal batalhão, antes mesmo de dar origem à Rota, já cumprira papel deplorável na quartelada de 1964, atuando como força auxiliar dos golpistas das Forças Armadas. E isto também era objeto de louvação virtual:
"Marcando, desde a sua criação, a história desta nação, este Batalhão teve seu efetivo presente em inúmeras operações militares, sempre com participação decisiva e influente, demonstrando a galhardia e lealdade de seus homens, podendo ser citadas, dentre outras, as seguintes campanhas de Guerra: (...) - Revolução de 1964, quando participou da derrubada do então Presidente da República João Goulart, dando início à ditadura militar com o Presidente Castelo Branco".
Era, comentei, "a voz do passado que continua ecoando no presente, à custa dos impostos pagos pelos contribuintes paulistas".

E conclui assim a carta ao Serra:
"...em nome do seu passado de exilado e em consideração ao passado de todos nós que permanecemos aqui e fomos barbarizados, peço-lhe que, pelo menos, determine que as peças de comunicação do seu Governo passem a ser as aceitáveis numa democracia. Isto se não lhe apetecer tomar a atitude mais pertinente, que já está atrasada em um quarto de século: desativar a Rota!".
Comprovando que, na contramão do exemplo inesquecível do companheiro-presidente Salvador Allende, Serra agora trata os ex-companheiros com empáfia de governador, ele nem sequer se dignou a responder.

Recebi uma enxurrada de mensagens de defensores da Rota, incluindo ameaças ostensivas ou veladas, enviadas tanto ao meu e-mail quanto aos meus dois blogues.

Minha resposta a essa campanha articulada foi o artigo Não desviarei da Rota (ver aqui), de dezembro/2008. Reafirmei tudo que anteriormente dissera e acrescentei:
"...aconselho a Rota a apagar do seu site as loas a operações por ela desenvolvidas durante a ditadura, as quais, em todo o mundo civilizado, hoje têm uma imagem tão negativa quanto as chacinas da Gestapo".
Em janeiro/2009, o portal Brasil de Fato fez uma reportagem na esteira de minhas denúncias (ver aqui), ouvindo o oficial de Planejamento e Operações da Rota, 1º Tenente Gerson Pelegatti, que qualificou as exaltações à ditadura militar como "um grande equívoco" e prometeu tirar a página do ar para que seja feita "uma limpeza geral".

Disse que a identificação com a ditadura não correspondia mais ao pensamento dos policiais. E garantiu que as correções seriam feitas com a máxima rapidez possível.

Pois bem, um semestre depois continua tudo na mesma, com a página da Rota carecendo ainda de "uma limpeza geral" para removerem-se as imundícies denunciadas por mim e pelo Brasil de Fato.

O tenente Pelegatti faltou com a palavra, não cumprindo sua promessa de corrigir o "grande equívoco". Aonde foi parar a honra militar?

Quanto a José Serra, não se mostrou à altura nem da sua posição atual de governador numa democracia, nem do seu passado de presidente da UNE e de refugiado político.

Para mostrar-se confiável ao grande empresariado, ele não hesita em renegar seus valores mais sagrados de outrora. Chegou ao ponto de autorizar a invasão do campus da USP por parte dos efetivos mais truculentos da PM!

Uma Presidência da República compensará essa completa descaracterização de quem já defendeu os ideais mais nobres e se norteava pelo espírito de justiça?

Prefiro ficar com o Evangelho:
"Pois, que aproveita ao homem ganhar o mundo inteiro, se perder a sua alma?" (Mateus, 16:26)

sexta-feira, 24 de julho de 2009

ISRAEL NEGA A SEUS CIDADÃOS ÁRABES O ACESSO À PRÓPRIA HISTÓRIA

A foto é do gueto de Varsóvia, mas poderia ter sido tirada na Gaza atual.

A população árabe minoritária do estado de Israel terá educação de povo dominado.

Foi o que decidiu o ministro da Educação de Israel, Gideon Saar, ao determinar que seja excluída do currículo escolar a versão palestina para os conflitos com os israelenses em 1948.

A criação do estado de Israel, na visão dos palestinos, foi uma Nakba (catástrofe).

O ministro, pertencente ao partido radical de extrema-direita Likud, afirmou não haver "razão alguma para que, no currículo escolar oficial de Israel, a criação do Estado seja apresentada como uma catástrofe".

E acrescentou: "O sistema de educação não deve contribuir para abalar a legitimidade do Estado".

Já para o deputado Ahmed Tibi, do partido Raam-Taal, a criação do Estado de Israel foi mesmo "uma catástrofe do ponto de vista humano, social, politico e nacional", pois "famílias foram destruídas e expulsas ou fugiram, casas foram destruídas, pessoas foram mortas".

Tinha sido a civilizada então ministra Yuli Tamir que introduzira o tema da Nakba no currículo escolar, argumentando que "os alunos árabes, que fazem parte do povo palestino, devem ter acesso às informações relevantes para a sua história".

As novas autoridades israelenses optaram por negar aos palestinos sua identidade e apagar-lhes o passado.

Assim, há duas semanas, o ministro dos Transportes Israel Katz, também do Likud, determinou a alteração da grafia dos nomes das cidades do país em todas as placas de trânsito.

As placas, que eram escritas em hebraico, árabe e inglês, passarão a mostrar apenas os nomes hebraicos das cidades.

Jerusalém vai ser chamada apenas de Yerushalaim, com a supressão do nome árabe da cidade, Al Quds.

Os fanáticos do Likud parecem não se dar conta de que o mundo inteiro já assistiu a esse filme, com a única diferença de que as vítimas usavam estrelas de Davi costuradas nas roupas e os vilãos ostentavam suásticas. O roteiro, entretanto, era igualzinho.

E o presidente Luiz Inácio Lula da Silva, numa fase de declarações sumamente infelizes, afirmou que não deseja terminar seu mandato sem visitar Israel. Para conhecer o que, isso?! Vai sorrir para os ministros do Likud e abraçá-los, como fez com Collor?

Depois dos massacres na faixa de Gaza e destas atitudes opressivas contra a comunidade palestina, o brasileiro ideal para visitar Israel é o Brilhante Ustra. Lá estará entre iguais. (Fonte: BBC Brasil)

quinta-feira, 23 de julho de 2009

GOVERNO REDUZ TAXA SELIC, MAS BANCOS NÃO DIMINUEM O ÁGIO

O editorial de hoje da Folha de S. Paulo veio ao encontro de uma afirmação jocosa sobre o presidente Lula: a de que ele é o pai dos pobres e a mãe dos banqueiros.

Com seu eficiente serviço de pesquisas e acompanhamento dos indicadores da economia, o jornal permite-nos dimensionar bem a quantas anda o ágio bancário no Brasil.

Evidentemente, refere-se ao ágio pelo eufemismo de spread, definindo-o como "a diferença entre o que as instituições financeiras pagam aos depositantes pela captação de seus depósitos e as taxas que cobram em empréstimos".

Ora, desde os primórdios da humanidade aqueles que emprestam dinheiro com a condição de receberem de volta um valor maior são denominados agiotas.

Aliás, durante o feudalismo a Igreja Católica fazia sérias restrições à agiotagem. Depois, adequou-se ao espírito do tempo -- no caso, aos valores capitalistas.

Já que estou abrindo um parêntesis, aproveito para manifestar minha estranheza quanto a dois versos do "Pai Nosso" que, em algum momento das últimas décadas, foram alterados.

Quando aprendi a oração, em criança, pedia-se-Lhe que perdoasse "as nossas dívidas, assim como perdoamos aos nossos devedores". Era assim que se rezava e era assim que eu lia a oração nas cartilhas, livros, prospectos, etc.

Não me lembro o exato instante em que me dei conta de que se estava rezando de outro jeito: "perdoai as nossas ofensas, assim como perdoamos a quem nos tenha ofendido".

Afora a maneira antiga ter um certo viés anticapitalista (as dívidas que os outros têm conosco devem ser perdoadas, para que Deus perdoe as nossas, em sentido metafórico) e a atual inócua como placebo, a própria sonoridade piorou, a construção se tornou artificial; "nossos devedores" é muito mais direto e impactante do que "a quem nos tenha ofendido".

De uma coisa tenho certeza absoluta: se tudo que está na Bíblia realmente existe, o lugar dos banqueiros é no inferno, junto com os torturadores, traficantes e pedófilos.

Pois fazem o trabalho do diabo, tentando os homens para levá-los à perdição; arrancando até o último centavo dos pobres desesperados, independentemente do choro das crianças e do desamparo dos anciãos; exercendo um ofício que desperdiça esforços, desviando-os de finalidades socialmente úteis e nada de bom acrescentando à vida das pessoas, pois sua faina é tão parasitária como a de uma lombriga no corpo humano.

Parêntesis fechado, voltemos às informações do editorial da Folha:
  • o ágio bancário brasileiro, hoje em torno de 30 pontos percentuais, há anos vem sendo o mais alto do mundo(!);
  • é 11 vezes superior ao praticado nos países desenvolvidos;
  • é cinco vezes mais alto que o das nações em desenvolvimento.
Pisando em ovos, como é a postura habitual da imprensa quando alude aos grande agiotas, vulgo banqueiros, o editorial da Folha (ver aqui) aplaude a nova redução da taxa Selic, mas observa:
"O principal problema da política monetária nos últimos meses tem sido garantir que as quedas da taxa Selic se traduzam em reduções para os tomadores finais de empréstimos, de forma a criar um ambiente efetivamente favorável à retomada da atividade econômica."
Trocando em miúdos, o principal problema é que o governo está fazendo o que as grandes casas de agiotagem, vulgo bancos, sempre pediram: a redução dos juros básicos.

Mas, elas não fazem o que sempre prometeram que fariam: emprestar a mais gente e cobrar juros menores dos tomadores de empréstimos.

Há mais de um mês, no seu programa radiofônico semanal Café com o Presidente, Lula reclamava:
"...não basta taxa Selic cair. É importante que ela caia, mas é importante que o spread bancário diminua no Brasil. O spread ainda está muito alto, o spread ainda está seletivo..."
Então, só podemos concluir que a redução da taxa Selic, sem contrapartida dos sanguessugas, continuará servindo apenas para aumentar-lhes escandalosamente os lucros.

É o que eles vêm fazendo desde o ano passado, quando o Governo, tentando minorar os efeitos em nosso país da crise global do capitalismo, liberou R$ 100 milhões em depósito compulsório, começou a diminuir a Selic e reduziu os impostos sobre operações financeiras.

Como reagiram então os abutres? Aumentaram a oferta de crédito e o baratearam, para manter o nível da atividade econômica, evitando o agravamento da recessão?

Não, zelaram apenas pelos próprios interesses: preferiram engordar em quase 50% as provisões para créditos duvidosos, visando nada perderem durante a emergência nacional.

Depois de anunciarem, mês após mês, recordes obscenos de faturamento ao longo do Governo Lula, os usurários não abrem mão de um grama sequer da banha acumulada nos cinco anos e meio de vacas gordas.

Firme como geléia, o Governo Lula faz com que o Banco do Brasil e a Caixa Econômica Federal ofereçam juros mais baixos do que o mercado em seus empréstimos, na vã esperança de que os bancos privados ajam da mesma forma.

Ou seja, acredita em disciplinar os vampiros pela via da concorrência, como está nos manuais capitalistas.

Finge ignorar que, na prática, a teoria é outra: aqui no Brasil, os bancos só amenizam suas práticas predatórias quando governos que não sejam sejam seus serviçais (nem bananas...) os forçam a isto.

Às boas, nunca se conseguiu concessão nenhuma dos nossos Shylocks, mais implacáveis ainda que o mercador de Veneza.

Daqui a alguns meses, o nosso bom Lula virá reclamar de que, "surpreendentemente", as medidas de boa vontade do Governo não produziram os resultados esperados.

Me engana que eu gosto.

quarta-feira, 22 de julho de 2009

O OUTRO LADO E O BENEFÍCIO DA DÚVIDA

No final de 1968, procurando emprego na Folha de S. Paulo, fiquei conhecendo um senhor que estava à espera de ser chamado para sua reunião: o diretor do jornal santista do Grupo Folha, a Cidade de Santos. Batemos um papo e ele até me ofereceu uma vaga na sua redação, caso eu estivesse disposto a morar no litoral.

Seu nome: Antonio Aggio Jr.

Na década seguinte, ele se tornou diretor da Folha da Tarde, cuja redação, dizia-se, mantinha ligações perigosas com a repressão política.

Trabalhando em assessorias de imprensa, eu escutava alusões a isto. Mas, o jornalista apontado como aliado dos órgãos de segurança era o encarregado de cobrir a área militar, Carlos Dias Torres. Não me lembro de ter ouvido citarem o nome do Aggio nessas conversas.

Corta para 2004. Desempregado e em situação de extrema penúria, eu estava travando luta pública, principalmente via internet, para que a Comissão de Anistia do Ministério da Justiça cumprisse seus próprios critérios quanto à ordem de prioridade dos julgamentos.

Tais critérios, que me beneficiariam, estavam sendo desrespeitados. E a reparação da União era minha última esperança de dar a volta por cima e reconstruir a vida.

Expedindo e-mails em todas as direções, a partir de listagens encontradas aqui e ali, enviei mensagem a um site chamado O Jornal. Para minha surpresa, quem respondeu foi o Aggio. O site era (e é) dele.

Passou a colocar no ar tudo que lhe mandava. E, num e-mail, revelou que, embora nunca tivesse simpatizado com os ideais revolucionários, respeitava e tentara ajudar jornalistas que resistiam à ditadura, principalmente sua amiga Lenita Miranda de Figueiredo (do PCB), a quem teria salvado de ser assassinada nos porões do regime.

Quando soube das acusações que a historiadora Beatriz Kushnir lhe fazia, de que a Folha da Tarde noticiara na véspera a morte do militante Joaquim Seixas (do MRT, pai de Ivan Seixas), pedi-lhe explicações.

O Aggio desmentiu, garantindo que os principais jornais paulistas, disponíveis no Arquivo do Estado, comprovam que o óbito foi noticiado simultaneamente por todos eles.

Enfim, sabendo como se passavam as coisas no tempo da ditadura, a minha impressão é de que o Aggio equilibrou-se, como a maioria dos jornalistas em redações importantes, na corda bamba.

Algum tipo de concessão todos acabavam fazendo. Mas, até por saberem que o mundo dá muitas voltas, eram poucos o que se comprometiam com os excessos mais gritantes e que poderiam mais tarde ser-lhes cobrados.

Concedo-lhe o benefício da dúvida em relação a essa terrível acusação que a Kushnir lhe lançou. Se existem os jornais daqueles dias, são eles que darão a palavra final sobre quem está com a razão. É simples assim.

E, como sempre segui o princípio jornalístico de ouvir os dois lados de uma questão, aconselhei o Aggio a escrever também um livro, oferecendo aos leitores do presente e do futuro um contraponto à versão da Kushnir. Assim, os pratos da balança ficarão equilibrados.

Tudo isto vem a respeito de um digno editorial que o Aggio colocou no ar em seus dois sites: Caso Battisti: Estado de Direito ou insanidade ditatorial? (ver aqui)

Além de publicar o excelente artigo do Rui Martins que caracteriza o procedimento do Supremo Tribunal Federal como uma "vergonha internacional", Aggio o complementou com um candente protesto de sua própria lavra. Vale a pena citar alguns trechos:
"[O refúgio é] ato unilateral que, dentro do nosso ordenamento jurídico, depende tão somente de decisão do Poder Executivo, isto é, do presidente da República e seu ministro da Justiça. E, além do mais, está conforme a tradição política brasileira quanto a tais casos.

"Mas, o 'asilado' continua preso, à espera da palavra final do Supremo Tribunal Federal – STF, uma aberração que agride a mente de qualquer cidadão dotado de senso comum, principalmente num País que garante liberdade aos piores assassinos enquanto aguardam o trânsito em julgado. E também concede indenizações e pensões a pessoas acusadas, no passado, da prática de crimes idênticos aos atribuídos pela Itália a Battisti.

"Também é muito estranho que, enquanto se perde em decidir até questiúnculas entre vizinhos devido à presença de animais de estimação em condomínios, o STF – a mais alta corte brasileira – procrastina um caso grave com o réu preso, da mesma forma que ignora a desesperadora situação dos milhares de desvalidos à espera (inútil) do pagamento de precatórios pelos municípios, Estados e União.

"Não morro de amores por Cesare Battisti, ou melhor, pelo que ele pode ou não ter feito na Itália. Essa é outra questão, algo subjetiva por sinal. Mas, daí a tolerar que alguém, seja lá quem for, ignore a Constituição Cidadã para atrair os holofotes da mídia, enquanto mantém um ser humano padecendo no cárcere... Isso não se faz nem com os bichos.

"Quando se intenta interpretar um texto de maneira contrária ao que nele está expresso, ocorrem aberrações. E, no caso de Battisti, o julgador parece colocar-se acima da letra da Constituição e da lei. A coisa toda está malcheirosa! Ou Battisti é um asilado político ou um reles homicida estrangeiro. Quanto a sua primeira situação, não resta dúvida, como também com relação ao fato de que, em tal condição, ninguém jamais deveria permanecer encarcerado nem por um dia, enquanto um grupinho de iluminados pelos holofotes da mídia fatura a torto e a direito sobre a sua desgraça. A quem interessa isso? À Nação? Ao povo brasileiro?"

terça-feira, 21 de julho de 2009

TEMPO DE INCOERÊNCIA

"A verdade é revolucionária", afirmou Rosa Luxemburgo.

Há um mês recebi esta mensagem do valoroso companheiro Luiz Aparecido ("ex-preso politico e até hoje militante do glorioso PCdoB", como faz questão de ressaltar):
"Acabei de assistir hoje, domingo, dia 21 de junho de 2009, no Canal Brasil da SKY e repetido por outros canais de assinatura, o documentario, 'Tempo de Resistencia', onde inumeros revolucionarios dão seu depoimento sobre a resistencia dos combatentes brasileiros à Ditadura. Entre os depoimentos sinceros e emocionantes (...) há tambem o de Darci Rodrigues. Este ultimo me chocou ao repetir a cantilena mentirosa e falsa, de que o campo de treinamento da guerrilha da VPR, no Vale do Ribeira no inicio dos anos 70, no interior de São Paulo, foi entregue pelo quem ele chama de traidor, Celso Lungaretti.

"É mais que a hora, de exigir dos produtores e diretores do documentario que façam, em nome da verdade histórica, o esclarecimento que historiadores como Jacob Gorender e a própria vida ja fizeram: Celso Lungaretti não foi o delator que entregou o local do treinamento para a repressão. Como esta informação se tornou publica e abrange, atraves do documentario exibido no 'Canal Brasil' e outros veiculos, fórum de seriedade histórica, é necessário mais uma vez isentar o Lungaretti desta perfidia e se for o caso, até entrevistarem o Celso e outros companheiros da época, para apontar o verdadeiro delator daquele fato.

"As torturas barbaras e humilhantes que nós revolucionarios fomos submetidos nos porões da ditadura, devem ser denunciadas sempre, assim como a verdade dos fatos que elas originaram. Se alguns e não foram poucos, fraquejaram e abriram companheiros e ações, os fatos devem ser esclarecidos. Mas uma mentira não pode destruir a reputação, a honra, a vida e a coragem de quem teve a audacia e o desprendimento humano de enfrentar, armados ou não, o aparato selvagem da ditadura.

"Dou meu depoimento publico da honestidade e coragem histórica de Celso Lungaretti...".
Passei exato um mês esperando que os responsáveis pela acusação, a partir dos e-mails que lhes enviei, dessem uma solução digna ao episódio. Como nada fizeram, só me resta tornar público o que houve, deixando aos leitores as conclusões.

Preso em instalações militares e impossibilitado de me defender, fui em 1970 acusado pela Vanguarda Popular Revolucionária de haver delatado a área na região de Registro (SP) em que Carlos Lamarca e outros militantes treinavam guerrilha. A repressão deslocou milhares de soldados para lá, mas alguns companheiros escaparam como civis, outros embrenhando-se nas matas. A fuga destes últimos, comandada por Lamarca, foi, indiscutivelmente, uma das maiores proezas militares da História brasileira.

Quando fui libertado, nada havia mais a fazer. A falsidade passava por verdade e eu não tinha como conseguir provas para sustentar minha versão, nem tribunas para apresentá-la, em meio à censura e à intimidação reinantes.

Quando a engrenagem de terrorismo de estado começava a ser desmontada, fui entrevistado por veículos como a revista IstoÉ e o jornal Zero Hora (RS), relatando, então, as torturas sofridas durante os dois meses e meio que passei incomunicável nos cárceres da ditadura e que me causaram uma lesão permanente.

Mas, o foco dessas reportagens não era o episódio de Registro e, como eu ainda não conseguira nenhuma prova de minha inocência, não insisti para que delas constasse minha refutação.

Em 1984, no entanto, Marcelo Paiva fez-me tal acusação nas páginas da Folha de S. Paulo e eu não poderia deixar de exigir direito de resposta. Travamos polêmica e eu expus pormenorizadamente o que eu realmente fizera e os fatos de que tinha conhecimento.

Ainda sem provas, era minha versão bem sincera do que se passara:
  • participei da equipe precursora que foi implantar uma escola de guerrilhas à altura do km. 254 da BR-116;
  • a área foi considerada inadequada e abandonada em dezembro/1969;
  • voltei para o trabalho urbano exatamente por desconhecer a localização da área seguinte, na qual o trabalho prosseguiu (caso contrário, por motivos de segurança, não poderia ter saído de lá);
  • ao contrário do que o Lamarca me fez crer, a área 2 não se localizava a centenas de quilômetros de distância, mas apenas a 16;
  • em abril/1970, ao ser preso e muito torturado, revelei a localização da área 1, por avaliar que seria informação inútil para a repressão, mas serviria para eu me recompor e ganhar tempo, enquanto preserva informações realmente importantes;
  • talvez, como Marcelo Paiva sustentou, a partir dessa área 1 tivessem descoberto alguma ligação com a área 2, mas a responsabilidade, aí, seria de erro cometido pela própria VPR na instalação dos campos.
Em 2004, a prova que tanto me fazia falta finalmente caiu nas minhas mãos, quando Ivan Seixas, em seu site Resgate Histórico, publicou um relatório secreto de operações do II Exército, cuja existência eu desconhecia.

Dele constava, explicitamente, a informação de que duas equipes do DOI-Codi foram deslocadas para Registro a fim de apurar minha informação sobre a área 1 e voltaram relatando que não havia mais atividades no local; enquanto isso, novas informações, decorrentes de prisões posteriores, forneceram à repressão a localização exata da área 2.

Estava tudo lá, preto no branco. Meu próprio temor de haver contribuído indiretamente para a descoberta da área 2 era infundado. A coisa se passara de outra maneira, felizmente para mim.

Enviei os textos de minha polêmica com Marcelo Paiva e a cópia desse relatório para alguns historiadores. Jacob Gorender, com sua dignidade exemplar, assumiu a responsabilidade de esclarecer o episódio, a partir desse material e de outros documentos sigilosos que informou possuir.

Duas semanas depois, enviou carta à Folha de S. Paulo e a O Estado de S. Paulo, comunicando:
"Na primeira edição do meu livro 'Combate nas Trevas' (...) escrevi (...) que Celso Lungaretti forneceu ao Exército a primeira informação sobre um campo de treinamento de guerrilheiros da VPR em Jacupiranga, no vale do Ribeira. (...) Não obstante, no mês corrente, Celso Lungaretti contatou-me, por via telefônica, para chamar a minha atenção para o fato de que dera a aludida informação sob tortura e sabendo que o campo de treinamento onde estivera se encontrava desativado havia dois meses. O relatório do comandante do 2º Exército na época, general José Canavarro Pereira, co-assinado pelo general Ernani Ayrosa da Silva, sobre a Operação Registro (localidade do vale do Ribeira), confirma que, efetivamente, aquele campo de treinamento fora desativado. Sucede, no entanto, que, quase simultaneamente, chegaram ao 2º Exército informações procedentes do 1º Exército, com sede no Rio de Janeiro, de que um novo campo de treinamento de guerrilheiros, adjacente ao anterior, se encontrava em atividade. (...) A respeito dessa segunda área, nenhuma responsabilidade cabe a Celso Lungaretti, que ignorava a sua existência. Sua vinculação com o episódio restringiu-se, por conseguinte, à informação sobre a área que sabia desativada, fornecida, segundo afirma, sob tortura irresistível."
A publicação desta carta do Gorender na Folha de S. Paulo (ver aqui) abriu caminho para o lançamento do meu livro Náufrago da Utopia
(ver aqui). Eu considerei acertadas minhas contas com a História e passei priorizar as lutas presentes, ao invés de ficar remoendo o passado.

Aí foi lançado o documentário Tempo de Resistência, com a insólita acusação do ex-companheiro Darcy Rodrigues. Em meados da década atual, ninguém sequer cogitava traição da minha parte. Torturado com relatórios médicos e lesão para apresentar não pode ser confundido com os cabos Anselmos da vida.

Mandei mensagem ao autor do livro que serviu de base para o filme, Leopoldo Paulino ( leopoldo@leopoldopaulino.com.br ), esclarecendo não só que a acusação era infundada, como que Darcy Rodrigues tinha um motivo pessoal, não político, para fazê-la, sendo que a desavença entre nós dois era conhecida e constava até de livro de um jornalista sobre o período.

Leopoldo Paulino nada respondeu. E, como o documentário teve pouca repercussão nos cinemas, acabei deixando pra lá.

Sua exibição na TV a cabo, entretanto, está atingindo público mais amplo. Então, voltei a protestar, pedindo-lhe que fizesse algum tipo de retificação ou esclarecimento.

Também contatei o cineasta André Ristum ( andreristum@yahoo.com ), diretor do filme, que respondeu:
"Para a realização deste documentário eu e minha empresa fomos contratados pelo Leopoldo Paulino, para executar a obra baseada em seu livro.

"Assim, conforme contrato assinado entre nós, o responsável pelo conteúdo, seja do ponto de vista das informações passadas seja do ponto de vista legal, é o próprio Leopoldo Paulino.

"Eu, até pela minha pouca idade, não poderia jamais me responsabilizar por informações a respeito de uma época que não vivi e pouco conheço.

"Peço então que se comunique diretamente com o Leopoldo, ou com o Darcy...".
Mas, em entrevista posterior à que concedeu para o filme (ver aqui), o próprio Darcy deixou de sustentar a antiga acusação:
"[Darcy] Discorre também sobre o erro de haver levado para o campo pessoas, que não estavam totalmente convencidas dessa necessidade e de outras, que não tinham conhecimento completo da organização. Cita um caso: 'Celso Lungaretti foi para a primeira área, não se deu bem, voltou para a cidade e nem conheceu a segunda' [grifo meu]."
Em respeito à trajetória de luta do Darcy, optei por considerar suficiente este seu reconhecimento da minha inocência. Melhor passarmos uma borracha em acontecimentos tão distantes quanto deprimentes.

Quanto a Paulino, falhou como revolucionário, pois foi duas vezes alertado de que cometia uma injustiça contra outro revolucionário e em ambas se omitiu: nem corrigiu seu erro, nem sustentou sua posição. Apenas calou.

E falhou como escritor que pretende historiar a resistência, já que não teve a mínima preocupação prévia de ouvir quem sofria grave acusação, nem se dispôs a apresentar o outro lado quando isto lhe foi depois formalmente solicitado.

Segundo um jurista que me-é solidário, caberiam três providências legais neste caso, que poderiam até ser tomadas simultaneamente:
  1. "a formalização de um pedido de direito de resposta ao Canal Brasil, que foi o veículo pelo qual esta afronta à sua imagem foi desferida";
  2. "o pedido judicial para que este documentário seja editado, sob pena de sua execução em território nacional ser proibida, com cominação de multa caso a ordem venha a ser descumprida";
  3. "o pedido de reparação por danos morais, contra os produtores do documentário e o próprio difamador, já que tal veiculação já está lhe causando problemas e constrangimentos".
Mas, depois de haver lutado tanto por uma noção mais elevada de Justiça, estaria faltando com meus princípios se recorresse a uma instância do Estado que execro, contra outro ex-militante da resistência.

É no tribunal das consciências que tais atitudes devem ser julgadas. Então, preferi apenas expor os fatos, para que cada leitor tire suas conclusões e, se quiser, tome alguma atitude.

segunda-feira, 20 de julho de 2009

CASO BATTISTI: VERGONHA INTERNACIONAL.

Brilhante como sempre, Rui Martins se posiciona contra a insólita decisão do Supremo Tribunal Federal de manter indefinidamente preso o escritor italiano Cesare Battisti, mesmo depois dele ter conquistado o status de refugiado no Brasil.

Se o STF pretende, com uma única decisão, revogar a Lei do Refúgio e a jurisprudência que ele próprio estabeleceu em episódios anteriores, deveria ao menos conceder liberdade provisória a Battisti ou marcar logo seu julgamento, prometido por Gilmar Mendes desde fevereiro.

O que não pode é manter detido, por omissão, inépcia e/ou má fé, quem deveria estar solto desde janeiro. Isto nada mais é do que abuso de autoridade -- cuja gravidade aumenta por estar sendo cometido pela mais alta corte do País.

Daí a importância do artigo de Rui Martins, que publico e subscrevo na íntegra. (Celso)

CASO BATTISTI: VERGONHA INTERNACIONAL.

Rui Martins (*)

Vai fazer oito meses que o ministro da Justiça, Tarso Genro, concedeu o asilo político ao italiano Cesare Battisti, preso no Rio e depois transferido para Brasília. A decisão do ministro da Justiça não foi cumprida porque o presidente do Supremo Tribunal Federal considerou de sua competência libertar ou não Battisti e praticamente invalidou a decisão do ministro Genro, submetendo-a uma decisão posterior do STF, deixando claro sua intenção de extraditar Battisti.

Nesse meio tempo, o governo Berlusconi envolveu-se em diversos escândalos, instaurou uma política anti-imigrantes de extrema-direita, propos a criação de milícias de cidadãos para ajudarem na repressão aos imigrantes semelhantes às milícias fascistas, e Roma passou a ter um prefeito neo-fascista. É esse governo, cujo mandatário é mesmo acusado de se envolver com menores, que fez pressão sobre o Brasil para obter a extradição de Battisti, utilizando mentiras e distorcendo fatos.

Ora, enquanto o STF contesta a decisão de um ministro, no limite de uma crise institucional, um homem continua preso. Entretanto, essa privação de liberdade de um homem por decisão do presidente do STF, quando seu alvará de soltura deveria ter sido concedido no dia seguinte à decisão do ministro Genro, já ultrapassou as medidas do tolerável por um Estado de direito.

A prisão de Cesare Battisti ao arrepio dos direitos humanos é hoje uma vergonha internacional. É toda estrutura de nossa justiça que é posta em cheque e vivemos, neste momento, uma situação digna de uma ditadura, de um país sem respeito às suas próprias leis, e que ignora as garantias individuais baseadas em preceitos internacionais.

Que país é este onde a decisão de um ministro é ridicularizada pelo supremo juíz, que decide, por sua própria vontade, como se não existissem leis brasileiras ou internacionais, manter um homem preso para agradar um governo estrangeiro ? É preciso que a OAB, que as associações de direitos humanos, que a Secretaria dos Direitos Humanos denunciem o STF por abuso de poder, por manter no cárcere um homem que já recebeu do Ministério de Justiça o estatuto de refugiado político.

O Brasil está desrespeitando direitos básicos de um refugiado político concedido pela ONU através do Alto Comissariado pelos Refugiados e, ao mesmo tempo, mostrando ao mundo um desequilíbrio na sua estrutura institucional.

É necessária uma rápida correção e se as associações brasileiras de direitos humanos enviarem uma representação ao Alto Comissariado da ONU, em Genebra, denunciando a manutenção de um refugiado político na prisão, sem outra justificativa senão o desejo do presidente do STF de extraditá-lo, esperando o melhor momento para isso, esse escândalo assumirá as proporções necessárias para que o STF autorize sua liberdade. (Fonte: http://www.diretodaredacao.com/)

* ex-correspondente do Estadão e da CBN, Rui Martins é autor de "O Dinheiro Sujo da Corrupção". Está baseado em Berna, colaborando com jornais europeus e com o site Direto da Redação.

domingo, 19 de julho de 2009

PSICOPATOLOGIA DA VIDA COTIDIANA

Tal qual a gripe suína, a praga das telenovelas também nos chegou do México, com "O Direito de Nascer" (1964)

Neste sábado, passei por uma experiência nova na minha vida: fiz um curso para poder batizar minha filhinha.

Foi pitoresco. Primeiramente, por terem dado uma roupagem nova ao que eu pensava que seria apenas uma tediosa aula de catolicismo. Houve debate, uso de power-point, etc.

Achei meio decepcionante que o padre não desse o ar de sua graça, deixando a incumbência para os voluntários da pastoral respectiva. Meio assim como se fôssemos segunda divisão, só merecendo atenções especiais no próprio dia do batismo.

Mas, a senhora que conduziu os trabalhos levava jeito para a coisa. O treinamento de professora ajudou.

Fiquei pasmo ao perceber que, depois de pedir aos participantes, umas 30 pessoas, que falassem um pouco sobre si mesmos, ela começou a chamar cada um para o diálogo... pelo nome!

Em situações análogas, eu seguramente não consigo associar o nome à imagem de 10 pessoas. Sou sempre obrigado a disfarçar, pois sei que cada um acredita ter importância suficiente para merecer um desempenho melhor da minha memória.

Mas, são facetas que nos acompanham desde o início. No primário, já levava mais tempo que os demais para memorizar o nome dos colegas. Talvez como contrapartida por ter memória excelente em outros departamentos.

DA PIEGUICE MEXICANA À LAVAGEM CEREBRAL DA GLOBO - Debateu-se o que está errado no mundo de hoje e o que fazer para melhorá-lo, com cada um tendo oportunidade de proferir frases muito originais sobre Deus, amor, paz, família, etc.

Parece que tudo mudará da água para o vinho se nos comportarmos melhor nas esferas social e familiar.

Foram citadas situações de telenovelas para ilustrar algumas ponderações. Eu, apaixonado pelo cinema desde as matinês do pulgueiro do meu bairro, nunca as suportei.

Quando estreou a chatíssima O Direito de Nascer, importada do México pela então TV Tupi no sintomático ano de 1964, vi metade do primeiro capítulo e concluí: é melodrama arrastado. Desde então, e já lá se vão quatro décadas e meia, nunca precisei alterar minha opinião quanto ao ritmo arrastado e à mediocridade intrínseca (só deixou, em parte, de ser melodrama).

É claro que, visitando pessoas, tive de suportar o que assistiam, então nunca perdi totalmente o contato com as novelas. E também nunca deixei de ser acometido por bocejos, que, por educação, disfarço o melhor que posso.

Pude perceber que, quando o filão passou a ser dominado pela rede Globo, as novelas redefiniram o seu papel: saíram dos clichês melosos/folhetinescos apropriados para pessoas simplórias (escola mexicana) e viraram um reforço da auto-estima para quem vive existências insípidas.

Ou seja, mostram personagens comuns fazendo coisas comuns e vivendo situações comuns, como se isso fosse importante.

Deixaram de destacar o inusitado, o aventureiresco, o genial, aquilo que são e fazem os indivíduos superiores.

Passaram a ser um mero espelho dos telespectadores. Para que estes fiquem iludidos, achando que sua existência banal e insípida não é tão banal e insípida assim. Que a poça de água parada em que o capitalismo os condena a viver é, pelo contrário, um mar grandioso.

TRABALHO ALIENADO, O DOMÍNIO DE SATÃ? - Voltando ao catecismo modernizado de ontem, chamou-me também a atenção que ninguém, absolutamente ninguém, falou sobre aperfeiçoar-se e melhorar como ser humano em sua esfera profissional.

Será que não têm consciência de que a sociedade em que vivem os obriga a utilizarem suas piores aptidões na luta pela sobrevivência?

Ou, o que é mais provável, já não conservam a mínima ilusão quanto a isto, admitindo que, na caça à grana, vale tudo e tudo se justifica?

É uma das acusações mais terríveis que Marx lançava ao capitalismo: de ter aniquilado a possibilidade do trabalhador realizar-se com seu trabalho.

O artesão medieval enxergava-se naquilo que produzia. Seu talento e sua sensibilidade estavam incorporados aos frutos do seu labor. Cada um deles tinha uma maneira própria, diferente, de fazer as mesmas coisas (móveis, objetos).

Essa mentalidade sobreviveu durante as primeiras etapas do capitalismo, pelo menos fora do ambiente das grandes fábricas -- nas quais a produção em série já tornava o proletário totalmente alienado do produto final, em que nada via de realmente seu. O grande cineasta René Clair, depois plagiado por Charlie Chaplin (Tempos Modernos, 1936), fez uma crítica devastadora das linhas de montagem, em A Nós, A liberdade (1931).

Lembro-me do meu avô, pequeno fabricante de móveis, depois de um dia estafante, recusando uma mesinha de jogo já embalada e pronta para zarpar. Quando terminava o expediente dos funcionários, o dele continuava, saindo com sua kombi para fazer as entregas.

Mesmo assim, não aceitou que a mercadoria seguisse com um risquinho que provavelmente passaria despercebido ao cliente. Disse, aludindo ao fato de que a empresa levava o sobrenome da família: "Esta mesa tem meu nome. E meu nome não circula riscado por aí".

Ahora, no más. São raríssimos os profissionais que têm orgulho e verdadeiro zelo em relação ao que fazem. A imensa maioria só quer ganhar logo a grana para poder ir fazer aquilo de que realmente gosta. O trabalho, mais do que nunca, virou castigo bíblico, a canga que se suporta para sobreviver.

Ou, simplificando o que disse o filósofo Norman O. Brown: nos desempenhos profissionais, pertencemos inteiramente ao diabo (para ele, sinônimo do capitalismo).

O que ainda temos de Deus dentro de nós, só pode aflorar, esporadicamente, nas esferas social, familiar e amorosa.
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