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quinta-feira, 16 de abril de 2020

HÁ 50 ANOS CONHECI O INFERNO EM VIDA

Destruí as fotos, mas acharam esta na escola 
Foi no dia 16 de abril de 1970 – também uma 5ª feira – que a primeira fase da minha vida terminou da pior maneira possível.

Eu tinha 19 anos e comandava o setor de Inteligência da Vanguarda Popular Revolucionária no Rio de Janeiro. Na véspera, até lá pelas 22h, 22h30, estivera tratando de vários assuntos com o principal aliado da Organização naquela cidade que ainda não havia deixado de ser maravilhosa.

Era um quarentão afável, muito bem relacionado, que sempre tinha alguém para indicar quando carecíamos de uma forcinha de pessoa com vida legal. 

Até quando precisamos contatar com a máxima urgência nosso comandante nacional Mário Japa, depois de ele ter sido trocado pelo cônsul japonês em São Paulo, o doutor  tirou da cartola uma aeromoça disposta a correr o risco de tentar falar com ele lá fora, onde certamente estaria sendo vigiado pela polícia local e por agentes brasileiros e/ou da CIA. E não é que ela conseguiu, trazendo-nos na volta uma informação que era vital para nossos planos!

Ao mesmo tempo, o doutor era uma das nossas maiores vulnerabilidades. Sabíamos muito bem que quem conhecia tanta gente contrária ao regime tinha enorme chance de acabar delatado. Mas, tanta falta ele nos faria que nunca tomamos a decisão de dispensar sua cooperação para preservar a ele e a nós. Deveríamos tê-lo feito.

Ao nos separarmos, ele marcou novo ponto comigo para as 6h45 da manhã seguinte, na praça Saens Peña, Tijuca. Queria apresentar-me trabalhadores que poderiam prestar-nos algum tipo de auxílio, mas só dispunham desse horário para um rápido contato, antes de irem pegar no batente.

Cheguei sonolento e desatento, pois não pressentia perigo no encontro com o doutor, depois de ter estado com ele até umas sete horas antes. 

E nem sequer levava a cápsula de cianureto entre os dentes, pois alguns dias antes me haviam avisado que ela se revelara inútil. Os estudantes de química que a forneceram para nós não souberam confeccioná-la corretamente.

Entrei na padaria combinada, pedi um café e uns cinco agentes do DOI-Codi desabaram sobre mim, não me dando a mínima chance de sacar o .38 que trazia na cintura. Meu pior pesadelo virara realidade.  

Não vou contar de novo tudo que aconteceu comigo a partir daí, as torturas, a ocasião em que estive próximo de enfartar, o oficial entediado que me estimulou a tentar a fuga para poder balear-me pelas costas, o nefasto acaso que me fez carregar durante 34 anos uma culpa que não me pertencia. Tudo isso está no meu livro Náufrago da Utopia e num monte de entrevistas que dei ao longo destes 50 anos.

Nem quero alongar-me neste post, pois a tragédia maior pela qual os brasileiros estamos passando torna, por comparação, irrisórios meus dramas pessoais.

Só direi que, paradoxalmente, a queda me manteve vivo: ao ser levado à auditoria do Exército num dia qualquer do semestre seguinte, o tenente que comandava a escolta me mostrou um jornal que mancheteava a morte de militantes do Movimento Revolucionário Tiradentes resistindo à prisão e comentou: "A sua sorte é não estar mais na rua, se não faria companhia a eles". 

Confirmou as minhas suspeitas de que a ordem passara a ser a de, dali em diante, não deixarem nenhum de nós vivo para contar a história.. 

Também serviu para eu me tornar intransigentemente avesso a todas e quaisquer ditaduras. Antes, ainda admitia que não pudéssemos prescindir da chamada ditadura do proletariado, desde que ela durasse o estritamente necessário e fosse preparando o terreno para sua extinção. 

Depois de conhecer os extremos a que podia chegar a desumanidade do homem para com o homem, passei a considerar que nada, absolutamente nada, justificava submeterem-se seres humanos a tais horrores. Nem por um único dia.  

Outras conclusões políticas que extraí dos acontecimentos de 1970 e da minha trajetória posterior estão bem sintetizadas neste artigo de dois dias atrás, então não choverei no molhado.

E, se mantenho até hoje a convicção de que contribuir para a superação do capitalismo é o objetivo máximo da minha existência, isto tem tudo a ver com haver descido aos infernos e sobrevivido, enquanto tantos valorosos companheiros ficaram pelo caminho. 

O compromisso que assumi com eles em vida não deixou de existir quando morreram. Fiz sempre tudo que pude para tornar conhecido o seu sacrifício e para levar à vitória os ideais em nome dos quais entregaram a vida.  (por Celso Lungaretti)  

quinta-feira, 13 de fevereiro de 2020

OUÇAM NO PODCAST "ROTEIRICES": UMA TRAJETÓRIA PESSOAL DE 52 ANOS DE LUTAS RESUMIDA EM 85 MINUTOS DE ENTREVISTA

O jornalista brasileiro Carlos Alberto Jr., que trabalhou em vários veículos da grande imprensa e nos últimos anos vem atuando nos EUA como roteirista e diretor de documentários para TV, entrevistou-me nesta semana para seu podcast Roteirices, no qual disponibiliza depoimentos de escritores, jornalistas, cineastas e acadêmicos. O link é este aqui

Agora são 42 as entrevistas que podem ser acessadas no Roteirices, dentre elas as do Aluizio Palmar, Daniel Aarão Reis, Eumano Silva e Flávio Tavares (para citar os, como eu, ligados à memória dos anos de chumbo).

Durante 85 minutos, fui resumindo uma trajetória de 52 anos, começando pelas ações de conscientização política no Colégio Estadual MMDC, em 1967. Depois vieram: 
— a estruturação do movimento secundarista em toda a Zona Leste paulistana; 
 a militância na Vanguarda Popular Revolucionária, como comandante de Inteligência em SP  e depois no RJ; 
 a participação na equipe precursora da instalação de uma área de treinamento guerrilheiro na região do Vale do Ribeira, SP;
  a prisão pelo DOI-Codi/RJ e as torturas que sofri tanto nessa unidade quanto na PE da Vila Militar, durante um período de 70 dias, delas resultando uma lesão permanente;
  a passagem por uma comunidade alternativa e um grupo de resistência cultural; 
  algumas tomadas de posição marcantes como jornalista (a solidariedade ao injustiçado Paulo de Tarso Venceslau, p. ex.); 
 a atuação como porta-voz informal da greve de fome dos Quatro de Salvador e do Comitê de Solidariedade a Cesare Battisti
 a criação e manutenção do blog Náufrago da Utopia, uma trincheira dos ideais revolucionários (entendidos como os esforços para uma transformação profunda da sociedade e não para a obtenção de pequenas concessões dos exploradores que minorem o sofrimento dos explorados sem  colocar em xeque os fundamentos do esquema de  dominação capitalista), etc.

Após mais de meio século de fidelidade às mesmas convicções, na contramão tanto da classe dominante quanto (na maioria do tempo) da tendência dominante da esquerda, o balanço com que encerrei a entrevista foi o de que é possível, sim, um idealista manter-se sempre coerente com seus valores e ir tocando suas lutas, às vezes ao lado de outros, às vezes como lobo solitário. 

Há um preço a pagar, e ele é alto. Mas, quem pretende concretizar as melhores aspirações da humanidade (liberdade e justiça social) não deve esperar que os privilegiados abram generosamente mão de seus privilégios, curvando-se ao bem comum.

Pelo contrário, eles os defendem com unhas, dentes e todas as armas que lhes pareçam necessárias. (por Celso Lungaretti)

domingo, 31 de março de 2019

O COTIDIANO DE UM RESISTENTE

encontro com a ditadura – 15
A propaganda enganosa martelada incessantemente pelas viúvas da ditadura bate muito na tecla de que os militantes da luta armada teríamos utilizado o dinheiro expropriado dos bancos para vivermos como burgueses, entre luxos e orgias. Nada mais falso.

Eu militei na Vanguarda Popular Revolucionária entre abril/1969 e abril/1970, quando fui preso pelo DOI-Codi/RJ, sofri torturas que me deixaram à beira de um enfarte aos 19 anos de idade e me causaram uma lesão permanente.

Nesse ano em que me beneficiei do produto dos assaltos praticados pelas organizações de resistência à tirania implantada pelos usurpadores do poder, como foi minha vida de nababo?

Na verdade, recebia o estritamente necessário para subsistir e manter a minha fachada de vendedor autônomo.

No início, fui obrigado a me abrigar em locais precaríssimos, como o porão de um cortiço na rua Tupi, próximo da atual estação do metrô Marechal Deodoro, na capital paulistana. Era só o que eu conseguia pagar com o produto dos assaltos.

Cada quarto era um cubículo mal ventilado. Enxames de pernilongos me atacavam durante o sono. Afastava-os com espirais que mantinha acesos durante a noite inteira... e me faziam sufocar.

O que mudou quando meus companheiros fizeram o maior assalto da esquerda brasileira em todos os tempos, apossando-se dos dólares da corrupção política guardados no cofre da ex-amante do governador Adhemar de Barros? Quase nada.

Era dinheiro para a revolução, não para gastos pessoais. Apesar de integrar o comando estadual de São Paulo e depois exercer papel semelhante no Rio de Janeiro, continuei levando existência das mais austeras.

Meu último abrigo foi o quarto alugado no amplo apartamento de uma velha senhora do Rio Comprido (RJ). Fazia tanto calor que eu era obrigado a dormir despido sobre o chão de ladrilhos, que amanhecia ensopado de suor.

Quando tinha de abandonar às pressas um desses abrigos, todos os meus bens cabiam numa mala de médio porte. Vinham-me à lembrança os versos de Brecht, "íamos pela luta de classes, desesperados/ trocando mais de países que de sapatos".

Havia, sim, um dinheiro extra, que equivaleria a uns R$ 10 mil atuais. Mas, tratava-se do fundo a que recorreríamos caso ficássemos descontatados e tivéssemos de sobreviver ou deixar o País por nossos próprios meios, sem ajuda dos companheiros que já estariam presos ou mortos.

Nenhum de nós gastava essa grana, era ponto de honra. Os fundos de reserva acabaram chegando, intactos, às garras dos rapinantes que nos prendiam e matavam. Nunca prestaram conta disso, nem dos carros, das armas e até das peças de vestuário que nos tomaram.

E, mesmo que tivéssemos dinheiro para esbanjar, como o gastaríamos? Éramos procurados no país inteiro, com nossos nomes e fotos expostos em cartazes falaciosos.

Eu, que nunca fizera mal a uma mosca, aparecia nesses pôsteres como “terrorista assassino, foragido depois de roubar e assassinar vários pais de família”. O Estado usava o dinheiro do contribuinte para me fazer acusações falsas e difamatórias!

Para manter as aparências, éramos obrigados a sair cedo e voltar no fim do dia. Os contatos com companheiros eram restritos ao tempo estritamente necessário para discutirmos os encaminhamentos em pauta; dificilmente chegavam a uma hora.

Sobravam longos intervalos, com nada para fazermos e a obrigação de ficarmos longe de situações perigosas. Tínhamos de procurar locais discretos, tentando passar despercebidos... por horas a fio. Sujeitos a, em qualquer momento, sermos surpreendidos por uma batida policial.

Vida amorosa? Dificílima. Cada momento que passássemos com uma companheira era um momento em que a estaríamos colocando em perigo. Ninguém corria o risco de ir transar em hotéis, sempre visados (e nossa documentação era das mais precárias, passei uns oito meses portando apenas um título eleitoral falsificado). E as facilidades atuais, como motéis, quase inexistiam.

Aos 18/19 anos, senti imensa atração por duas aliadas, uma em São Paulo e outra, meses mais tarde, no Rio de Janeiro. Com ambas, o sentimento era recíproco. E nos dois casos mal passamos dos beijos apaixonados com que nos cumprimentávamos e despedíamos. Qualquer coisa além disso seria perigosa demais.

Enfim, esta é a vida que levávamos, acordando a cada manhã sem sabermos se estaríamos vivos à noite, passando por freqüentes sustos e perigos, recebendo amiúde a notícia da perda de companheiros queridos (eu até relutava em abrir os jornais, tantas eram as vezes que só me traziam amargura).

Sobreviver alguns meses era digno de admiração. Ao completar um ano nessa vida, eu já me considerava (e era considerado pelos companheiros) um veterano. Caí  logo em seguida.

Dos tolos que saem repetindo essas ignomínias trombeteadas dia e noite pela extrema-direita, bem poucos seriam capazes de encarar a barra que encaramos, não pelas motivações ridículas que nos atribuem, mas por não aguentávamos viver, e ver nosso povo vivendo, debaixo das botas dos tiranos! (por Celso Lungaretti)

quarta-feira, 23 de agosto de 2017

UM NOVO 'MILAGRE BRASILEIRO' ESTARÁ A CAMINHO?

Toque do editor
Uma lição que a História me ensinou foi a de nunca desprezar possibilidades aparentemente menos plausíveis de cenários futuros, se não quisermos ser surpreendidos por eles.

Aos 18 anos, escolhido pela VPR para criar algo que jamais existira na esquerda brasileira –um setor de Inteligência formalmente estruturado–, tive até algum sucesso em acompanhar as disputas na caserna, entre partidários da radicalização da ditadura e os que queriam manter a proposta original de devolução do poder aos civis. Tratava-se de algo que precisávamos monitorar bem, mesmo porque uma das consequências do fortalecimento dos segundos era a intensificação da repressão.

Mas, nem me passou pela cabeça que, além de um terrorismo de Estado desembestado, outro grave perigo nos ameaçasse: uma melhora da situação econômica capaz de alterar o humor da classe média, fazendo-a simpatizar com o regime. Acreditávamos que a impopularidade dos golpistas fardados permaneceria inalterada, aumentando as chances da guerrilha que nos preparávamos para deflagrar.

O milagre brasileiro nos retirou a escada e ficamos pendurados na brocha. Foi uma euforia consumista que que durou apenas até o primeiro choque do petróleo, em 1974. Mas, o suficiente para a classe média, deslumbrada com o aumento de poder aquisitivo e o ingresso no maravilhoso mundo das compras, sair cantando "eu te amo, meu Brasil, eu te amo", enquanto os próprios trabalhadores, no futebol dominical, ovacionavam o ditador Médici, que ia fazer encenações demagógicas no Maracanã, com um radinho de pilha colado no ouvido e um batalhão de seguranças ao lado...
A mão sangrenta aperta a mão do embasbacado

Um bom agente de Inteligência certamente perceberia os indícios do começo de um boom econômico, alertando seus superiores em tempo hábil. Mas, além da inexperiência, tenho outra atenuante: ninguém na VPR captou a direção dos ventos econômicos (nem mesmo o Ladislaw Dowbor, economista por formação). Fomos todos pegos de calça curta e, em pouco tempo, nos vimos isolados politicamente, o que facilitou nosso aniquilamento militar.

Gato escaldado, hoje me mantenho sempre atento aos rumos da economia, pois eles geralmente antecipam o que está para vir na política. No 3º trimestre de 2014, p. ex., eu já sabia que o mandato presidencial seguinte inevitavelmente transcorreria sob uma aguda recessão econômica. E, tendo a certeza de que a Dilma não estava nem de longe à altura do desafio que enfrentaria caso reeleita, favoreci tanto a candidatura de Marina Silva quanto a tendência interna do PT que pregava a volta do Lula, com a mudança de cabeça-de-chapa.

Infelizmente, Marina foi desconstruída pelo Goebbels do PT (João Santana, responsável direto pelo pior estelionato eleitoral de todos os tempos no Brasil) e Lula cometeu um dos maiores erros de sua vida, ao não insistir com a teimosa criatura para que se sujeitasse à vontade do seu criador. O resultado veio no ano passado com o impeachment, a derrota mais acachapante que sofremos desde 1964.
Bem melhor seria se Lula tivesse disputado esta eleição!
Desde então venho insistindo em que a esquerda precisa abandonar definitivamente as ilusões eleitoeiras e recolocar a superação do capitalismo como prioridade máxima de sua atuação, travando as lutas do povo ao lado do povo para organizá-lo e acumular forças, até se tornar capaz de oferecer uma verdadeira alternativa de poder.

Mas, há os que insistem em tapar o sol com a peneira, utilizando a miragem de uma vitória do Lula na eleição presidencial de 2018 como justificativa para não fazerem autocrítica nenhuma e manterem tudo que se revelou desastroso de 2002 para cá: a política de conciliação de classes, o reformismo, o populismo, o respeito religioso pelos valores republicanos, etc.

O Dalton Rosado e eu cansamos de provar que a via eleitoral, além de jamais ter sido uma autêntica opção estratégica para nós, hoje nem sequer serventia tática tem. Pelo contrário, participar dos podres Poderes nos diminui aos olhos do povo, fazendo-nos ser vistos como farinha do mesmo saco.

No fundo, tanto dá que seja Lula, Dória ou outro qualquer quem vá gerenciar o capitalismo para os capitalistas, pois o verdadeiro poder continuará sendo o econômico, a mão que maneja os cordéis por trás das cortinas. Presidentes hoje desempenham funções cerimoniais e cuidam das miudezas, enquanto as decisões macroeconômicas, aquelas que realmente importam, são ditadas pelo grande capital.
A classe média sonha com um bis

E, traçando um paralelo óbvio com o golpe de 1964, venho advertindo também que, mesmo estando globalmente muito mais fragilizado, o capitalismo continua tendo poder de fogo para dar uma levantada temporária na economia brasileira, suficiente para os eleitores estarem aliviados e otimistas quando forem às urnas em 2018.

Nesta 4ª feira (23) meu temor parece confirmado pelo economista Marcos Trojyo, que leciona na Universidade Columbia, em Nova York: poderemos mesmo vir a presenciar a um novo milagre brasileiro (que, não tenho dúvidas, seria tão efêmero quanto o anterior, mas com chance de consolidar a restauração burguesa ora em processo).

Sugiro que todos leiam suas previsões e passem a acompanhar atentamente o desenrolar dos acontecimentos, para ver se as confirmam. Caso o cenário que ele esboça venha a tornar-se realidade, todos os planos da esquerda terão de ser revistos, começando pelas perspectivas eleitorais do Lula, que evidentemente não subsistiriam em caso de um boom econômico.

E será uma boa hora para trocarmos o imediatismo por uma estratégia menos bombástica, porém mais efetiva, de paciente preparação dos explorados para a ruptura com o capitalismo, já pensando numa intensificação das nossas lutas dentro de alguns anos, depois de passado o boom. (CL)
BRASIL TEM CHANCE DE 
DIA DE SOL PERFEITO NA ECONOMIA

Por Marcos Troyjo
Se você estava buscando motivos para ficar menos desanimado com o Brasil, o anúncio da privatização da Eletrobras pode ser um bom sinal.

Por mais incrível (e imerecido) que venha a parecer, o país, em meio a seus escombros morais, políticos e fiscais, tem uma razoável oportunidade de engatar um ciclo positivo na economia –e na história.

No mundo, e dentro do Brasil, correntes de ventos contrários e a favor estão alcançando um equilíbrio interessante. Em lugar da certeza de que tudo está perdido, desponta a chance do país virar o jogo. Caso tenha competência, o Brasil aproveitará conjuntura a que se pode chamar de dia de sol perfeito.

Conhecemos bem sua plena antítese –a tempestade perfeita que acomete o país em anos recentes. Para ela concorreram fatores externos, como a retração do preço internacional das matérias-primas e a aumento do protecionismo comercial.

Influíram também as projeções de que a normalização das políticas monetárias nas economias mais maduras teria efeitos de estrangulamento de liquidez para emergentes como Brasil. Há exatos três anos, o banco de investimento Morgan Stanley listava o país ao lado de Turquia, Indonésia, África do Sul e Índia como pertencentes ao indesejável grupo dos Cinco Frágeis.

No entanto, eram os fatores internos a espalhar o rastro de devastação da tempestade perfeita. O impeachment que inescapavelmente se avizinhava. A impiedosidade da Lava Jato sobre o modelo de economia política vigente. A radioatividade da nova matriz econômica. O esgotamento da política de campeãs nacionais e do sacrossanto conteúdo local. O estouro, enfim, das comportas fiscais do estado brasileiro.
A tempestade perfeita de 2015...

Basta olhar o número de desempregados, a retração do PIB ou a falta de ânimo para investir e temos a dimensão do que continua a significar essa traumática tormenta.

Ainda assim, o momento está propício para a virada da sorte. Se quiser, como demonstram os primeiros lances nessa dinâmica de privatizar a Eletrobras, o país pode realizar no biênio 2018-19 um portentoso programa de desestatização. Nesse movimento, os bem-vindos influxos de caixa com a venda de ativos – grande refresco para o quadro fiscal –são os menores dos benefícios.

Os principais dividendos estarão no aumento da eficiência e na diminuição do papel do estado na economia e na sociedade. Aqui, os ganhos de mudança cultural, de constrangimento da mentalidade estatista, são de igual monta aos de natureza econômica.

Se de fato enveredar pelo rumo da desestatização, o Brasil desencadeará enorme potencial produtivo. E, antes mesmo que isso ocorra nos fundamentos, a formação de expectativas positivas desempenhará grande papel no desanuviar do horizonte econômico brasileiro.

Uma onda desestatizante se agregaria a outros pujantes ventos de cauda. O crescimento do Sudeste Asiático – que dobrará seu peso relativo na economia global nos próximos quinze anos – continuará a deslocar a curva da demanda mundial por alimentos, commodities agrícolas e minerais. São esferas em que o Brasil apresenta vastos diferenciais competitivos.

Do ponto de vista do investimento estrangeiro, seja na modalidade de portfólio, seja na planta produtiva, o tamanho específico do Brasil ainda importa. Sobretudo se considerarmos que há amplos estoques de capital no mundo disponíveis para projetos de infraestrutura – área em que o Brasil representa clara fronteira móvel.
...cede lugar a alguma melhora e a previsões otimistas...
Estão coincidindo também os frutos de uma boa gestão macroeconômica – inflação na meta e juros em queda – com a constatação de que as reformas estruturais moveram-se para o centro do palco. 

A trabalhista andou e, ainda que sob a tensão inerente às grandes mudanças de paradigmas, o Brasil provavelmente adotará um sequencial de reformas tributárias e reformas previdenciárias – ambas no plural. É isso ou o caos reformador do mercado.

E, ainda que se busque cotidianamente barrar a Lava Jato, seus efeitos colaterais benéficos no campo do compliance, transparência e melhores relações com investidores se farão sentir crescentemente.

Claro que existe um universo de coisas passiveis de dar errado no (e para o) Brasil nos próximos dezoito meses.

O cenário internacional, por algum evento fragmentário, por exemplo, com epicentro na Península Coreana, escureceria. O reality show trumpiano na Casa Branca pode sempre nos reservar alguma episódio mais dramático, com repercussão geoeconômica.

No plano interno, talvez a matemática fiscal em si venha a precipitar novo corte na nota de classificação de risco brasileiro antes da eleições do ano que vem. Quanto a reformas, o status quo político-fisiológico dispõe de couro grosso. Há muito o que pode desandar. O país conta com abundante coleção de mazelas a alimentar o desalento.
...mas a bonança, se vier, só durará até a tempestade seguinte.

Ainda assim, não reconhecer que a conjuntura está prestes a oferecer uma baita chance para o Brasil recuperar parte do prejuízo é mais do que ausência de otimismo. Não enxergar que o país pode iluminar-se com um dia de sol perfeito é falta de realismo.

domingo, 7 de agosto de 2016

NOVO LIVRO ESCLARECE EPISÓDIOS POLÊMICOS DA CAÇADA AOS GUERRILHEIROS DO LAMARCA EM JACUPIRANGA

No pior momento da ditadura de 1965/85, quando os militares levaram o terrorismo de estado às últimas consequências, a esquerda brasileira respondeu com as três principais modalidades de luta armada que estavam sendo praticadas em situações semelhantes no mundo inteiro:
– a guerrilha urbana, com as expropriações de bancos, a tomada de emissora e colocação de mensagens de protesto no ar, o sequestro de diplomatas para trocá-los por presos políticos, o justiçamento dos piores inimigos, etc., influenciada por movimentos revolucionários da América do Sul; 
– a guerrilha rural enraizada na população (Araguaia), com o objetivo de evoluir para exército popular, conforme as lições maoístas; e 
– a guerrilha de movimentação constante e impacto principalmente propagandístico (provar que as tropas regulares poderiam ser derrotadas), inspirada na experiência cubana.
As três chegaram a conquistar êxitos expressivos, mas acabaram sendo esmagadas por forças extremamente superiores em efetivos e recursos, que travaram uma guerra suja sem limites de nenhuma espécie e foram beneficiadas pela euforia da população com o efêmero desafogo econômico iniciado em 1970, após um longo período de vacas magras.

Os historiadores e jornalistas lançaram depois muitos livros sobre as duas primeiras, enquanto a terceira foi abordada apenas en passant, como parte da história de Carlos Lamarca, o capitão do Exército que se tornou comandante revolucionário.
Pinho não evitou temas melindrosos

Foi para preencher esta lacuna que o veterano jornalista Celso Luiz Pinho escreveu 1970, a guerra no Vale do Ribeira (Editora Gregory, 2016, 256 p.), seu projeto mais ambicioso, após ter esmiuçado outra revolução esquecida, a revolta paulista de 1924;  os combates na frente Norte durante a Revolução Constitucionalista de 1932; e a trajetória de um personagem histórico dos mais controversos, o tenente João Cabanas. Há uma nítida linha de coerência perpassando a escolha destes quatro temas.

Ao mostrar como um punhado de aprendizes de guerrilheiros logrou escapar (com baixas) de um cerco de milhares de militares, os quais não hesitaram sequer em efetuar bombardeios com napalm que poderiam atingir a população civil, Pinho fez uma espécie de passo-a-passo dos acontecimentos, baseado em farta coleta de documentos e publicações e numa série impressionante de entrevistas, realizadas com personagens dos dois lados e com moradores da região. Afirma na introdução que se empenhou a fundo para evitar que seu texto fosse contaminado por ideologias e tendenciosidades.

Esta postura imparcial lhe permitiu lançar novas e poderosas luzes sobre dois assuntos muito polêmicos: como e por que foi executado o refém que os fugitivos tomaram; e a quem cabe, realmente, a responsabilidade pela delação da escola de guerrilha de Lamarca, imputada durante 35 anos a um bode expiatório, sem que a comprovação de sua inocência no finzinho de 2004 viesse acompanhada por um desvendamento total do episódio.

Foi sobre tudo isto que conversei com Pinho. Eis a entrevista:
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Região extensa e mata fechada facilitaram a fuga
CELSO LUNGARETTI – Por que escrever sobre os acontecimentos de 1970 no Vale do Ribeira quase meio século depois?
CELSO LUIZ PINHO – Foi um fato marcante na história do Brasil e, em minha opinião, até hoje continua mal explicado. Naquela época, as pessoas ouviam falar de que algo, e algo grande, estava ocorrendo na região, mas tinham poucas informações. Ainda agora é assim. Para se ter uma ideia, eu mesmo, quando prestei o serviço militar obrigatório em cidade a mais de cem quilômetros da Capital, poucos anos depois dos fatos ocorridos no Vale do Ribeira, recebi pouquíssimas informações a respeito e estas se restringiam basicamente ao seguinte: o Lamarca fugiu de Registro levando um caminhão cheio de fuzis do Exército. A coisa não foi bem assim.

Outros escritores já divagaram sobre o mesmo assunto. Em que seu livro é diferente?
 É verdade. O Elio Gaspari, o Jacob Goerender, o Emiliano Oldack e outros mais também escreveram sobre a guerrilha do Vale do Ribeira e foram escritos muito bons que, a bem da verdade, me serviram como fontes de consulta. Todavia, deram apenas uma pincelada no assunto. Eu procurei oferecer um enfoque mais detalhado, para que o leitor tivesse uma visão abrangente dos fatos.
Estrada fechada durante as operações militares 

E como foi sua pesquisa?
 Reuni uma série de documentos, matérias jornalísticas, trechos de processos judiciais etc. Também conversei com algumas pessoas, dos dois lados, que participaram das operações. Mas, o melhor mesmo foi ter viajado ao teatro de operações e entrevistado diversos moradores de Jacupiranga e Cajati e ouvido deles suas lembranças ou informações orais transmitidas por seus parentes.

Em sua opinião, qual o trecho mais interessante do livro?
 Bem, as operações no Vale do Ribeira foram o ápice do entrelaçamento de diversos outros fatos anteriores que ocorreram em São Paulo e no antigo estado da Guanabara e, parece uma contradição, mas a meu ver, o caso do desvio dos fuzis do 4º Regimento de Infantaria é o assunto que mais me chama a atenção.

E o que tem a ver o furto das armas no 4º RI com a Guerrilha no Vale do Ribeira?
 Em primeiro momento, parece não ter nada em comum os dois fatos. No entanto, não dá para se falar em Guerrilha no Vale do Ribeira sem falar no Lamarca e, não dá para falar em Lamarca sem lembrar o fato ocorrido no quartel do Exército em Osasco. E olha que as duas cidades estão separadas por mais de duzentos quilômetros.
Lamarca quando jovem...

O que exatamente houve no Vale?
 Veja, ninguém ignora que em 1964 houve a queda do presidente Goulart e, em decorrência, o governo do país ficou em mão dos militares. Logo após o golpe, vieram os Atos Institucionais e muitas pessoas, dos mais diversos ramos de atividade, foram cassadas. A grosso modo, podemos dizer essas pessoas se aglutinaram em diversos grupos e queriam a volta do estado de direito. Esses grupos, em sua maioria, entenderam ser necessário lutar por seus interesses não apenas com palavras, pois que estas, talvez a longo prazo, alcançassem os objetivos propostos, contudo havia um imediatismo. 

Nem sempre as flores, e aqui podemos trocar flores por palavras, vencem os canhões, como dizia o Vandré. Assim, para formar pessoal e fazer frente à ditadura instalada, era preciso gente com alguma especialização. Via de regra, essa especialização era feita fora do país, porém havia o inconveniente, com todos os perigos e custos, em mandar pessoas para fora e trazê-las de volta em segurança, mesmo porque, simplesmente, não se pegava um avião e ia para Cuba. A coisa era mais complexa e exigia até viagens para a Europa para, só depois, ir para o destino final. Então, a ideia primordial era formar combatentes no próprio território nacional. 

Esse pessoal, uma vez formado, seria utilizado em diversas áreas a serem criadas. É importante lembrar que alguns dos grupos acreditavam que a derrubada do governo militar deveria começar pelo campo, outros, no entanto, achavam que as ações urbanas trariam melhores resultados. De qualquer modo, seja para o campo ou para a cidade, o combatente deveria ter uma preparação básica.

Mas antes já houve ações de guerrilha no Brasil.
 Com certeza, porém não se pode dizer que foram sucessos, já que pontuais. Haja vista o desastre de Três Passos e Caparaó, em que podemos observar uma espécie de improviso de ações, sem uma coordenação maior.
...e já na fase de procurado vivo ou morto.

E o Lamarca?
 Bom, ele tinha lá suas ideias e resolveu colocá-las em prática. E uma das formas foi justamente a instalação da uma escola, talvez a primeira, de formação de combatentes revolucionários em território nacional nos moldes cubanos.  Pelo que se entende, a VPR achou ser ele, na época, a pessoa melhor qualificada para os objetivos pretendidos. Desta forma, o campo de treinamento foi instalado no Vale do Ribeira.

Em Registro?
 Acho que já é hora de se desfazer esse engano. Na verdade, o campo de treinamento foi instalado em Jacupiranga e não em Registro. Para ser mais exato, foi no distrito de Cajati, que hoje é uma cidade autônoma. Registro foi apenas um ponto de referência, já que, na região, era a única cidade que tinha alguma infraestrutura para abrigar tropas e equipamentos militares em larga escala. Dai o motivo das ações receberem o nome de Operação Registro.

E por que naquela região?
 Vários fatores contribuíram para a escolha de Jacupiranga, entre eles, podemos dizer a mata fechada, ideal para se atingir as metas propostas, e a forte influência política de pessoas importantes da região.
Capturados: Darcy Rodrigues e José Lavecchia.

As metas foram atingidas?
 Acredito que não. Apenas uma única turma foi formada, melhor dizendo, parcialmente formada. A existência da escola de guerrilha, um segredo guardado a sete chaves, vazou, culminando com sua invasão pelas forças militares e, como se sabe, as duas bases que formavam o núcleo foram abandonadas por Lamarca e os demais. 

Durante a retirada, quatro dos alunos, pessoas já experientes, foram presas e mais uma série de coisas ocorreram, mas um fato que não se pode negar é a forma sensacional com que Lamarca e mais alguns saíram da região, apesar dos bombardeios realizados pela FAB.

Como foi esse vazou?
 Talvez seja esse o aspecto mais obscuro do assunto. No livro, eu explico, ou pelo menos tento explicar. O fato é que, a meu ver, pessoas inocentes levaram a culpa.

O Jacob Gorender escreveu carta a um grande jornal paulista nesta linha, mas não esclareceu de quem realmente seria a culpa. E você, esclarece?
 Acredito que o meu livro é o que chega mais próximo disto. Reuni as informações hoje existentes sobre os atos dos personagens que poderiam ter revelado ao DOI-Codi a localização da escola de guerrilha e interpretei-as de forma que as peças não só se encaixassem perfeitamente no quebra-cabeças, como houvesse uma coerência básica com a cronologia dos acontecimentos. 
Vingança. E 3 tiros foram pelas costas!

Meu objetivo não foi o de acusar ninguém, até porque se tratava de uma situação-limite e aquelas pessoas estavam sendo submetidas a torturas físicas e psicológicas as mais terríveis. Mas forneço aos leitores elementos suficientes para eles terem uma boa noção do que ocorreu e tirarem suas conclusões, inclusive sobre a participação de cada personagem.  Uma coisa é certa: os militares não chegaram ao campo de treinamento através de informações recebidas por bolinha de cristal.

E quanto aos erros, houve muitos?
 Houve. E de ambas as partes. Na minha modesta opinião, a VPR errou em adquirir o sítio naquela região, bem próxima a uma estrada de rodagem e com presença freqüente de caçadores e curiosos. Persistiu no erro ao reinstalar a escola em uma segunda área muito próxima à primeira, e utilizando os préstimos da mesma pessoa que, embora simpatizasse, não tinha maior comprometimento com a Organização. 

Outro erro foi a morte do tenente da Força Pública, fato bem explorado pela repressão. Acho que o Lamarca não avaliou a repercussão negativa que causaria, caso fosse descoberta. De qualquer forma, eu vejo que, a partir da fuga do Vale do Ribeira começou o declínio do Lamarca dentro da VPR.

Declínio?
 Sim. Dentro da VPR começou um movimento de diminuição de seu prestígio, tanto que depois de um tempo ele foi para o MR-8, mas sem poder de comando.

Em sentido mais amplo, podemos dizer que tudo teve origem com a queda do presidente João Goulart. O clima político de hoje lembra os fatos ocorridos após a queda de Jango?
 Pergunta difícil de responder. São dois momentos históricos com alguma semelhança, mas com grandes diferenças factuais. Atualmente, estamos sendo governados pelo vice-presidente. Ou seja, a presidente de direito (ou presidenta, como ela prefere ser chamada) está afastada temporariamente e corre o sério risco de não mais retornar. 
Também no Vale do Ribeira utilizou-se o napalm

Isso, é claro, faz com que surjam pessoas descontentes. Mas, creio que não haverá fatos que ensejem ações radicais, mesmo porque tenho notado uma grande diferença entre a esquerda de meio século atrás e a esquerda de hoje.

Que diferença?
 Naquele tempo, era um terrível pecado qualquer pessoa se dizer ideologicamente de esquerda. Na época, era impensável uma pessoa usar na lapela um botão ou broche com a foice e o martelo ou mesmo uma estrela vermelha, embora muitas delas, sob grandes riscos pessoais, tenham vestido a camisa. 

Hoje, são outros tempos. A esquerda está abertamente integrada na sociedade e já não há a necessidade de, digamos assim, um mascaramento, porém eu acho que os jovens de meio século atrás eram mais resolutos. Talvez resultado da forte influência dos acontecimentos na França daquele tempo.

Quer dizer que a esquerda de hoje está mais fraca?
 Eu não diria mais fraca, todavia eu diria que a juventude de hoje está um tanto quanto desiludida com os rumos tomados. No livro eu cito uma frase de um ex-guerrilheiro que esteve no Vale do Ribeira, o Sobrosa, dizendo assim “aqueles que querem mudar uma sociedade, não podem agir como a sociedade que querem mudar”. 

O que nós vemos agora? Sem generalizar, uma grande quantidade de pessoas públicas, com formação de esquerda, agindo exatamente como agiram as que lhes antecederam. É por isso que ouvimos das pessoas do povo aquela famosa frase: “sai um, entra outro e tudo continua do mesmo jeito”.
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