quarta-feira, 3 de abril de 2024

A CINEBIOGRAFIA DE HANNAH ARENDT É UM TRIBUTO À DIGNIDADE DE UMA JUDIA QUE NÃO ABDICOU DO SEU ESPÍRITO CRÍTICO

Barbara Sukowa foi convincente como Hannah Arendt 
Não considero o filme Hannah Arendt uma obra-prima da sétima arte. 

Estou longe de ser um fã de carteirinha da diretora alemã Margarethe von Trotta, a quem avalio como inferior a outros cineastas que incursionaram pelo cinema político, como Costa Gravas, Damiano Damiani, Francesco Rosi, Gillo Pontecorvo e Giuliano Montaldo

Seu Rosa Luxemburgo, p. ex., ficou muito aquém da magnitude da personagem histórica que antecedeu Trotsky na firme rejeição dos componentes autoritários que acabariam por descaracterizar completamente a revolução soviética.  

Mas, o quarto de século transcorrido entre um e outro filme lhe fez bem (assim como à atriz Barbara Sukowa, muito melhor no de 2012 que no de 1986). 

Se na biografia cinematográfica da Rosa vermelha a von Trotta quis abarcar acontecimentos demais e não soube separar o fundamental do dispensável, em Hannah Arendt tomou a sábia decisão de restringir-se ao que realmente importava: a cobertura do julgamento de Adolf Eichmann e o fogo amigo que Arendt enfrentou por não ter abdicado do seu espírito crítico.

Judia alemã, ela se refugiara nos EUA e por lá ficou, tendo se tornado uma respeitada professora de filosofia,  autora de um livro famoso: Origens do totalitarismo.
Eichmann: "eu era um funcionário subalterno sem autonomia".

Quando agentes israelenses sequestraram o criminoso de guerra nazista na Argentina, em 1960, Arendt convenceu o jornal 
New Yorker a designá-la para a cobertura do julgamento de cartas marcadas que o Estado judeu encenaria para dourar a pílula da execução, confundindo justiça com uma vendetta subsequente a um ato de pirataria.

[As bestas-feras da Operação Condor teriam agido da mesmíssima maneira, mas sem o cinismo de tentarem legitimar a lei das selvas...]  

Embora não tivesse até então denunciado a ilegalidade e imoralidade intrínsecas àquela farsa judicial, Arendt recuperou-se ao destoar da linha justa israelense, que erigia Eichmann num monstro, com redobrado furor em função da má consciência: perseguidos durante milênios, os judeus, lá no fundo, sabiam muito bem que haviam cometido um erro terrível ao desrespeitarem a soberania de um país que nem inimigo deles era (a Argentina). 

Afora que, não tendo sido capturado em território israelense, Eichmann só poderia ser julgado por um tribunal internacional como o de Nuremberg.

Então, vilificavam-no ao máximo, da forma mais estridente possível, para abafar os tímidos posicionamentos discordantes. Começavam a incidir nas mesmas práticas que tanto haviam recriminado nos nazistas.
Arendt, contudo, teve a coragem moral de, nos seus artigos para o New Yorker (depois reunidos no livro 
Eichmann em Jerusalém - um relato sobre a banalidade do mal) apresentar o réu apenas como um burocrata medíocre, um pau mandado, um elo a mais da engrenagem totalitária.

[É como sempre vi os Ustras, Curiós e delegados Fleury: tão primários e tacanhos que nem sequer aquilatavam o quanto seus atos eram hediondos. Mereciam expiar seus crimes nos 30 anos de cativeiro que as leis brasileiras admitem, mas muito mais culpados foram os que tinham plena consciência do que faziam ao abrirem as portas do inferno. Refiro-me, claro, aos oportunistas como o Delfim Netto, que lhes retiraram as focinheiras ao assinarem o AI-5.]

Outra heresia, no bom sentido, de Arendt foi apontar a cumplicidade de alguns judeus com os carrascos: os chamados conselhos judaicos, na Alemanha e na Polônia, haviam ajudado os nazistas a confiscarem bens, arrebanharem as vítimas e as enviarem para os campos de concentração. Era uma informação que os israelenses preferiam omitir, por motivos propagandísticos óbvios.

Foi o suficiente para desabar uma tempestade de críticas sobre Arendt, que passou a ser tão estigmatizada pelos judeus (inclusive os progressistas), como, digamos, Joaquim Barbosa pelos petistas. Para quem nunca soube ou não se lembra, mesmo sendo um ministro do Supremo simpático aos ideais esquerdistas, ele manteve a imparcialidade no julgamento do mensalão, ao invés de empurrar os delitos companheiros para baixo do tapete.

Hannah Arendt foi de uma dignidade exemplar, não recuando um milímetro. 

Daí merecer hoje nosso enfático reconhecimento, não só por pela relevância e atualidade de sua obra, mas também por haver sido uma pensadora que teve o vislumbre do ovo da serpente sionista e se manteve fiel a sua visão libertária, resistindo às fortíssimas pressões oriundas do seu círculo. 

Se dependesse dela, Israel teria continuado a ser o dos kibutzim, não o dos pogroms. (por Celso Lungaretti)

8 comentários:

Neves disse...

Filmes em Perspectiva
https://www.ihu.unisinos.br/images/stories/cadernos/ideias/356cadernosihuideias.pdf

Anônimo disse...

Pesquisei "Hanna" e " Arendt" e não resultou... este pdf fala do filme?

Henrique Nascimento disse...

Muitos têm críticas duras a Arendt pelo fato dela ter, no livro citado, colocado o nazismo e comunismo (leia-se stalinismo) no mesmo balaio. Seus escritos, juntamente com outros intelectuais "anti-comunistas" , ajudou os EUA em época de guerra fria fazer uma lavagem cerebral contra os ideiais comunistas e, de fato, funcionou. É só ver essa esquerda domesticada que temos hoje.

David Emanuel disse...

De fato, o conceito de "totalitarismo" dela é uma excrescência teórica que visa apenas normalizar o liberalismo, igualando nazismo a comunismo e esse ao estalinismo, além de ser um conceito que não explica nada. Além disso, nunca podemos nos esquecer que ela apoiou a segregação racial nos EUA e teve financiamento do governo estadunidense - alguns dizem da CIA- para divulgar suas obras. A própria matriz de seu pensamento vem de um notável nazista, Heidegger, seu amante e ex-professor.

Túlio disse...

https://traduagindo.com/2019/08/04/o-racismo-de-hannah-arendt/

SF disse...

***
Já tinha visto este filme. Mais pelo fato de ela ter sido amante de Heidegger, do que por sua filosofia.
***
Estava interessado no pensamento de Heidegger devido a tradução de Maria Sá C. Schuback que traduziu dasein como "presença", o que coincide com meu entendimento de ser enquanto presença.
***
Mas José Martin é hermético e péssimo escritor.
Seu texto é eivado de erudição e fenomenologia. Um movimento filosófico criado, pasmem, por um judeu - Husserl. Que ele demitiu de pronto quando começaram as perseguições aos judeus.
***
Dele ficou a noção de que o ser se temporaliza, que se é lançado na existência sem manual de como é isso (sendo humano, óbvio) e que esse ser (presença) se angustia diante da finitude.
Todo arrodeio filosófico do cara pode ser resumido na frase "ser é ser-para-a-morte".
*
Coisa de alemão juntar palavras para criar um conceito.
***
Epistemologia e ontologia são saberes pouco interessantes e há quem pense que eles não deveriam nem existir.
Mas, vejo que com ei-ai e mecatrônica serão as únicas possibilidades humanas inatingíveis para a tecnologia.
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Na quarentena a que fui submetido por estar com covide, li a primeira parte de Ser e Nada.
Este sim um livro legível.
Sartre é bom escritor e já chega destruindo Heidegger ao traduzir dasein como "natureza humana".
Isso me ganhou.
Isso e o capítulo Má-fé.
Se ele escrevesse só este capítulo sua vida já teria valido a pena.
***
O filme mostra o estado sendo estado e a sua justiça sendo justiça de estado.
Se este povo lesse Má-fé de Sartre não se dariam ao ridículo da encenação de julgamento.
Ser-para-o-outro é ouvir passos no corredor quando estamos olhando pelo buraco da fechadura.(Sartre é brilhante!)
Por isso os circunlóquios e até a presença de Hannah (ô nome cheio de agás) para dar algum sentido ao sem sentido.
*
"Que fez esta mulher"?
"Foi pega em adultério e nossa lei manda apedrejá-la".
Enquanto escrevia na areia, disse "aquele que nunca pecou que atire a primeira pedra".
Nenhum atirou...
***

celsolungaretti disse...

O nazismo, o comunismo e a guerra fria do século 20 não existem mais, então a posição da Arendt com relação a eles é uma mera curiosidade histórica.

Mas, o sionismo israelense está pior do que nunca e, quando tantos judeus conscientes se omitem diante das monstruosidades cometidas por Netanyahu e sua gang, faz todo sentido reverenciarmos a Arendt por não ter compactuado com esse ato de pirataria explícita, seguida de um julgamento de cartas marcadas e uma execução que jamais poderia emanar de um tribunal que endossou um sequestro de pessoa num país soberano.

Há mais de meio século eu decidi fazer História ao invés de escrever sobre a História. Então, as lutas que me interessam são sempre as atuais. E, em 2024, é importante atirarmos na cara dos carniceiros que transformaram Gaza num novo Gueto de Varsóvia o exemplo de uma judia que não se prostrou ao retrocesso civilizatório que eles encarnam.

Anônimo disse...

"Muitos têm críticas duras a Arendt pelo fato dela ter, no livro citado, colocado o nazismo e comunismo (leia-se stalinismo) no mesmo balaio. Seus escritos, juntamente com outros "
tem toda razão...nao tem como estar mais certo. Comunismo é infinitamente pior....

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