"Minha dor é perceber que apesar de termos feito tudo o
que fizemos, ainda somos os mesmos e vivemos
como os nossos pais..." (Belchior)
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Faz-se necessária a proposição de linhas gerais de um Manifesto Emancipacionista, como reflexão sobre a necessidade urgente de superação das muitas categorias capitalistas desenvolvidas desde 3 mil anos. Tomamos inicialmente, como exemplo, o instituto jurídico da propriedade.
Quando se institui o instituto jurídico da propriedade (mais uma abstração tornada real), está-se, implicitamente, derrogando a força do instituto natural e justo da posse necessária ao uso individual e coletivo. É para isto que o instituto jurídico da propriedade foi inventado; ele é um construto da forma-valor e carrega em si a negatividade daquilo que lhe deu forma. Dá forma jurídica à coerção do poder do Estado, à detenção da acumulação do capital em seu conteúdo social segregacionista.
As pessoas geralmente defendem a propriedade porque a confundem com o direito de posse, que no direito burguês é inferior ao direito de propriedade. Com a propriedade se derroga, em maior parte, a posse.
O que as pessoas destituídas de qualquer propriedade mais almejam é um dia serem proprietárias (como de uma casa para morar, p. ex.); então, defendem, sem o perceber, aquilo que não passa da resultante jurídica da acumulação capitalista da riqueza abstrata que a oprime. Mais uma vez a inconsciência da sociedade sobre seu modo social de ser fica evidenciada.
Na verdade, caso fosse instituída a soberania do direito de posse individual para uso das casas e, assim, se assegurasse o direito à moradia (hoje negado para grande parte da população), todos aqueles beneficiados com a partilha das moradias veriam a posse como um direito natural e o direito à propriedade como abstração jurídica injusta.
O direito de propriedade, que permite a acumulação individual de muitos bens transformados em mercadorias (centenas de casas nas mãos de único proprietário, para seguir no exemplo citado), nada mais é do que um grande acúmulo de horas de trabalho abstrato (valor) que foram subtraídas dos trabalhadores por meio da extração de mais-valia, permitindo tal acúmulo.
A existência do direito de propriedade se constitui num exemplo claro do direito legislado como negação da realização do ideal de justiça ao qual, teoricamente, se propõe. A propriedade é a expressão do direito como a antítese da justiça. Não faz muito tempo que a legislação permitia a propriedade de um ser humano, trazido acorrentado da África e aqui submetido à escravidão.
Mas, a questão não se cinge apenas ao combate ao direito de propriedade. Ele não é causa, mas efeito. Da mesma forma, a questão não se cinge apenas à transferência da extração de mais-valia das mãos privadas e acumulação de propriedade nas mãos do Estado. A extração de mais-valia é efeito da forma-valor e não a causa da dita cuja, embora se constitua no seu mecanismo funcional via trabalho abstrato, este sim a sua substância primária.
Não basta transferir a propriedade e a extração de mais-valia das mãos privadas para as mãos estatais como quis o marxismo do movimento operário, exotérico. Este foi apenas o momento da luta pela afirmação e da busca de direitos dentro da imanência capitalista no seu processo de modernização.
A questão que se coloca agora é a superação da forma-valor como modo de mediação social, pois só assim estaremos erradicando o mal pela raiz.
Com a forma-valor se instalou um critério fetichista de relação social, sem sujeito personalíssimo, criando-se o sujeito automático (Marx) decorrente de uma lógica que tomou conta do seu criador (os seres humanos) e que se constitui numa estrutura por trás das costas dos envolvidos, os quais, inconscientemente, atuam como meras peças de uma engrenagem autofágica que transforma energia humana concreta numa abstração real (o dinheiro, expressão materializada da forma-valor).
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AGORA O PAPO É OUTRO
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Pela primeira vez no curso da evolução histórica do capitalismo atingimos o estágio no qual se faz inadiável a discussão sobre a inviabilidade do capital como modo de mediação social, juntamente com todas as categorias que lhe dão suporte.
Antes, o capitalismo vivia a sua fase de ascensão, ainda que imposta sobre um rastro de sangue e desigualdade. A questão que se coloca agora é a sua, cada vez mais evidente, incapacidade de prover a vida social.
Hoje em dia, quem (re)lê o Manifesto Comunista de Marx e Engels (1848) constata sua importância histórica elucidativa de um momento, mas, também, uma falta de sintonia com os tempos atuais. Aquele documento buscava a defesa de direitos para os trabalhadores dentro da imanência capitalista; eram possíveis de ser obtidos, tanto que muitos deles seriam conquistados (principalmente nas nações capitalistas desenvolvidas).
Era o que dava para ser feito num momento em que a industrialização ainda tinha muito terreno a percorrer e se queria apenas combater a brutal exploração perpetrada pelo capital, mas não negá-lo como forma de mediação social pseudo-libertadora.
A extração de mais-valia absoluta (e não mais-valia relativa, como agora ocorre) era a tônica, sendo os trabalhadores submetidos a jornadas massacrantes de trabalho, frequentemente sob condições insalubres. A defesa dos direitos trabalhistas estava na pauta (como hoje volta a estar, mas sem chances de sucesso).
Assim, a questão se cingia à luta de classes, cujo foco seria a vitória da classe trabalhadora sobre a classe capitalista, como se isso representasse o fim do capitalismo; e se supunha que o Estado proletário, mesmo sem uma efetiva superação do capitalismo (cujo controle teria apenas trocado de mãos), conseguisse promover a igualdade social.
Reivindicar o fim da mais-valia subtraída aos trabalhadores pelo ente privado não significava, entretanto, abolir a produção de mercadorias, que implica, necessariamente, na sua extração. A Coréia do norte é capitalista de estado!
Segundo o marxismo exotérico, a saída para tal impasse seria a entronização de um Estado proletário, no qual se continuasse produzindo mercadorias e extraindo mais valia, o que, contudo, passaria a ser feito em benefício do próprio trabalhador. Uma interpretação incongruente das teses de Marx, tornada possível por sua (então) falta de clareza sobre a dinâmica autotélica da forma-valor.
Sob o Estado proletário, a relação social sob a forma-valor seria tão-somente ontologizada, mudando-se a forma político-jurídica de sua ocorrência.
Mais tarde Marx chegaria à essência da questão, compreendendo que não bastava reivindicar direitos, sendo necessário abolir a causa da opressão na sua base constitutiva ontológica. Os elementos do Marx exotérico da modernização capitalista davam lugar ao Marx esotérico da análise da natureza destrutiva e autodestrutiva da forma-valor que veio a seguir, embora ignorado pelos seus pretensos seguidores do século 20 (e, por muitos, até hoje!).
Em O capital (sua obra definitiva, escrita de dez anos depois da publicação do Manifesto Comunista) é que se delineia com força a crítica da economia politica, como síntese daquilo que fora objeto dos seus estudos nos Grundrisse, escritos em cuja leitura se compreende melhor o antagonismo de conteúdo entre o Marx exotérico, reivindicador de direitos dentro da imanência capitalista, e o Marx esotérico, defensor da necessidade de superação do próprio capitalismo e de todas as suas categorias e construtos institucionais, sem a qual não se vai a lugar nenhum.
Agora chegamos a uma situação-limite, na qual se faz necessária a elaboração de um Manifesto Emancipacionista, como continuidade histórica do Manifesto Comunista.
A questão que se coloca atualmente não é mais a luta por direitos (que não virão!), em torno dos quais se digladiam situação e oposição políticas num hipócrita embate no qual tudo se resume à assunção ao poder político-burguês e não à sua superação como tal.
Ainda que isto esteja se tornando uma obviedade, ainda não foram delineados os alicerces fundamentais de uma superação que possa construir a nova sociedade sobre os escombros sociais e ecológicos da lógica capitalista. Tento aqui fazê-lo em linhas gerais, mesmo correndo o risco de ser incompreendido, tal é o grau de introjeção mental que o fetichismo da mercadoria atingiu, impedindo-nos de pensar fora da caixa.
Entretanto, não me furto à indicação de alguns princípios indispensáveis à sua consecução:
— uma administração de coisas (ao invés de administração de mercadorias), que nos permita retomarmos a razão sensível, ao invés de sermos teleguiados por uma lógica fetichista;
— a definição do direito à posse individual (para coisas de detenção pessoal), coletiva (para coisas coletivas) e públicas (para bens de uso público), com a extinção do direito de propriedade;
— instituição do universalismo mundial (com a preservação das culturas regionais), no qual as carências de uma região sejam supridas pela abundância de outras, e vice-versa;
— a supressão do Estado e de todos os seus poderes, mantenedores que são de uma relação social (capitalista) tornada obsoleta;
— a decretação do fim do trabalho abstrato, passando todos os seus empregados e desempregados à condição de ativos contribuintes sociais;
— a instituição de práticas ecológicas saudáveis, sem levarmos em conta o restritivo conceito mercantil de viabilidade econômica (a produção de bens e serviços sendo determinada por critérios de necessidade e não mais dos lucros, que estarão abolidos);
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Por Dalton Rosado |
— a elaboração de códigos de direitos civis e penais que sejam consentâneos com a realização do ideal de justiça segundo critérios de isonomia e de equidade;
— de todos, segundo a sua capacidade, para todos, segundo sua necessidade.