encontro com a ditadura – 15
A propaganda enganosa martelada incessantemente pelas viúvas da ditadura bate muito na tecla de que os militantes da luta armada teríamos utilizado o dinheiro expropriado dos bancos para vivermos como burgueses, entre luxos e orgias. Nada mais falso.
Eu militei na Vanguarda Popular Revolucionária entre abril/1969 e abril/1970, quando fui preso pelo DOI-Codi/RJ, sofri torturas que me deixaram à beira de um enfarte aos 19 anos de idade e me causaram uma lesão permanente.
Nesse ano em que me beneficiei do produto dos assaltos praticados pelas organizações de resistência à tirania implantada pelos usurpadores do poder, como foi minha vida de nababo?
Na verdade, recebia o estritamente necessário para subsistir e manter a minha fachada de vendedor autônomo.
No início, fui obrigado a me abrigar em locais precaríssimos, como o porão de um cortiço na rua Tupi, próximo da atual estação do metrô Marechal Deodoro, na capital paulistana. Era só o que eu conseguia pagar com o produto dos assaltos.
Cada quarto era um cubículo mal ventilado. Enxames de pernilongos me atacavam durante o sono. Afastava-os com espirais que mantinha acesos durante a noite inteira... e me faziam sufocar.
O que mudou quando meus companheiros fizeram o maior assalto da esquerda brasileira em todos os tempos, apossando-se dos dólares da corrupção política guardados no cofre da ex-amante do governador Adhemar de Barros? Quase nada.
Era dinheiro para a revolução, não para gastos pessoais. Apesar de integrar o comando estadual de São Paulo e depois exercer papel semelhante no Rio de Janeiro, continuei levando existência das mais austeras.
Meu último abrigo foi o quarto alugado no amplo apartamento de uma velha senhora do Rio Comprido (RJ). Fazia tanto calor que eu era obrigado a dormir despido sobre o chão de ladrilhos, que amanhecia ensopado de suor.
Quando tinha de abandonar às pressas um desses abrigos, todos os meus bens cabiam numa mala de médio porte. Vinham-me à lembrança os versos de Brecht, "íamos pela luta de classes, desesperados/ trocando mais de países que de sapatos".
Havia, sim, um dinheiro extra, que equivaleria a uns R$ 10 mil atuais. Mas, tratava-se do fundo a que recorreríamos caso ficássemos descontatados e tivéssemos de sobreviver ou deixar o País por nossos próprios meios, sem ajuda dos companheiros que já estariam presos ou mortos.
Nenhum de nós gastava essa grana, era ponto de honra. Os fundos de reserva acabaram chegando, intactos, às garras dos rapinantes que nos prendiam e matavam. Nunca prestaram conta disso, nem dos carros, das armas e até das peças de vestuário que nos tomaram.
E, mesmo que tivéssemos dinheiro para esbanjar, como o gastaríamos? Éramos procurados no país inteiro, com nossos nomes e fotos expostos em cartazes falaciosos.
Eu, que nunca fizera mal a uma mosca, aparecia nesses pôsteres como “terrorista assassino, foragido depois de roubar e assassinar vários pais de família”. O Estado usava o dinheiro do contribuinte para me fazer acusações falsas e difamatórias!
Para manter as aparências, éramos obrigados a sair cedo e voltar no fim do dia. Os contatos com companheiros eram restritos ao tempo estritamente necessário para discutirmos os encaminhamentos em pauta; dificilmente chegavam a uma hora.
Sobravam longos intervalos, com nada para fazermos e a obrigação de ficarmos longe de situações perigosas. Tínhamos de procurar locais discretos, tentando passar despercebidos... por horas a fio. Sujeitos a, em qualquer momento, sermos surpreendidos por uma batida policial.
Vida amorosa? Dificílima. Cada momento que passássemos com uma companheira era um momento em que a estaríamos colocando em perigo. Ninguém corria o risco de ir transar em hotéis, sempre visados (e nossa documentação era das mais precárias, passei uns oito meses portando apenas um título eleitoral falsificado). E as facilidades atuais, como motéis, quase inexistiam.
Aos 18/19 anos, senti imensa atração por duas aliadas, uma em São Paulo e outra, meses mais tarde, no Rio de Janeiro. Com ambas, o sentimento era recíproco. E nos dois casos mal passamos dos beijos apaixonados com que nos cumprimentávamos e despedíamos. Qualquer coisa além disso seria perigosa demais.
Enfim, esta é a vida que levávamos, acordando a cada manhã sem sabermos se estaríamos vivos à noite, passando por freqüentes sustos e perigos, recebendo amiúde a notícia da perda de companheiros queridos (eu até relutava em abrir os jornais, tantas eram as vezes que só me traziam amargura).
Sobreviver alguns meses era digno de admiração. Ao completar um ano nessa vida, eu já me considerava (e era considerado pelos companheiros) um veterano. Caí logo em seguida.
Dos tolos que saem repetindo essas ignomínias trombeteadas dia e noite pela extrema-direita, bem poucos seriam capazes de encarar a barra que encaramos, não pelas motivações ridículas que nos atribuem, mas por não aguentávamos viver, e ver nosso povo vivendo, debaixo das botas dos tiranos! (por Celso Lungaretti)
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