quinta-feira, 16 de abril de 2020

HÁ 50 ANOS CONHECI O INFERNO EM VIDA

Destruí as fotos, mas acharam esta na escola 
Foi no dia 16 de abril de 1970 – também uma 5ª feira – que a primeira fase da minha vida terminou da pior maneira possível.

Eu tinha 19 anos e comandava o setor de Inteligência da Vanguarda Popular Revolucionária no Rio de Janeiro. Na véspera, até lá pelas 22h, 22h30, estivera tratando de vários assuntos com o principal aliado da Organização naquela cidade que ainda não havia deixado de ser maravilhosa.

Era um quarentão afável, muito bem relacionado, que sempre tinha alguém para indicar quando carecíamos de uma forcinha de pessoa com vida legal. 

Até quando precisamos contatar com a máxima urgência nosso comandante nacional Mário Japa, depois de ele ter sido trocado pelo cônsul japonês em São Paulo, o doutor  tirou da cartola uma aeromoça disposta a correr o risco de tentar falar com ele lá fora, onde certamente estaria sendo vigiado pela polícia local e por agentes brasileiros e/ou da CIA. E não é que ela conseguiu, trazendo-nos na volta uma informação que era vital para nossos planos!

Ao mesmo tempo, o doutor era uma das nossas maiores vulnerabilidades. Sabíamos muito bem que quem conhecia tanta gente contrária ao regime tinha enorme chance de acabar delatado. Mas, tanta falta ele nos faria que nunca tomamos a decisão de dispensar sua cooperação para preservar a ele e a nós. Deveríamos tê-lo feito.

Ao nos separarmos, ele marcou novo ponto comigo para as 6h45 da manhã seguinte, na praça Saens Peña, Tijuca. Queria apresentar-me trabalhadores que poderiam prestar-nos algum tipo de auxílio, mas só dispunham desse horário para um rápido contato, antes de irem pegar no batente.

Cheguei sonolento e desatento, pois não pressentia perigo no encontro com o doutor, depois de ter estado com ele até umas sete horas antes. 

E nem sequer levava a cápsula de cianureto entre os dentes, pois alguns dias antes me haviam avisado que ela se revelara inútil. Os estudantes de química que a forneceram para nós não souberam confeccioná-la corretamente.

Entrei na padaria combinada, pedi um café e uns cinco agentes do DOI-Codi desabaram sobre mim, não me dando a mínima chance de sacar o .38 que trazia na cintura. Meu pior pesadelo virara realidade.  

Não vou contar de novo tudo que aconteceu comigo a partir daí, as torturas, a ocasião em que estive próximo de enfartar, o oficial entediado que me estimulou a tentar a fuga para poder balear-me pelas costas, o nefasto acaso que me fez carregar durante 34 anos uma culpa que não me pertencia. Tudo isso está no meu livro Náufrago da Utopia e num monte de entrevistas que dei ao longo destes 50 anos.

Nem quero alongar-me neste post, pois a tragédia maior pela qual os brasileiros estamos passando torna, por comparação, irrisórios meus dramas pessoais.

Só direi que, paradoxalmente, a queda me manteve vivo: ao ser levado à auditoria do Exército num dia qualquer do semestre seguinte, o tenente que comandava a escolta me mostrou um jornal que mancheteava a morte de militantes do Movimento Revolucionário Tiradentes resistindo à prisão e comentou: "A sua sorte é não estar mais na rua, se não faria companhia a eles". 

Confirmou as minhas suspeitas de que a ordem passara a ser a de, dali em diante, não deixarem nenhum de nós vivo para contar a história.. 

Também serviu para eu me tornar intransigentemente avesso a todas e quaisquer ditaduras. Antes, ainda admitia que não pudéssemos prescindir da chamada ditadura do proletariado, desde que ela durasse o estritamente necessário e fosse preparando o terreno para sua extinção. 

Depois de conhecer os extremos a que podia chegar a desumanidade do homem para com o homem, passei a considerar que nada, absolutamente nada, justificava submeterem-se seres humanos a tais horrores. Nem por um único dia.  

Outras conclusões políticas que extraí dos acontecimentos de 1970 e da minha trajetória posterior estão bem sintetizadas neste artigo de dois dias atrás, então não choverei no molhado.

E, se mantenho até hoje a convicção de que contribuir para a superação do capitalismo é o objetivo máximo da minha existência, isto tem tudo a ver com haver descido aos infernos e sobrevivido, enquanto tantos valorosos companheiros ficaram pelo caminho. 

O compromisso que assumi com eles em vida não deixou de existir quando morreram. Fiz sempre tudo que pude para tornar conhecido o seu sacrifício e para levar à vitória os ideais em nome dos quais entregaram a vida.  (por Celso Lungaretti)  

2 comentários:

Anônimo disse...

Oi Celso, tudo bem com você?!
Primeiramente parabéns, e que se mantenha com saúde
e vitalidade, para poder contar sobre uma parte da
história, que se confunde com suas experiências,
como um diferencial, Você é parte dela, ainda que
sem visibilidade midiática, não é verdade?!
Achei que a solução de veneno fosse uma lenda,
ou algo relacionado a espionagem internacional,
tão usado pelos cineastas responsáveis pelos
filmes de espionagem. Em 007 Die Another Day,
Skyfall, a tal capsula sempre é citada.
Que venham mais primaveras, mais saúde e
produtividade, pra poder escrever mais crônicas.
Abraço do Hebert.

celsolungaretti disse...

Bem, eu recebi a minha e umas três semanas depois não me lembro quem me informou que o primeiro companheiro que a utilizou só tivera vômitos e diarreia, porque os estudantes que a haviam confeccionado colocaram apenas cianureto, mas havia necessidade de outros elementos químicos.

Era bem dura, fiquei em dúvida se uma mordida a romperia. Mas, tive de aceitar a "garantia do fabricante", já que não havia como testá-la sem desperdiçar aquela capsula ou, pior ainda, morrer.

Não creio que a VPR tivesse ido atrás de algo assim. O mais provável é que surgiram alguns estudantes de química querendo nos ajudar e, conversa vai, conversa vem, deram-lhes essa tarefa.

Se a estrovenga funcionasse, eu estaria com ela entre os dentes de trás e provavelmente morderia por puro reflexo, face à truculência com que aqueles agentes me abordaram.

Esquisito pensar em algo assim, não? Certa vez eu estava conversando com minha filha mais velha e contei como fiquei abalado quando a mãe dela me abandonou.

Sua resposta me desconcertou. Referindo-se à minha caçula, fruto de uma união posterior, ela disse que, se não tivesse havido a separação, a menor não teria nascido.

E se eu tivesse morrido em 1970, nenhuma das duas nasceria. Hoje, elas sendo uma realidade tão concreta e tão querida, a simples menção a tal possibilidade já me chocou...

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