No pior momento da ditadura de 1965/85, quando os militares levaram o terrorismo de estado às últimas consequências, a esquerda brasileira respondeu com as três principais modalidades de luta armada que estavam sendo praticadas em situações semelhantes no mundo inteiro:
Os historiadores e jornalistas lançaram depois muitos livros sobre as duas primeiras, enquanto a terceira foi abordada apenas en passant, como parte da história de Carlos Lamarca, o capitão do Exército que se tornou comandante revolucionário.
Foi para preencher esta lacuna que o veterano jornalista Celso Luiz Pinho escreveu 1970, a guerra no Vale do Ribeira (Editora Gregory, 2016, 256 p.), seu projeto mais ambicioso, após ter esmiuçado outra revolução esquecida, a revolta paulista de 1924; os combates na frente Norte durante a Revolução Constitucionalista de 1932; e a trajetória de um personagem histórico dos mais controversos, o tenente João Cabanas. Há uma nítida linha de coerência perpassando a escolha destes quatro temas.
Ao mostrar como um punhado de aprendizes de guerrilheiros logrou escapar (com baixas) de um cerco de milhares de militares, os quais não hesitaram sequer em efetuar bombardeios com napalm que poderiam atingir a população civil, Pinho fez uma espécie de passo-a-passo dos acontecimentos, baseado em farta coleta de documentos e publicações e numa série impressionante de entrevistas, realizadas com personagens dos dois lados e com moradores da região. Afirma na introdução que se empenhou a fundo para evitar que seu texto fosse contaminado por ideologias e tendenciosidades.
Esta postura imparcial lhe permitiu lançar novas e poderosas luzes sobre dois assuntos muito polêmicos: como e por que foi executado o refém que os fugitivos tomaram; e a quem cabe, realmente, a responsabilidade pela delação da escola de guerrilha de Lamarca, imputada durante 35 anos a um bode expiatório, sem que a comprovação de sua inocência no finzinho de 2004 viesse acompanhada por um desvendamento total do episódio.
Foi sobre tudo isto que conversei com Pinho. Eis a entrevista:
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CELSO LUNGARETTI – Por que escrever sobre os acontecimentos de 1970 no Vale do
Ribeira quase meio século depois?
– a guerrilha urbana, com as expropriações de bancos, a tomada de emissora e colocação de mensagens de protesto no ar, o sequestro de diplomatas para trocá-los por presos políticos, o justiçamento dos piores inimigos, etc., influenciada por movimentos revolucionários da América do Sul;
– a guerrilha rural enraizada na população (Araguaia), com o objetivo de evoluir para exército popular, conforme as lições maoístas; e
– a guerrilha de movimentação constante e impacto principalmente propagandístico (provar que as tropas regulares poderiam ser derrotadas), inspirada na experiência cubana.As três chegaram a conquistar êxitos expressivos, mas acabaram sendo esmagadas por forças extremamente superiores em efetivos e recursos, que travaram uma guerra suja sem limites de nenhuma espécie e foram beneficiadas pela euforia da população com o efêmero desafogo econômico iniciado em 1970, após um longo período de vacas magras.
Os historiadores e jornalistas lançaram depois muitos livros sobre as duas primeiras, enquanto a terceira foi abordada apenas en passant, como parte da história de Carlos Lamarca, o capitão do Exército que se tornou comandante revolucionário.
Pinho não evitou temas melindrosos |
Foi para preencher esta lacuna que o veterano jornalista Celso Luiz Pinho escreveu 1970, a guerra no Vale do Ribeira (Editora Gregory, 2016, 256 p.), seu projeto mais ambicioso, após ter esmiuçado outra revolução esquecida, a revolta paulista de 1924; os combates na frente Norte durante a Revolução Constitucionalista de 1932; e a trajetória de um personagem histórico dos mais controversos, o tenente João Cabanas. Há uma nítida linha de coerência perpassando a escolha destes quatro temas.
Ao mostrar como um punhado de aprendizes de guerrilheiros logrou escapar (com baixas) de um cerco de milhares de militares, os quais não hesitaram sequer em efetuar bombardeios com napalm que poderiam atingir a população civil, Pinho fez uma espécie de passo-a-passo dos acontecimentos, baseado em farta coleta de documentos e publicações e numa série impressionante de entrevistas, realizadas com personagens dos dois lados e com moradores da região. Afirma na introdução que se empenhou a fundo para evitar que seu texto fosse contaminado por ideologias e tendenciosidades.
Esta postura imparcial lhe permitiu lançar novas e poderosas luzes sobre dois assuntos muito polêmicos: como e por que foi executado o refém que os fugitivos tomaram; e a quem cabe, realmente, a responsabilidade pela delação da escola de guerrilha de Lamarca, imputada durante 35 anos a um bode expiatório, sem que a comprovação de sua inocência no finzinho de 2004 viesse acompanhada por um desvendamento total do episódio.
Foi sobre tudo isto que conversei com Pinho. Eis a entrevista:
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Região extensa e mata fechada facilitaram a fuga |
CELSO LUIZ PINHO – Foi um fato marcante na história do Brasil e, em minha
opinião, até hoje continua mal explicado. Naquela época, as pessoas ouviam
falar de que algo, e algo grande, estava ocorrendo na região, mas tinham poucas
informações. Ainda agora é assim. Para se ter uma ideia, eu mesmo, quando
prestei o serviço militar obrigatório em cidade a mais de cem quilômetros da
Capital, poucos anos depois dos fatos ocorridos no Vale do Ribeira, recebi
pouquíssimas informações a respeito e estas se restringiam basicamente ao
seguinte: o Lamarca fugiu de Registro levando um caminhão cheio de fuzis do
Exército. A coisa não foi bem assim.
Outros escritores já divagaram sobre o mesmo assunto. Em que seu livro é diferente?
– É verdade. O Elio Gaspari, o Jacob Goerender, o Emiliano Oldack
e outros mais também escreveram sobre a guerrilha do Vale do Ribeira e foram
escritos muito bons que, a bem da verdade, me serviram como fontes de consulta.
Todavia, deram apenas uma pincelada no assunto. Eu procurei oferecer um enfoque
mais detalhado, para que o leitor tivesse uma visão abrangente dos fatos.
– Reuni uma série de documentos, matérias jornalísticas,
trechos de processos judiciais etc. Também conversei com algumas pessoas, dos
dois lados, que participaram das operações. Mas, o melhor mesmo foi ter viajado
ao teatro de operações e entrevistado diversos moradores de Jacupiranga e
Cajati e ouvido deles suas lembranças ou informações orais transmitidas por
seus parentes.
Em sua opinião, qual o trecho mais interessante do livro?
– Bem, as operações no Vale do Ribeira foram o ápice do
entrelaçamento de diversos outros fatos anteriores que ocorreram em São Paulo e
no antigo estado da Guanabara e, parece uma contradição, mas a meu ver, o caso
do desvio dos fuzis do 4º Regimento de Infantaria é o assunto que mais me chama
a atenção.
E o que tem a ver o furto das armas no 4º RI com a Guerrilha no Vale do Ribeira?
– Em primeiro momento, parece não ter nada em comum os dois
fatos. No entanto, não dá para se falar em Guerrilha no Vale do Ribeira sem
falar no Lamarca e, não dá para falar em Lamarca sem lembrar o fato ocorrido no
quartel do Exército em Osasco. E olha que as duas cidades estão separadas por
mais de duzentos quilômetros.
– Veja, ninguém ignora que em 1964 houve a queda do presidente
Goulart e, em decorrência, o governo do país ficou em mão dos militares. Logo
após o golpe, vieram os Atos Institucionais e muitas pessoas, dos mais diversos
ramos de atividade, foram cassadas. A grosso modo, podemos dizer essas pessoas
se aglutinaram em diversos grupos e queriam a volta do estado de direito. Esses
grupos, em sua maioria, entenderam ser necessário lutar por seus interesses não
apenas com palavras, pois que estas, talvez a longo prazo, alcançassem os
objetivos propostos, contudo havia um imediatismo.
Nem sempre as flores, e aqui podemos trocar flores por palavras, vencem os canhões, como dizia o Vandré. Assim, para formar pessoal e fazer frente à ditadura instalada, era preciso gente com alguma especialização. Via de regra, essa especialização era feita fora do país, porém havia o inconveniente, com todos os perigos e custos, em mandar pessoas para fora e trazê-las de volta em segurança, mesmo porque, simplesmente, não se pegava um avião e ia para Cuba. A coisa era mais complexa e exigia até viagens para a Europa para, só depois, ir para o destino final. Então, a ideia primordial era formar combatentes no próprio território nacional.
Esse pessoal, uma vez formado, seria utilizado em diversas áreas a serem criadas. É importante lembrar que alguns dos grupos acreditavam que a derrubada do governo militar deveria começar pelo campo, outros, no entanto, achavam que as ações urbanas trariam melhores resultados. De qualquer modo, seja para o campo ou para a cidade, o combatente deveria ter uma preparação básica.
Nem sempre as flores, e aqui podemos trocar flores por palavras, vencem os canhões, como dizia o Vandré. Assim, para formar pessoal e fazer frente à ditadura instalada, era preciso gente com alguma especialização. Via de regra, essa especialização era feita fora do país, porém havia o inconveniente, com todos os perigos e custos, em mandar pessoas para fora e trazê-las de volta em segurança, mesmo porque, simplesmente, não se pegava um avião e ia para Cuba. A coisa era mais complexa e exigia até viagens para a Europa para, só depois, ir para o destino final. Então, a ideia primordial era formar combatentes no próprio território nacional.
Esse pessoal, uma vez formado, seria utilizado em diversas áreas a serem criadas. É importante lembrar que alguns dos grupos acreditavam que a derrubada do governo militar deveria começar pelo campo, outros, no entanto, achavam que as ações urbanas trariam melhores resultados. De qualquer modo, seja para o campo ou para a cidade, o combatente deveria ter uma preparação básica.
Mas antes já houve ações de guerrilha no Brasil.
– Com certeza, porém não se pode dizer que foram sucessos, já
que pontuais. Haja vista o desastre de Três Passos e Caparaó, em que podemos
observar uma espécie de improviso de ações, sem uma coordenação maior.
– Bom, ele tinha lá suas ideias e resolveu colocá-las em
prática. E uma das formas foi justamente a instalação da uma escola, talvez a
primeira, de formação de combatentes revolucionários em território nacional nos
moldes cubanos. Pelo que se entende, a
VPR achou ser ele, na época, a pessoa melhor qualificada para os objetivos
pretendidos. Desta forma, o campo de treinamento foi instalado no Vale do
Ribeira.
Em Registro?
– Acho que já é hora de se desfazer esse engano. Na verdade,
o campo de treinamento foi instalado em Jacupiranga e não em Registro. Para ser
mais exato, foi no distrito de Cajati, que hoje é uma cidade autônoma. Registro
foi apenas um ponto de referência, já que, na região, era a única cidade que
tinha alguma infraestrutura para abrigar tropas e equipamentos militares em
larga escala. Dai o motivo das ações receberem o nome de Operação Registro.
E por que naquela região?
– Vários fatores contribuíram para a escolha de Jacupiranga,
entre eles, podemos dizer a mata fechada, ideal para se atingir as metas
propostas, e a forte influência política de pessoas importantes da região.
– Acredito que não. Apenas uma única turma foi formada,
melhor dizendo, parcialmente formada. A existência da escola de guerrilha, um
segredo guardado a sete chaves, vazou, culminando com sua invasão pelas forças
militares e, como se sabe, as duas bases que formavam o núcleo foram
abandonadas por Lamarca e os demais.
Durante a retirada, quatro dos alunos, pessoas já experientes, foram presas e mais uma série de coisas ocorreram, mas um fato que não se pode negar é a forma sensacional com que Lamarca e mais alguns saíram da região, apesar dos bombardeios realizados pela FAB.
Durante a retirada, quatro dos alunos, pessoas já experientes, foram presas e mais uma série de coisas ocorreram, mas um fato que não se pode negar é a forma sensacional com que Lamarca e mais alguns saíram da região, apesar dos bombardeios realizados pela FAB.
Como foi esse vazou?
– Talvez seja esse o aspecto mais obscuro do assunto. No
livro, eu explico, ou pelo menos tento explicar. O fato é que, a meu ver,
pessoas inocentes levaram a culpa.
O Jacob Gorender escreveu carta a um grande jornal paulista nesta linha, mas não esclareceu de quem realmente seria a culpa. E você, esclarece?
– Acredito que o meu livro é o que chega mais próximo disto.
Reuni as informações hoje existentes sobre os atos dos personagens que poderiam
ter revelado ao DOI-Codi a localização da escola de guerrilha e interpretei-as
de forma que as peças não só se encaixassem perfeitamente no quebra-cabeças,
como houvesse uma coerência básica com a cronologia dos acontecimentos.
Meu objetivo não foi o de acusar ninguém, até porque se tratava de uma situação-limite e aquelas pessoas estavam sendo submetidas a torturas físicas e psicológicas as mais terríveis. Mas forneço aos leitores elementos suficientes para eles terem uma boa noção do que ocorreu e tirarem suas conclusões, inclusive sobre a participação de cada personagem. Uma coisa é certa: os militares não chegaram ao campo de treinamento através de informações recebidas por bolinha de cristal.
Vingança. E 3 tiros foram pelas costas! |
Meu objetivo não foi o de acusar ninguém, até porque se tratava de uma situação-limite e aquelas pessoas estavam sendo submetidas a torturas físicas e psicológicas as mais terríveis. Mas forneço aos leitores elementos suficientes para eles terem uma boa noção do que ocorreu e tirarem suas conclusões, inclusive sobre a participação de cada personagem. Uma coisa é certa: os militares não chegaram ao campo de treinamento através de informações recebidas por bolinha de cristal.
E quanto aos erros, houve muitos?
– Houve. E de ambas as partes. Na minha modesta opinião, a
VPR errou em adquirir o sítio naquela região, bem próxima a uma estrada de
rodagem e com presença freqüente de caçadores e curiosos. Persistiu no erro ao
reinstalar a escola em uma segunda área muito próxima à primeira, e utilizando
os préstimos da mesma pessoa que, embora simpatizasse, não tinha maior
comprometimento com a Organização.
Outro erro foi a morte do tenente da Força Pública, fato bem explorado pela repressão. Acho que o Lamarca não avaliou a repercussão negativa que causaria, caso fosse descoberta. De qualquer forma, eu vejo que, a partir da fuga do Vale do Ribeira começou o declínio do Lamarca dentro da VPR.
Outro erro foi a morte do tenente da Força Pública, fato bem explorado pela repressão. Acho que o Lamarca não avaliou a repercussão negativa que causaria, caso fosse descoberta. De qualquer forma, eu vejo que, a partir da fuga do Vale do Ribeira começou o declínio do Lamarca dentro da VPR.
Declínio?
– Sim. Dentro da VPR começou um movimento de diminuição de
seu prestígio, tanto que depois de um tempo ele foi para o MR-8, mas sem poder
de comando.
Em sentido mais amplo, podemos dizer que tudo teve origem com a queda do presidente João Goulart. O clima político de hoje lembra os fatos ocorridos após a queda de Jango?
– Pergunta difícil de responder. São dois momentos históricos
com alguma semelhança, mas com grandes diferenças factuais. Atualmente, estamos
sendo governados pelo vice-presidente. Ou seja, a presidente de direito (ou
presidenta, como ela prefere ser chamada) está afastada temporariamente e corre
o sério risco de não mais retornar.
Isso, é claro, faz com que surjam pessoas descontentes. Mas, creio que não haverá fatos que ensejem ações radicais, mesmo porque tenho notado uma grande diferença entre a esquerda de meio século atrás e a esquerda de hoje.
Também no Vale do Ribeira utilizou-se o napalm |
Isso, é claro, faz com que surjam pessoas descontentes. Mas, creio que não haverá fatos que ensejem ações radicais, mesmo porque tenho notado uma grande diferença entre a esquerda de meio século atrás e a esquerda de hoje.
Que diferença?
– Naquele tempo, era um terrível pecado qualquer pessoa se
dizer ideologicamente de esquerda. Na época, era impensável uma pessoa usar
na lapela um botão ou broche com a foice e o martelo ou mesmo uma estrela
vermelha, embora muitas delas, sob grandes riscos pessoais, tenham vestido a
camisa.
Hoje, são outros tempos. A esquerda está abertamente integrada na sociedade e já não há a necessidade de, digamos assim, um mascaramento, porém eu acho que os jovens de meio século atrás eram mais resolutos. Talvez resultado da forte influência dos acontecimentos na França daquele tempo.
Hoje, são outros tempos. A esquerda está abertamente integrada na sociedade e já não há a necessidade de, digamos assim, um mascaramento, porém eu acho que os jovens de meio século atrás eram mais resolutos. Talvez resultado da forte influência dos acontecimentos na França daquele tempo.
Quer dizer que a esquerda de hoje está mais fraca?
– Eu não diria mais fraca, todavia eu diria que a juventude
de hoje está um tanto quanto desiludida com os rumos tomados. No livro eu cito
uma frase de um ex-guerrilheiro que esteve no Vale do Ribeira, o Sobrosa,
dizendo assim “aqueles que querem mudar uma sociedade, não podem agir como a
sociedade que querem mudar”.
O que nós vemos agora? Sem generalizar, uma grande
quantidade de pessoas públicas, com formação de esquerda, agindo exatamente
como agiram as que lhes antecederam. É por isso que ouvimos das pessoas do povo
aquela famosa frase: “sai um, entra outro e tudo continua do mesmo jeito”.
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