O GOVERNO LULA ESCOLHE O SEU LADO: O DE BRILHANTE USTRA (artigo de 23/10/2008)
Se ainda havia alguma dúvida quanto à posição do Governo Lula diante da ditadura de 1964/85 e as atrocidades por ela cometidas, agora deixou de existir: coloca-se mesmo ao lado dos totalitários.
Quem fala por Lula é o ministro das Minas e Energia Edison Lobão, que acaba de fazer rasgados elogios ao período de arbítrio, questionando até seu caráter de uma verdadeira ditadura; e o ministro da Defesa Nelson Jobim, que se manifesta e age como porta-voz no governo dos contingentes mais intransigentes das Forças Armadas.
Tarso Genro e Paulo Vannuchi, respectivamente ministro da Justiça e secretário nacional de Direitos Humanos, sofreram uma derrota acachapante com a decisão tomada pela União de assumir a defesa dos ex-comandantes do DOI-Codi/SP, Carlos Alberto Brilhante Ustra e Audir dos Santos Maciel, no processo que lhes-é movido pelos procuradores federais Marlon Weichert e Eugênia Fávero.
Os procuradores pleitearam a responsabilização pecuniária desses militares da reserva pelas mortes e sevícias ocorridas durante o período de 1970/76, quando estiveram à frente daquele centro de torturas. Ou seja, que fossem declarados culpados pelos crimes e práticas hediondas cometidos sob seu comando e repusessem tudo que a União despendeu em reparações a suas vítimas.
Dos 6.897 cidadãos que passaram pelas garras do DOI-Codi/SP, a grande maioria sofreu as torturas costumeiras (choques elétricos, espancamentos, pau de arara, afogamentos, asfixia, etc.), acrescidas de uma exclusividade da casa: a cadeira-do-dragão.
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A marcante contribuição do DOI-Codi/SP à desumanidade |
O assento e os encostos para os braços e cabeça do nefando artefato eram revestidos de metal, para aumentar a potência das descargas que a vítima, amarrada, recebia. Vladimir Herzog foi um mártir brasileiro bestialmente assassinado dessa maneira.
A União tinha três caminhos a escolher: entrar no processo ao lado dos procuradores, permanecer neutra ou tomar a defesa dos carrascos. Fez uma escolha inconcebível e inaceitável, até porque contradiz frontalmente toda a legislação internacional subscrita pelo Brasil e as recomendações da ONU. O Governo Lula nos tornou párias da civilização.
Em sua defesa dos carrascos, a Advocacia Geral da União invocou a anistia autoconcedida pela ditadura no ano de 1979, que nada mais representou do que um habeas-corpus preventivo para quem sabia ter incidido em assassinatos em massa (incluindo as mortes durante as sessões de tortura e a execução a sangue-frio de prisioneiros que estavam sob a guarda do Estado), sevícias as mais brutais, sequestros (até de crianças!), estupros, ocultação de cadáveres e outras abominações.
A TORTURA ERA REGRA, NÃO EXCEÇÃO – Esta evolução dos acontecimentos, entretanto, está longe de ser inesperada, vindo ao encontro do que escrevi quando Genro e Vannuchi promoveram uma audiência pública para discutir a punição dos torturadores, no final de julho de 2008. Lula, por intermédio de Jobim, desautorizou qualquer iniciativa do Executivo no sentido da revogação da Lei da Anistia.
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Lula discursou no lançamento do livro sobre os executados pela ditadura; depois, os fardados rugiram e ele miou. |
Genro tentou maquilar a derrota como vitória, propondo que fossem abertas na Justiça ações contra os ex-torturadores, acusando-os de terem cometido crimes comuns. Segundo ele, as atrocidades não se tipificavam como crimes políticos e, portanto, ficavam de fora do guarda-chuva protetor da Lei da Anistia.
De imediato, eu adverti:
— que a tortura nunca fora um excesso cometido por meia-dúzia de aloprados nos porões, mas sim uma política de Estado que, embora não assumida formalmente, nem por isso deixara de ser menos efetiva, tendo sido implementada com a concordância ou a omissão de toda a cadeia de comando;
— que o atalho proposto por Genro impediria a responsabilização dos mandantes, permitindo apenas o enquadramento dos executantes;
— que daria aos acusados uma forte arma de defesa, pois eles argumentariam exatamente que estavam apenas cumprindo ordens;
— que não representaria a verdadeira justiça, ficando-se longe de passar o período realmente a limpo; e
— que o caminho judicial seria tão longo e os recursos protelatórios à disposição dos réus, tantos, que poucos deles (ou nenhum) acabariam recebendo a sentença definitiva em vida.
Audir dos Santos Maciel morreu nesse meio-tempo. Brilhante Ustra, septuagenário, já sofreu crises cardíacas [morreria em outubro de 2015].
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Lula talvez cresse que os presos políticos usuais recebiam o mesmo tratamento vip que lhe foi proporcionado no Dops |
E as tentativas de contornar-se a Lei da Anistia, doravante, terão como adversária a União, que oficializou sua posição de endosso à impunidade dos carrascos.
A anistia de 1979 tem de ser revogada, em nome das vítimas da ditadura mais brutal que o Brasil já conheceu e de nosso auto-respeito como nação. Que se levante a bandeira correta e justa, de uma vez por todas!
Quanto a Genro e Vannuchi, a dignidade impõe que se afastem de um governo que os desautoriza a cada momento.
Assim como a dignidade impõe ao presidente Lula que renuncie à pensão de prejudicado pela ditadura [passou 31 dias preso no Dops em 1980, com a imprensa cansando de publicar fotos dele batendo bola com outros sindicalistas detidos...] que vem recebendo há décadas e restitua cada centavo aos cofres públicos.
Por uma questão de coerência: quem se alinha com os déspotas e verdugos, moralmente não merece reparação de vítima. É o mesmo caso do Cabo Anselmo [o qual pleiteava anistia de vítima da ditadura sob a alegação de que, inexistindo o regime de exceção, ele não teria desempenhado o papel de traidor e algoz de militantes; o seu pedido em princípio atendia às regras do programa e só pôde ser recusado porque se comprovou que ele já era agente do Cenimar infiltrado na esquerda antes do golpe de 1964].
PAREM AS ROTATIVAS!!! – O artigo acima republicado era a parte inicial de uma duologia sobre como o Brasil até agora vinha falhando miseravelmente na eliminação do entulho ditatorial chamado Lei da Anistia, um mero habeas corpus preventivo que os mandantes dos extermínios e atrocidades da ditadura militar concederam em 1979 a si próprios e a seus jagunços.
Mas, numa surpreendente reviravolta, acaba de surgir a notícia de que o ministro do STF Dias Toffoli pretende fazer ainda neste ano o que nem a presidente ex-torturada ousou: promover uma audiência pública para rediscutir a Lei da Anistia (algo que já deveria ter sido encaminhado desde 1985!).
Ou seja, abre-se a perspectiva de corrigirmos uma aberração grotesca com apenas 39 anos de atraso. Os vizinhos que passaram pela mesma situação e não foram tão pusilânimes como nós morrerão de rir. Mas, antes tarde do que nunca: pelo menos o precedente que ficará para o futuro não será uma vergonha nacional.
Então, surgida esta pra lá de inesperada nova chance de punição dos torturadores da ditadura (ainda que os grandes vilãos já tenham morrido e só restem alguns gatos pingados de escalão inferior para responderem por seus crimes hediondos), desisti da duologia, mas manterei o artigo de 17/02/2024 com o título que fazia sentido no sábado e caducou no domingo.
(por Celso Lungaretti)
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