domingo, 31 de março de 2019

AO INVÉS DE ALGUM PLANO PARA TIRAR O PAÍS DO BURACO, SÓ UMA CACOFONIA ESDRÚXULA DE IDEIAS PRIMÁRIAS

encontro com a ditadura – 20
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david emanuel coelho
BOLSONARO É A CARA DA DITADURA MILITAR
A ordem do presidente de extrema-direita, Jair Bolsonaro, de celebrar o golpe de estado de 1964 é apenas mais uma prova da nulidade moral desta figura. 

Bolsonaro jamais dissimulou sua admiração pelo regime ditatorial e, muito menos, sua paixão pelas torturas e assassinatos cometidos no período. Falharam, isto sim, as instituições nacionais, que nada fizeram ao longo de três década para extirpar da vida pública esta figura desclassificada. 

Não se poderia, portanto, esperar do escroque dublê de presidente algo além de mandar celebrar o início do regime que representa toda a sua visão política e humana. 

Bolsonaro foi produzido sob os efeitos da distensão na linha dura do regime. Esteve sempre em proximidade do agrupamento de militares torturadores e contraventores, os quais sentiam no bolso o fim da perseguição política indiscriminada.

Igual a eles, Bolsonaro também tinha planos de apelar ao terrorismo como forma de pressionar por aumento de salários. Descoberto, acabou expulso do Exército e tomou a política como caminho para enriquecer, mantendo as negociatas aprendidas nos quartéis, como revelam os recentes casos de laranjas e funcionários fantasmas

A ditadura foi uma grande escola de corrupção. Roubava-se à vontade, desde o nível pequeno ao maior. Qualquer um possuidor de uma chancela de autoridade tinha carta branca para impor sua propina ou pilhar como achasse melhor. 

Se fosse militar, a pilhagem dobrava de valor. E quem não achasse correto, poderia provar um pouco do porrete salvacionista, visitar as masmorras do regime, quiçá morrer de forma misteriosa... ou nem tanto. Até embaixadores poderiam sofrer tal sina. 

Bolsonaro teve aí sua lição primeira. Mas, houve outras. 

Ao regime não bastava ser truculento na prática, era preciso também o ser em teoria. Por isso, como bons legalistas que eram, fizeram questão de colocar na lei a validade da falta de lei. 

O AI-5 foi justamente isso, uma lei decretando a falta de lei. Durante sua vigência, predominava a vontade pura do generalato usurpador. 

E era deles que partiam as ordens para torturar e matar. Como revelarem documentos recentes, nenhuma tortura era feita Brasil afora sem antes ter tido o aval do presidente fardado. Afinal, hierarquia é tudo. 

Bolsonaro tem seus arroubos de também ele poder dar suas ordens de violência. Impossibilitado de assim agir sendo militar, se contenta em exercer a truculência pelo exemplo e, no máximo, tentando legalizar a matança de pobres e negros pelas forças de segurança. 

A ditadura também era covarde. Não tendo argumentos para se fazer impor, usava a força, e a usava ainda mais contra quem já estava detido. 

Amedrontada pelo povo, mudava regras eleitorais e pressionava sempre para evitar que os cidadãos exercessem sua efetiva vontade. 

Foi o que fez logo em 65, não convocando novas eleições; e voltaria a fazê-lo muitas vezes mais. A derradeira seria quando, já caduca, impediu, na base do suborno, a realização de eleições diretas para presidente. 

Sobre o presidente neofascista, não é preciso se alongar na lista de seu currículo covarde. Fugiu de debates e entrevistas. Fugiu de dar explicações à justiça e acaba de fugir de alunos da faculdade Mackenzie. Sua vida é barbarizar no twitter, onde confortavelmente pode falar sem ser contradito. 

A ignorância de Bolsonaro é patente. Quando perguntado qual livro lia regularmente, primeiro passou bom tempo tentando lembrar o nome de algum livro para, ao fim, sair-se com o livro de seu ídolo, o torturador Ustra. 

O embotamento de sua visão da realidade não lhe permite ir muito além de uma consideração primária e vexaminosa sobre os problemas do país e do mundo. Quem o ouve discursar, não pode deixar de conter um espontâneo sentimento de vergonha.

Alunos do Mackenzie protestaram contra a visita do presidente
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E isso é mais uma herança da ditadura militar ao presidente ignaro. A ignorância do regime militar pode ser medida no fato de seu maior artista oficioso ter sido Roberto Carlos, batizado de rei

O analfabetismo era vasto e, embora o alto oficialato desfrutasse de um pouco de luzes, a situação intelectual generalizada na tropa era de nível rasteiro. 

Já a incompetência da ditadura pode ser facilmente constatada no caos econômico imposto por ela ao país. A onda do milagre foi devida muito mais à inversão de capitais estrangeiros para o país, junto com o titânico arrocho salarial sobre os trabalhadores, do que a um plano bem conduzido pelo generalato. 

Ao fim, bastou o espirro do primeiro choque do petróleo (1973) para o Brasil afundar na pior crise econômica de sua história. Ao final, tínhamos um país desmonetarizado e muito mais pobre que antes do começo da ditadura. 
"o artista oficioso da ditadura militar foi Roberto Carlos"

Sobre isto, basta pensarmos no fato de já terem se passado três meses da posse de Bolsonaro e absolutamente nenhum plano factível haver sido apresentado para tentar tirar o país do buraco atual; apenas uma bateção de cabeça e uma cacofonia esdrúxula de ideias primárias. 

Hoje, o maior inimigo do presidente fanfarrão são as lombadas eletrônicas, para ver a estatura intelectual e moral deste sujeito. 

O amálgama de nulidade, atraso e truculência cabe tranquilamente a Bolsonaro, mostrando sem sombra de dúvidas sua gênese na ditadura. 

Mais que isso, a identidade da ditadura é perfeitamente espelhada na identidade de Jair Bolsonaro, ambos pertencentes ao que de pior o Brasil produziu em seus mais de 500 anos de história. (por David Emanuel de Souza Coelho)

O EXEMPLO DE SÓCRATES AINDA INSPIRA O CORINTHIANS: GANHAR OU PERDER, MAS SEMPRE COM DEMOCRACIA!

encontro com a ditadura – 19
Enquanto os nostálgicos da ditadura militar celebravam o período mais vergonhoso da História brasileira, o Corinthians aproveitava a semifinal do Paulistão/2019 para reverenciar a memória de um dos seus maiores craques e líder da chamada democracia corinthiana, que revolucionou o relacionamento entre jogadores e dirigentes, sepultando o autoritarismo tradicionalmente praticado pelos cartolas do nosso futebol. Trata-se, evidentemente, de Sócrates Brasileiro Sampaio de Souza Vieira de Oliveira.
O doutor Sócrates foi também grande defensor da redemocratização do país em 1984, quando participou ativamente da campanha das diretas-já, chegando a prometer que recusaria uma proposta milionária da Itália caso a emenda Dante de Oliveira fosse aprovada pelo Congresso.
Com autorização da diretoria do clube, sua estátua ficará exposta na Arena Corinthians, juntamente com uma faixa daquela época que acaba de ser reencontrada: ganhar ou perder, mas sempre com democracia! 

A IGREJA PRESBITERIANA DO BRASIL TEM UM MÁRTIR: PAULO STUART WRIGHT.

Paulo Wright foi assassinado pelo DOI-Codi...
encontro com a ditadura – 18
Um lembrete aos pastores evangélicos e presbiterianos nesta deplorável efeméride.

Muitos de vocês, provavelmente por serem mais jovens e não conhecerem a história da igreja no Brasil, vão agradecer a Deus pelo golpe de 1964.

Será triste! Primeiramente, porque a Igreja não deveria ter-se metido nesse tipo de questões. 

Mas, principalmente, porque denominações protestantes foram alvo de devassas por parte da repressão da ditadura. 

Em algumas delas, como a presbiteriana (durante a direção do pastor Boanerges Ribeiro, presidente do Supremo Concílio), houve mesmo um processo de denúncias e caças a pastores e membros considerados de esquerda.

A Igreja Presbiteriana do Brasil tem mesmo um mártir, o irmão do pastor James Wright, co-autor com d. Paulo Evaristo Arns do livro-documento Brasil: Nunca Mais.

É Paulo Wright, filho de missionários presbiterianos no Brasil, morto sob tortura no Doi-Codi.
...e seu irmão James depois participaria da célebre missa de três confissões para Vladimir Herzog

Talvez fosse melhor, em lugar de comemorar os assassinatos cometidos pela ditadura, lembrar o sacrifício de tantos evangélicos mortos, torturados, exilados e pastores demitidos durante o período da ditadura.

O Deus, o Cristo que aprendi na escola dominical e na Igreja Presbiteriana (fui, inclusive, presidente da União da Mocidade Presbiteriana de Santos), não aprovaria jamais a inquisição instaurada na Igreja Presbiteriana durante os anos sombrios da ditadura.

Em lugar de comemorar, seria melhor pedir perdão a Deus por ter a igreja aprovado na época o processo de prisões, caça e assassinatos de crentes.

O Deus e Cristo que aprendi na Escola Dominical era um Deus de amor e de justiça. 

O tempo pode passar mas as memórias das vítimas clamarão sempre por justiça. (por Rui Martins)

NUMA SEXTA-FEIRA 13, EM DEZEMBRO DE 1968, AS PORTAS DO INFERNO FORAM ESCANCARADAS NO BRASIL.

encontro com a ditadura – 17

"E você tendo ido,
não pode voltar,
quando sai do azul
e entra nas trevas"
(Neil Young,
Hey Hey My My)
Já lá se vai mais de meio século desde que o Brasil saiu não do azul, mas de um cinza já bem escuro, para entrar nas trevas absolutas do Ato Institucional nº 5.

O 13 de dezembro de 1968 caiu apropriadamente numa 6ª feira –a mais funesta da História brasileira. Foi quando 17 sinistros personagens, com uma simples canetada, deram sinal verde para torturas, assassinatos, estupros, ocultação de cadáveres e todo o festival de horrores dos anos subsequentes.

Eram eles o ditador Costa e Silva e 16 de seus ministros: Albuquerque Lima (Interior); Augusto Rademaker (Marinha); Carlos Simas (Comunicações); Costa Cavalcanti (Minas e Energia); Delfim Netto (Fazenda); Gama e Silva (Justiça); Hélio Beltrão (Planejamento); Ivo Arzua (Agricultura); Jarbas Passarinho (Trabalho); Leonel Miranda (Saúde); Lyra Tavares (Exército); Macedo Soares (Indústria e Comércio); Magalhães Pinto (Relações Exteriores); Mário Andreazza (Transportes); Souza e Mello (Aeronáutica); e Tarso Dutra (Educação).  

Só um permanece vivo até hoje, Delfim Netto, que está com 90 anos e não se arrepende da autoria de uma assinatura da qual tanto sangue jorrou: continua afirmando que, apresentando-se as mesmas circunstâncias, voltaria a proceder da mesmíssima maneira.
17 sinistros personagens desembestaram o terrorismo de Estado

O 16º a falecer foi (em junho de 2016) o igualmente empedernido Jarbas Passarinho, de origem militar, que  ao proferir seu voto, disse a frase mais emblemática daquela infame reunião ministerial:
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"Às favas, sr. presidente, neste momento, todos os escrúpulos de consciência"
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Ele continuou, pelas décadas adentro, enturmado com as aves de mau agouro, sempre defendendo o regime de exceção ao qual serviu nas equipes ministeriais de Costa e Silva, Médici e Figueiredo.

Um mês depois chegou a vez de Rondon Pacheco, cuja assinatura não consta do documento, embora chefiasse o Gabinete Civil. Talvez a lacuna se deva a haver sido um personagem reticente naquele momento, tendo inclusive tentado fixar um prazo para a vigência do AI-5: um ano apenas. 

Também se atribui a ele e ao ministro da Justiça Gama e Silva o mérito de, numa reunião prévia, terem excluído do documento alguns pontos mais duros, como o fechamento do Congresso Nacional e do Supremo Tribunal Federal.  
"o arbítrio ditatorial foi levado ao paroxismo"
Outra voz dissonante foi a do vice-presidente Pedro Aleixo, que inclusive empenhou-se adiante em restabelecer a legalidade. Chegou a convencer Costa e Silva, mas este morreu antes de concretizar o intento (coincidência?).

O  golpe dentro do golpe, que levou ao paroxismo o fechamento ditatorial do País, foi o lance decisivo da disputa interna entre a linha dura militar (que queria radicalizar o arbítrio) e os conspiradores originais (oficiais veteranos da participação brasileira na 2ª Guerra Mundial).

Os últimos, encabeçados por Castello Branco, pretendiam usurpar o poder por pouco tempo. Falavam numa intervenção cirúrgica, durante a qual imporiam medidas que modernizassem o Estado e enfraquecessem a esquerda (prisões, perseguições, cassações, extinção de entidades legais, etc.). 

Aprenderam, contudo, que implantar uma ditadura é bem mais fácil que dar-lhe fim.

As duas posições competiram acirradamente pela hegemonia na caserna ao longo de 1968, mas o crescimento dos movimentos contestatórios fez a balança pender para  o lado dos ferrabrases. 

Estes iam ao encontro da cultura de intolerância que grassava nos quartéis, pois se propunham a dotar o regime de meios para reagir com maior contundência às manifestações de rua e ao desafio das organizações armadas, passando por cima dos direitos humanos e das garantias constitucionais.
Pelo menos 434 opositores foram mortos da ditadura 

Pesaram também os interesses mesquinhos dos oficiais das três Armas, seduzidos pelas perspectivas que o prolongamento do regime de exceção e a ampliação dos poderes ditatoriais abriam para seu enriquecimento pessoal:
  • os da ativa, como gestores de um setor estatal que estava sendo cada vez mais inflado, ou como beneficiários de suas boquinhas; e
  • os da reserva como facilitadores dos favores oficiais (quase todos os grandes grupos privados contrataram militares reformados para integrarem seus conselhos de administração, como forma de terem seus interesses contemplados nos altos escalões governamentais).
O pretexto para a nova virada de mesa foi um discurso exaltado do deputado Márcio Moreira Alves numa sessão esvaziada (o chamado pequeno expediente) da Câmara Federal, no início de setembro de 1968.
Discurso errado, hora errada
Tratava-se de uma lengalenga sem verdadeira importância (incluía até uma sugestão às moças, de que não namorassem alunos das academias militares –vide aqui), proferida apenas para constar dos anais e poder ser exibida depois aos eleitores, quando ele lhes fosse pedir votos no pleito seguinte.

Mas, um jornalista favorável ao arbítrio vislumbrou a oportunidade de uma provocação e trombeteou-a; em seguida, os partidários do enrijecimento a divulgaram amplamente, mimeografada, entre os fardados, insuflando a indignação.

As Forças Armadas se declararam atingidas e o governo pediu ao Congresso Nacional a abertura de um processo visando à cassação de Moreira Alves. 

Os parlamentares, depois de em tantas ocasiões, tão vergonhosamente, se prostrarem aos ultimatos da caserna, daquela vez rechaçaram o pedido, temendo que outras cabeças fossem exigidas na sequência e a caça às bruxas acabasse extinguindo o mandato de muitos deles. 

Pateticamente, encerraram a sessão cantando o Hino Nacional, sem perceberem que tinham é escancarado as portas do inferno.

A resposta da ditadura foi imediata e a mais tirânica possível: colocou os Legislativos federal e estaduais em recesso e impôs à Nação, na marra, novas e terríveis regras do jogo.
Revista tida como outro pivô do AI-5

O presidente da República (escolhido por um Congresso Nacional expurgado e intimidado) passou a ter plenos poderes para cassar mandatos eletivos, suspender direitos políticos, demitir ou aposentar juízes e outros funcionários públicos, suspender o habeas-corpus em crimes contra a segurança nacional, legislar por decreto e julgar crimes políticos em tribunais militares, dentre outras medidas totalitárias.

Principal ferramenta do terrorismo de estado, o AI-5 só seria atirado na lixeira dez anos depois. Nesse meio tempo, centenas de resistentes foram executados, dezenas de milhares torturados, mais de uma centena de parlamentares cassados, um sem-número de funcionários públicos no olho da rua, a arte amordaçada (mais de 500 filmes, 450 peças teatrais, 200 livros e umas 500 canções sofreram os rigores da censura), etc.

Quando os gorilas saíram do armário, o Brasil entrou no período mais bestial e vergonhoso de sua História.
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UM DEPOIMENTO PESSOAL – Para jovens estudantes que, como eu, ingressaram na luta a partir do novo ascenso do movimento de massas,  aquele agourento 13 de dezembro de 1968 marcou o fim da aventura e o início da tragédia.

Passáramos o melhor ano de nossas vidas descobrindo a luta e descobrindo-nos na luta. Aí veio aquele pacote de medidas draconianas ao extremo, cujas implicações captamos de imediato: haviam declarado guerra contra nós e os riscos dali em diante seriam imensos. 

Mesmo assim, diante da alternativa desistir x perseverar, fizemos a opção digna... que se revelaria das mais sofridas.

Então, o AI-5 foi o divisor de águas entre o 1968 exuberante e o 1969 soturno.
A passeata dos 100 mil foi o ápice dos protestos de 68

Entre o enfrentamento a céu aberto e o martírio nos porões.

Entre a luta travada ao lado das massas despertadas e a luta que travamos sozinhos em nome das massas amedrontadas.

Meu avô morreu quando meu pai tinha 11 anos. Como era o primogênito, minha avó fez com que começasse imediatamente a trabalhar  numa fábrica escura, barulhenta e empoeirada, burlando a legislação que exigia idade mínima de 14 anos.

Passou o resto da vida lamentando a responsabilidade que desabou cedo demais sobre seus ombros. Num dia, estava despreocupadamente jogando bola no campinho ao lado de sua casa. No outro, esfalfando-se oito horas seguidas para colocar o pão na mesa familiar.

O AI-5 teve o mesmo efeito sobre mim. Até então, a militância era puro deleite. De um momento para outro, tornou-se um pesadelo que me deixou em frangalhos, além de tragar alguns dos meus melhores amigos e tantos companheiros estimados.

Parafraseando a bela canção de Neil Young, foi a saída do azul e entrada nas trevas. (por Celso Lungaretti)

UM EXEMPLO DA CONIVÊNCIA DA DITADURA COM OS CRIMES DAS MULTINACIONAIS

encontro com a ditadura – 16
Uma falácia das viúvas e discípulos da ditadura  são as comparações desfavoráveis à democracia que espalham entre os desinformados. Dizem que a economia era mais próspera nos anos de chumbo, que havia menos violência e corrupção, etc.

Há idosos que avalizam esse besteirol, ajudando a desnortear as novas gerações. No fundo, sua opinião é influenciada pelas saudades dos tempos em que eram vigorosos e tinham muita vida pela frente.  Tudo lhes parecia melhor então.

Ademais, o homem comum tende a engolir a propaganda oficial e a não reparar quando notícias lhes são sonegadas pela censura. A percepção do povão que aplaudia o sanguinário ditador Médici quando ele ia posar de torcedor no estádio do Maracanã era bem diferente da de quem conhecia as entranhas, os escândalos abafados e os esqueletos nos armários do regime.

Agora, p. ex., há total transparência nos casos de produtos e serviços que, por quaisquer imperfeições, causam prejuízos e/ou malefícios aos consumidores.

Atuando em assessorias de imprensa, cheguei a formular e implementar a estratégia de comunicação de vários recalls. Alertavam-se as autoridades, os comerciantes, o público em geral. Substituíam-se os itens imperfeitos, ofereciam-se gratuitamente os serviços que haviam sido insatisfatórios. Prestavam-se contas e apresentavam-se civilizadas desculpas, juntamente com o anúncio das providências adotadas para que a falha não se repetisse.

Ou seja, a opção nunca era por ocultar o problema, mas por corrigi-lo com o máximo profissionalismo. Houve vezes em que nenhuma fiscalização ou consumidor percebeu o ocorrido e este não era potencialmente perigoso, mas, mesmo assim, foi feito o  recall.

Já nos estados policiais as informações adversas são sonegadas dos cidadãos com a maior sem cerimônia.

AGROTÓXICOS LETAIS

Foi o que fez a ditadura militar brasileira com as mortes de trabalhadores rurais intoxicados por defensivos agrícolas e com uma epidemia de meningite; nas duas vezes, pretensamente para evitar o pânico.

O primeiro episódio eu acompanhei de perto. Trabalhava na agência de comunicação empresarial que, em meados da década de 1970, foi contratada por uma multinacional para evitar que repercutissem as seguidas ocorrências de envenenamento de cidadãos brasileiros nas áreas rurais.

Tratava-se de um contrato tão crapuloso que a conta era integralmente paga pela tal multinacional, mas o trabalho executado em nome de uma associação fantasma de fabricantes de agrotóxicos, criada às pressas para servir como fachada.

Coube-me redigir material de imprensa destacando a notável contribuição que os defensivos agrícolas estariam dando à agricultura brasileira e os terríveis prejuízos que sua eventual proibição acarretaria: fome da população, desemprego no campo, queda das exportações.

Eram textos aparentemente inocentes, mas não o que estava por trás deles: o raciocínio desumano de que, para evitarem-se tais prejuízos, poderiam ser relevadas as mortes que foram noticiadas. Muitas outras não o foram, com a conivência das otoridade.

Pior ainda era o papel do dono da agência, um pioneiro da área de assessoria de imprensa e eventos, que se incumbia pessoalmente de falar com os jornalistas influentes, distribuindo subornos e fazendo ameaças veladas.

"EU PAREI AS ROTATIVAS"

Repugnava-me vê-lo elogiar a si próprio por haver conseguido sustar a publicação de uma notícia sobre mortes de trabalhadores rurais que já descera para a gráfica de um jornalão. “Eu parei as rotativas”, proclamava, orgulhoso, para os empresários interessados nos seus serviços.

Ele considerava que haver levado a bom termo uma incumbência tão infame lhe servia como galardão profissional. E não é que os empresários entravam na dele?! Eu assistia e ficava pensando com meus botões: "Este é o verdadeiro milagre brasileiroo amoralismo e os embustes impunes". 
Participar dessa empreitada foi a primeira grande decepção de minha carreira jornalística. Muitas outras viriam, com os interesses econômicos prevalecendo sobre o bem comum e eu nada podendo fazer para remediar a situação, sob pena de perder o emprego e ficar com o mercado de trabalho fechado para mim. 

Então, graças à censura sobre a imprensa e aos mecanismos de persuasão dos poderosos, o povo brasileiro  deixou de ser informado dos riscos que corria quem utilizasse agrotóxicos. E ocultar-lhe mortes por envenenamento registradas em todo o País certamente contribuiu para que outras ocorressem.

A tal multinacional jamais ousaria proceder de forma tão leviana no 1º mundo: para reduzir custos, não investira no treinamento adequado dos usuários de seus produtos.

Mesmo assim, com a conivência do regime militar, conseguiu apagar o incêndio: ministrou rapidamente os cursos que deixara de promover no momento exato e não arcou com as multas astronômicas que lhe seriam aplicadas em qualquer país cujo governo zelasse pelos governados.

De quebra, indenizou mal e porcamente, por baixo do pano, as famílias das vítimas, que não tiveram como arrancar reparações à altura da gravidade das perdas que sofreram.

Ficou-me também a impressão de que o êxito da operação de acobertamento se deveu ao fato de que os mortos eram irrelevantes. Se os finados não fossem coitadezas dos grotões, certamente aquelas mortes acabariam tendo alguma repercussão. 

(por Celso Lungaretti)

O COTIDIANO DE UM RESISTENTE

encontro com a ditadura – 15
A propaganda enganosa martelada incessantemente pelas viúvas da ditadura bate muito na tecla de que os militantes da luta armada teríamos utilizado o dinheiro expropriado dos bancos para vivermos como burgueses, entre luxos e orgias. Nada mais falso.

Eu militei na Vanguarda Popular Revolucionária entre abril/1969 e abril/1970, quando fui preso pelo DOI-Codi/RJ, sofri torturas que me deixaram à beira de um enfarte aos 19 anos de idade e me causaram uma lesão permanente.

Nesse ano em que me beneficiei do produto dos assaltos praticados pelas organizações de resistência à tirania implantada pelos usurpadores do poder, como foi minha vida de nababo?

Na verdade, recebia o estritamente necessário para subsistir e manter a minha fachada de vendedor autônomo.

No início, fui obrigado a me abrigar em locais precaríssimos, como o porão de um cortiço na rua Tupi, próximo da atual estação do metrô Marechal Deodoro, na capital paulistana. Era só o que eu conseguia pagar com o produto dos assaltos.

Cada quarto era um cubículo mal ventilado. Enxames de pernilongos me atacavam durante o sono. Afastava-os com espirais que mantinha acesos durante a noite inteira... e me faziam sufocar.

O que mudou quando meus companheiros fizeram o maior assalto da esquerda brasileira em todos os tempos, apossando-se dos dólares da corrupção política guardados no cofre da ex-amante do governador Adhemar de Barros? Quase nada.

Era dinheiro para a revolução, não para gastos pessoais. Apesar de integrar o comando estadual de São Paulo e depois exercer papel semelhante no Rio de Janeiro, continuei levando existência das mais austeras.

Meu último abrigo foi o quarto alugado no amplo apartamento de uma velha senhora do Rio Comprido (RJ). Fazia tanto calor que eu era obrigado a dormir despido sobre o chão de ladrilhos, que amanhecia ensopado de suor.

Quando tinha de abandonar às pressas um desses abrigos, todos os meus bens cabiam numa mala de médio porte. Vinham-me à lembrança os versos de Brecht, "íamos pela luta de classes, desesperados/ trocando mais de países que de sapatos".

Havia, sim, um dinheiro extra, que equivaleria a uns R$ 10 mil atuais. Mas, tratava-se do fundo a que recorreríamos caso ficássemos descontatados e tivéssemos de sobreviver ou deixar o País por nossos próprios meios, sem ajuda dos companheiros que já estariam presos ou mortos.

Nenhum de nós gastava essa grana, era ponto de honra. Os fundos de reserva acabaram chegando, intactos, às garras dos rapinantes que nos prendiam e matavam. Nunca prestaram conta disso, nem dos carros, das armas e até das peças de vestuário que nos tomaram.

E, mesmo que tivéssemos dinheiro para esbanjar, como o gastaríamos? Éramos procurados no país inteiro, com nossos nomes e fotos expostos em cartazes falaciosos.

Eu, que nunca fizera mal a uma mosca, aparecia nesses pôsteres como “terrorista assassino, foragido depois de roubar e assassinar vários pais de família”. O Estado usava o dinheiro do contribuinte para me fazer acusações falsas e difamatórias!

Para manter as aparências, éramos obrigados a sair cedo e voltar no fim do dia. Os contatos com companheiros eram restritos ao tempo estritamente necessário para discutirmos os encaminhamentos em pauta; dificilmente chegavam a uma hora.

Sobravam longos intervalos, com nada para fazermos e a obrigação de ficarmos longe de situações perigosas. Tínhamos de procurar locais discretos, tentando passar despercebidos... por horas a fio. Sujeitos a, em qualquer momento, sermos surpreendidos por uma batida policial.

Vida amorosa? Dificílima. Cada momento que passássemos com uma companheira era um momento em que a estaríamos colocando em perigo. Ninguém corria o risco de ir transar em hotéis, sempre visados (e nossa documentação era das mais precárias, passei uns oito meses portando apenas um título eleitoral falsificado). E as facilidades atuais, como motéis, quase inexistiam.

Aos 18/19 anos, senti imensa atração por duas aliadas, uma em São Paulo e outra, meses mais tarde, no Rio de Janeiro. Com ambas, o sentimento era recíproco. E nos dois casos mal passamos dos beijos apaixonados com que nos cumprimentávamos e despedíamos. Qualquer coisa além disso seria perigosa demais.

Enfim, esta é a vida que levávamos, acordando a cada manhã sem sabermos se estaríamos vivos à noite, passando por freqüentes sustos e perigos, recebendo amiúde a notícia da perda de companheiros queridos (eu até relutava em abrir os jornais, tantas eram as vezes que só me traziam amargura).

Sobreviver alguns meses era digno de admiração. Ao completar um ano nessa vida, eu já me considerava (e era considerado pelos companheiros) um veterano. Caí  logo em seguida.

Dos tolos que saem repetindo essas ignomínias trombeteadas dia e noite pela extrema-direita, bem poucos seriam capazes de encarar a barra que encaramos, não pelas motivações ridículas que nos atribuem, mas por não aguentávamos viver, e ver nosso povo vivendo, debaixo das botas dos tiranos! (por Celso Lungaretti)

NOSSO PRESIDENTE DETERMINOU QUE SE REMEMORE O PASSADO? FAÇAMO-LO, POIS!

encontro com a ditadura – 14
jânio de freitas
TODO DIA 
É AQUELE
A ordem de comemorar os 55 anos do golpe de 64 seria, vinda de qualquer cabeça antidemocrática, uma provocação tola e de mau observador. No caso de Jair Bolsonaro, a incompreensão da realidade é, claro, muito maior. Inclui até a falta de percepção do que tem sido sua vida.

Comemorar —relembrar com outros—  o golpe e a ditadura em data determinada é redundância. Mais do que eventualmente inesquecíveis, o golpe e a ditadura são lembrados todos os dias, por cada um de nós, sem depender de vontade. 

Os restos de autoritarismo, apodrecidos mas ainda criminosos; os cacos de legislação, os privilégios e impunidades; as discriminações, boicotes e perseguição aos que não rezam pelo conservadorismo; as preocupações e temores com o golpismo latente —tudo isso integra ainda a vida neste país.

Muitos milhares têm a agradecer o que receberam da ditadura, por via direta ou pelas circunstâncias. Por isso mesmo, também para esses beneficiados os dias são derivações do golpe. Entre os beneficiados, está Bolsonaro. Em posição particular e, por ironia, conquistada por meio da ditadura já na incipiente democracia.
"o tenente agiu como terrorista"

Era o governo Sarney. Veja foi convidada à casa do tenente Bolsonaro para um "assunto importante". O tenente não apareceu na reportagem. 

Para os efeitos públicos, sua mulher então cumpriu o papel de porta-voz: ou o governo aumentava o salário ("soldo militar") dos tenentes, ou o abastecimento de água do Rio seria cortado pela explosão de bombas num ponto crítico das adutoras. Foi oferecido para fotografia um croquis, bastante tosco, da linha de adutoras e das localizações.

Não houve o aumento exigido. Como reafirmação, um segundo plano seria a explosão de bombas em quartéis, com a pretensa participação de outros tenentes. Não houve aumento, mas a essa altura correram vagas informações de que o tal tenente estava sob inquérito. O processo daí decorrente foi até ao Superior Tribunal Militar.

O tenente Jair Bolsonaro agiu como terrorista. A publicação de Veja difundiu muita preocupação, tanto pelo anunciado ato terrorista, como pelo indício de grave agitação no meio militar, tão perto ainda do fim inconformado da ditadura. 

Para os militares, não houvera mudança essencial. O que incluía o STM, onde os dois juízes que evoluíram para a condenação à tortura e outras violências da ditadura, general Pery Bevilacqua e almirante Julio Bierrenbach, haviam sofrido a represália da exclusão. 

Ser apoiador da ditadura foi, desde 64, uma condição humana especial, com poderes e direitos acima de todos os códigos e convenções do convívio civilizado. O essencial dessa aberração parecia intocado, mas, afinal, o regime era outro.
"para beneficiados pela ditadura, os dias são derivações do golpe"

Apesar disso, e embora não por unanimidade, o tenente terrorista foi absolvido. No centro de um conchavo, não lhe era sentenciada a devida condenação, mas passaria para a reforma. O que ainda lhe rendeu, como bonificação dada na época aos reformandos, promoção ao posto seguinte (por isso o capitão Bolsonaro) e o soldo correspondente e integral.

Já na primeira eleição posterior à reforma, Bolsonaro candidatou-se a vereador no Rio. Foi eleito pelos militares e suas famílias, que depois lhe asseguraram sucessivas posses como deputado federal. Uma vida fácil e improdutiva na Câmara ou fora dela, assim como a eleição presidencial, que Bolsonaro só teve graças à ditadura. 

A continuidade do tribunal militar de índole ditatorial, quando a imprensa temia soar como provocadora e revanchista, protegeu o julgamento do tenente terrorista com um silêncio que mais tarde não haveria. Nem, portanto, a impunidade premiada.

Além dos restos de 21 anos anticivilizatórios, imagens de Jair Bolsonaro são lembranças diárias daquela desgraça nacional. A ordem de comemorações é só provocação redundante. 
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(por Jânio de Freitas, 87 anos de idade, 66 de
jornalismo, um dos nomes mais respeitados
da imprensa brasileira, agraciado com 
Prêmio Essoo prêmio Rei de Espanha
Medalha Chico Mendes de Resistência)
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