Após a eclosão das manifestações, a mídia, vencida em sua primeira tática de incentivar a repressão, assume nova tática de disputar as pautas dos protestos e dividir os manifestantes entre bons e maus, ordeiros e baderneiros. Começam a surgir, nessa onda, manifestantes caracterizados de verde e amarelo e mesmo pedindo Intervenção Militar.
Geralmente, a propaganda lulopetista foca a participação desses manifestantes para reforçar seu argumento falso de que Junho 2013 teria sido o ovo da Serpente do fascismo. Tal análise é incorreta por vários pontos de vista, mas peca por dois motivos principais.
O primeiro é desconsiderar a magnitude da presença desse grupo mais direitista nas ruas àquela época. Enquanto um grupo majoritariamente com idade superior a 35 anos, de alto rendimento e com ideais pró-mercado, a presença deles era em número reduzido caso comparado à massa de manifestantes, fato atestado por pesquisas dos próprios grupos de mídia realizadas durante as manifestações. A maioria absoluta dos manifestantes estava preocupada com questões sociais - transporte, educação, saúde - e era formada por estudantes.
A pauta anticorrupção foi introduzida pela mídia burguesa |
O segundo aspecto é não entender a processualidade histórica. A história é um terreno de possibilidades, com tendências que algumas vezes não se realizam, becos sem saída e acontecimentos com fins muito diferentes dos inicialmente colocados. Assim, é apenas se considerando a processualidade histórica que é possível entender como a Revolução Russa pôde terminar em Vladimir Putin ou como a Revolução Alemã conduziu ao fim à ascensão do Nazismo.
Forças díspares disputam todo movimento político de massas e no meio do processo há a luta de classes, sempre colocando avanços e recuos. Uma intricada relação entre condições objetivas e subjetivas interagem complexamente para determinar para qual caminho se dirigirá o processo histórico. Ou seja, entre o começo de um processo e seu término existem diversos momentos responsáveis por determinar o caminho de fato seguido.
Em outras épocas, essa análise da processualidade histórica era chamada de dialética, por levar em conta as complexas dinâmicas contraditórias que regem a história humana. Ela se opõe à análise mecânica, reducionista, que vê apenas uma linha direta entre o início de um acontecimento histórico e seu final.
Assim, quem analisa a história por uma ótica mecânica acabará defendendo teses esdrúxulas de que o Iluminismo foi o responsável pelo Holocausto Nazista ou que a Revolução Francesa levou ao colonialismo. Embora de fato existam relações entre tais fenômenos, elas são contraditórias e sutis, não estando em uma dinâmica de causa e efeito igual um fenômeno da natureza.
Igualmente, colocar uma linha reta entre Junho de 2013 e a ascensão bolsonarista é um equívoco porque desconsidera todo o processo contraditório existente naquele período. É efetuar uma análise mecânica, superficial e tola, recortando da história apenas uma faceta simplificadora. Contudo, por uma análise dialética é possível visualizar sim o aparecimento das forças de extrema-direita já naquele momento, embora de forma minoritária.
Inicialmente minoritários, os verde e amarelo assumiriam a liderança da luta política |
Na realidade, as forças de extrema-direita vinham se reorganizando no Brasil há anos. Tendo submergido após o fim da ditadura, nunca deixaram de existir por completo, ficando apenas abaixo do radar. Mas, conforme prova a influência de Olavo de Carvalho na internet no período, existia algo borbulhando por baixo da superfície.
Contudo, quem galvanizava as forças reacionárias não era a extrema-direita, mas a mídia mediante campanhas moralistas. O tema da corrupção era batido diuturnamente contra o governo lulopetista e ganhou mais potência após o escândalo do Mensalão. Antes de Bolsonaro e sua trupe explorarem ad nauseam as fake news, a grande imprensa brasileira já fazia uso corriqueiro de histórias sensacionalistas e esdrúxulas, sempre com fundo moral, como é cabalmente atestado pela trajetória da revista Veja no período.
Colunistas histriônicos eram bem-vindos não apenas para escrever, mas também para falar na Televisão e no Rádio. Indivíduos do porte de Reinaldo Azevedo, Diogo Mainardi, Roberto Guzzo, Carlos Sardenberg, entre outros, martelavam dia e noite o mantra da moralidade e do pensamento liberal. Até mesmo o desencarnado Olavo de Carvalho tinha lugar na grande mídia durante um período.
O resultado era a formação de um caldo cultural, sobretudo na classe média e alta, conservador, focado na lógica moral e aderente aos valores da sociedade de mercado. Quando em 2013 as manifestações eclodem, a mídia burguesa já possuía um contingente populacional adestrado e pronto para tomar as ruas seguindo a pauta direitista.
É por isso que a ação da Globo e demais grupos midiáticos conseguiu ser tão eficaz, pois sua pauta anticorrupção já ressoava em parte da população e mesmo seu discurso ordeiro e contrário à quebra radical da ordem fazia eco às pregações anteriores contra o perigo vermelho, a ameaça venezuelana ou mesmo a bagunça petista.
Assim eram as capas da Veja na década retrasada |
Desse modo, convocados pela burguesia através da sua mídia, os manifestantes tomaram para si a tarefa de ir às ruas disputar a liderança do processo, mas não para golpear o capitalismo brasileiro, não para lutar por saúde, educação e transporte, ou mesmo contra a violência policial, mas para trazer o país de volta à ordem, para sanear a República e conduzir a nação de volta aos seus tempos brilhantes, em que não haviam black blocs, lutas sociais, e tão pouco direitos trabalhistas para empregadas domésticas, cotas raciais em universidades e pobres frequentando aeroportos.
A partir da lógica aprendida dos grupos de mídia, todas essas coisas eram atribuídas ao governo petista, daí ser importante fazer a roda da história girar para trás, para antes de Lula e de Dilma, para antes da bagunça lulista. O que a fração dominante da burguesia não conseguiu ver, contudo, é que essa volta ao passado era vista por setores da extrema-direita não apenas como um retorno à era pré-PT, mas sim à era pré-democracia. Por isso, junto com a massa liberal, galvanizada pela mídia, também começou sair às ruas as viúvas de 1964, empoderando bandeiras em prol da Intervenção Militar no país, ou seja, de um golpe para reestabelecer o regime autocrático.
A direita liberal e a extrema-direita possuíam pautas profundas em comum, sendo a imediata a salvação do país de um possível processo revolucionário. Para além disso, a luta contra o lulopetismo e por reformas liberais. Por isso, se uniram de forma estratégica em uma aliança que perduraria até o início do governo Bolsonaro quando, diante da possibilidade de serem engolidos pelo monstro, os liberais começaram a dissolver o pacto.
No entanto, o ponto crucial é que em Junho de 2013 tais agrupamentos eram minoritários. Estavam nas ruas, disputavam a liderança e tentavam impor suas pautas, mas não tinham êxito, a ponto de logo começarem a recuar, reclamando do vandalismo e da falta de rumo do movimento. O que virou o jogo a favor deles foi a ação repressiva do governo Dilma que conseguiu conter o levante popular e, pela perseguição aos indivíduos mais mobilizados, desincentivou a continuidade dos atos. Somou-se a isso o pesado boicote promovido pelas organizações satélites do lulopetismo e as manifestações foram enxugando até minguarem de vez.
Esmagado por Dilma, o Não Vai Ter Copa foi o último suspiro da rebelião de 2013 |
Mas não desapareceram, pois o processo insurrecional e de descontentamento prosseguiu. Ele foi apenas transmutado de uma rebelião anticapitalista para uma mobilização conservadora e focada justamente nos pontos pautados pela mídia: luta contra a corrupção e medidas liberalizantes. Assim, já em 2014, após o rescaldo do fracassado movimento Não Vai Ter Copa, a direita, agora mais organizada e estruturada, saí às ruas pelo Impeachment de Dilma. Só puderam ocupar as praças públicas porque a própria ex-presidente as deixou vazias, prontas para serem tomadas pela massa de verde e amarelo antes minoritária.
A história, conforme já vimos muitas vezes, é também irônica. (por David Emanuel Coelho)
LEIA OS PRIMEIROS ARTIGOS DA SÉRIE:
DEZ ANOS DE JUNHO DE 2013. DILMA NO LABIRINTO
DEZ ANOS DE JUNHO DE 2013: O LEVANTE NACIONAL
DEZ ANOS DE JUNHO DE 2013: O RECHAÇO À POLÍTICA INSTITUCIONAL
DEZ ANOS DE JUNHO DE 2013: A TÁTICA BLACK BLOC
DEZ ANOS DE JUNHO DE 2013: A QUINTA-FEIRA QUE INCENDIOU O BRASIL
DEZ ANOS DE JUNHO DE 2013: A LUTA PELO PASSE LIVRE
DEZ ANOS DE JUNHO DE 2013: A FALÊNCIA DA NOVA REPÚBLICA
2 comentários:
https://www.ihu.unisinos.br/630058-o-dia-no-qual-o-brasil-parou-por-dez-anos-artigo-de-vladimir-safatle
Bolsonaro faces ban from politics
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