quinta-feira, 8 de junho de 2023

DEZ ANOS DE JUNHO DE 2013. PARTE 2: A FALÊNCIA DA REPÚBLICA NOVA


 OS ANTECENDENTES DE JUNHO DE 2013: a falência da República Nova

O regime militar foi estabelecido em 1964 para garantir uma modernização conservadora no Brasil em que a industrialização e urbanização foi feita de modo subordinada ao capitalismo central da Europa e dos EUA. Como consequência, o país não modificou sua estrutura social, mantendo a propriedade fundiária inalterada e a super exploração da mão de obra, resultando em um país com um dos parques industriais mais avançados do planeta, mas com mazelas piores que os presentes em países miseráveis da África.

O Milagre Econômico foi concebido às expensas do endividamento externo do país e objetivava isolar a oposição revolucionária aglutinada nas guerrilhas. Com o boom econômico, grande parte da classe média e mesmo da classe trabalhadora passou a dar apoio à ditadura, deixando os bravos militantes à mercê da truculência da repressão. Contudo, o Milagre duraria pouco e já por volta de 1974 fazia água diante do Choque do Petróleo, fazendo crescer a insatisfação popular. Apesar de uma tentativa de ressureição por parte do ditador Geisel, o único jeito foi implementar um processo de abertura política a fim de garantir a permanência da estrutura econômica e social instaurada após o Golpe. 

No centro do projeto de transição estava a criação de uma democracia de baixa intensidade, com eleições regulares, alternância de poder e certos direitos elementares, mas que nada de essencial mudasse. Para tal feito, a distensão foi acontecendo a conta-gotas, com os agrupamentos mais radicais sendo introduzidos paulatinamente no jogo institucional. 

No entanto, a situação social e econômica se deteriorava rapidamente e a hiperinflação corroía a renda dos trabalhadores levando às gigantescas mobilizações operárias do fim da década de 1970 e que se estenderam por grande parte da de 1980. Diante de uma possível mobilização revolucionária, a saída do regime foi acelerar os processos de distensão e permitir a organização política dos trabalhadores a fim de integra-los no processo de autorreforma da ditadura. Nisso, a oposição liberal jogou grande papel, colocando ênfase mais no retorno pleno da democracia e menos em questionamentos à estrutura socioeconômica. Vendia-se a ideia de que as transformações sociais viriam futuramente com eleições livres. 

O nível do engano desta estratégia ficou demonstrada com o fracasso do movimento das Diretas-Já e a articulação entre a oposição liberal com as facções civis apoiadoras da ditadura. A morte de Tancredo Neves levou ao poder José Sarney, eminência parda do regime em retirada e que tratou de prosseguir a dissenção segundo os planos dos ditadores, convocando uma constituinte limitada, não investigando os crimes dos militares e, sobretudo, não mexendo na estrutura econômica cristalizada durante o regime. 

Formou-se, então, um pacto entre as forças de esquerda do país e os grupos conservadores e reacionários advindos da Ditadura. Por esse pacto, transformações pontuais eram permitidas ao país desde que não se tocasse na estrutura fundamental da propriedade privada, sobretudo no papel subordinado do Brasil no capitalismo internacional. Tal pacto foi batizado de Nova República, em que a questão social estaria no centro dos problemas políticos sem, contudo, tematizar a economia. 

Incapaz de modificar a estrutura socioeconômica, a esquerda passou a se concentrar na conquista de direitos sociais que deveriam ser codificadas na nova carta constitucional e em legislações infraconstitucionais. Acreditava-se que a ação estatal seria capaz de corrigir as graves desigualdades do país e estabelecer um desenvolvimento social para o país sem romper com o pacto. Começava assim o chamado cidadanismo, em que o indivíduo teria sua vida melhorada graças aos direitos sociais garantidos pelo poder público, ou seja, pelos serviços públicos ofertados pelo Estado. 

Porém, a promessa nunca se tornou realidade justamente devido ao subfinanciamento dos serviços públicos e as limitações da vida cotidiana dos trabalhadores, esmagados pela miséria, pelo desemprego e pela falta de perspectivas. O pacto, porém, continuou sua existência, agora explicitado pelo chamado Presidencialismo de Coalização, iniciado logo após o impeachment de Fernando Collor. 

Collor, inclusive, pode ser considerado a última etapa do processo de transição iniciado pela ditadura, pois também oriundo da oligarquia florescida durante o regime militar. Após sua saída da presidência, a oligarquia mais reacionária do país continuaria a ter papel importante, mas com ação maior no legislativo e nos Estados, assumindo papel denominado impropriamente de fisiologista, primeiro com FHC, depois com Lula e Dilma. 

A falta de mudanças após o fim do regime militar foi se juntar com as contradições oriundas da reorganização produtiva do país após o declínio da Indústria nacional gerando tensões sociais geometricamente crescentes. A frustração com a falta de mudanças e o sentimento de estagnação se agravaram com a ausência de mudanças no governo lulopetista que havia sido eleito com altas promessas de novos tempos para o país. Embora, tal como na época do Milagre, o boom das commodities tenha favorecido e mascarado as contradições, a ponto de garantir a eleição de Dilma e um fim de governo com altíssimos níveis de aprovação para Lula, a verdade é que as tensões se acumulavam de forma grave e bastaria um rastilho para explodirem. 

A crise de 2009, tal como o Choque do Petróleo, teve impacto profundo no Brasil, fazendo de imediato caírem as  entradas de divisas. Um  país desindustrializado, altamente dependente da importação de mercadorias, sentiu profundamente a nova situação com o encarecimento acelerado do custo de vida e a desaceleração da economia. Em uma sociedade com renda historicamente reduzida, a piora da inflação já significou terrível aperto financeiro e reversão de expectativas, trazendo à luz do dia as contradições acumuladas. 

As massas identificaram rapidamente a contradição entre os péssimos serviços públicos disponibilizados pelo Estado - garantidos como direitos pelo cidadanismo - e os exorbitantes gastos com as mega obras para a Copa e para as Olímpiadas. Implicitamente, aquele pacto oriundo do fim da ditadura era rechaçado nas ruas do Brasil pois se passava a exigir a efetivação da promessa de serviços de qualidade e da melhora das condições de vida cotidianas. Questionar a condição calamitosa da saúde e da educação, questionar o caos do transporte público, questionar a ruína da vida urbana e a falta de perspectiva e de qualidade de vida era colocar o dedo diretamente na ferida do Pacto urdido na República Nova. 

Por isso, tal pacto morreu em Junho de 2013, tendo essa ruptura ficado mais clara nos anos seguintes, sobretudo com o Impeachment de Dilma e a eleição de Bolsonaro. Os partidos políticos surgidos após a ditadura foram massivamente rechaçados pela população, não raras vezes de forma violenta, inclusive, e sobretudo, os partidos de esquerda, vistos como traidores do ideal de mudança social.

O ideal do cidadanismo, de trazer melhoramentos sociais sem romper com a ordem socioeconômica herdada da Ditadura bateu ali claramente no teto, entrando fragorosamente em parafuso. Nas semanas daquele Junho intenso, novas formas políticas foram possíveis, ficando tudo em suspenso. (por David Emanuel Coelho

LEIA O PRIMEIRO ARTIGO DA SÉRIE:

 DEZ ANOS DE JUNHO DE 2013: A QUESTÃO URBANA 

Um comentário:

Anônimo disse...

Agenda do futuro
https://gilvanmelo.blogspot.com/2023/06/fernando-abrucio-agenda-do-futuro.html
Abismo de uma opção histórica
https://gilvanmelo.blogspot.com/2023/06/jose-de-souza-martins-o-amansamento-do.html

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