sábado, 22 de junho de 2024

AINDA SOBRE AS CRIANÇAS, A PUTARIA, O FUNDAMENTALISMO RELIGIOSO E AS DEMAGOGIAS ELEITOREIRAS

Paulo Francis, que foi um guru do pensamento crítico nas fileiras da esquerda até a fase do
Pasquim mas depois se desencantou e descaracterizou de forma melancólica, dizia que o espaço das cartas de leitores na grande imprensa era qualificado pelos jornalistas profissionais de muro das lamentações, pois nenhum deles o levava a sério.

Eu, pelo menos, sempre respeitei os comentaristas, até porque devo já ter transformado em artigos pelo menos uma centena das respostas que dei a eles. 

Meus melhores textos e melhores falas costumam ser os que me vêm à mente no meio de uma argumentação, às vezes até contrariando a linha de pensamento que eu vinha seguindo. E nunca fui preguiçoso a ponto de desperdiçar o rumo que o artigo tomou sozinho só para não mexer um pouco no que já estava escrito.

Então, graças aos pertinentes comentários do SF ao meu artigo  sobre o antepenúltimo sincericídio desastroso do Lula, posso agora acrescentar um complemento àquele post que, espero, vá enriquecer a discussão que levantei. Tomara que os leitores concordem. (por Celso Lungaretti)
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JÁ NÃO DÁ MAIS PARA BOTARMOS CRIANÇAS SOB UMA REDOMA
Essa imagem do menor de idade como anjinho assexuado foi feita em cacos há 119 anos, quando Freud publicou seu Três ensaios sobre a teoria da sexualidade. Temos é de preservar as etapas de amadurecimento sexual pelas quais passam as crianças, impedindo que adultos maliciosos as acelerem para locupletarem-se, traumatizando os pimpolhos.
  
Já não dá mais para colocarmos crianças sob uma redoma, tentando vedar-lhe o contato com os conteúdos adultos. Não se deve nem se consegue censurar toda uma sociedade na era da internet.

Ainda no tempo das fitas VHS, uma amiga minha, voltando para casa numa tarde mais cedo do que o habitual, surpreendeu seus filhos e outros colegas de escola, todos numa faixa de 12 anos, assistindo a um filme de sadomasoquismo explícito que haviam retirado da videolocadora com a carteirinha paterna.

Quanto aos fundamentalistas religiosos, sua idealização da inocência infantil não passa de uma ilusão compensatória por eles saberem-se apodrecidos até a medula. 

Isso, aliás, me faz lembrar uma frase antológica do filme Exótica (1994), do Aton Egoyan, quando o comentarista de uma boate sofisticada pergunta à plateia, durante o número de uma stripper produzida como estudante: "Por que uma colegial nos parece tão fascinante, será porque ela tem a vida inteira pela frente enquanto nós já desperdiçamos as nossas?"

Levar essa gente a sério, nem que seja por demagogia eleitoreira como no caso do Lula, é absolutamente indesculpável para as pessoas civilizadas.

Retrocesso civilizatório só convém aos bárbaros. A frase do Lula me fez lembrar o Bolsonaro recomendando a cloroquina no auge da covid-19. (CL)

8 comentários:

Neves disse...

In Trump we trust: religious right on crusade to make their man president

https://www.theguardian.com/us-news/article/2024/jun/22/trump-christians-president-religion

SF disse...

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Opa! Celso.
No meu comentário a respeito da censura não me referi ao desenvolvimento da libido infantil estudada por Freud e sua filha.
Destaquei um episódio no qual um bolsominion, velho, gagá e desafinado queria censurar uma professora de canto que, só na cabeça dele, estava executando a Internacional.
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E no outro episódio referi-me a uma interação que tive que uma senhora, idosa como eu, que me mandou um banner de um seminário de sexologia.
Eu pensei que seria algo libertador... ledo engano.
A mulher que pintou e bordou agora prega o celibado e abstinência!
Citando a bíbblia e tals.
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Bobo que sou, citei logo Reich e o livro fundamental para a compreensão da importância da atividade sexual sadia, GENITAL e orgasmática para os ADULTOS.
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Freud e Reich concordaram quanto ao mecanismo neurótico.

A censura com que algumas memórias são mantidas fora da consciência cotidiana, mas que afloram nos atos falhos, nos sonhos e nos chistes.
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Reich acrescentou a esses sintomas o sintoma da couraça muscular como parte deste mecanismo repressivo interno.

Sabe o quadril rígido, o peito de pombo...?

Daí que além da livre-associação Reich fazia o paciente se conscientizar da rigidez dos músculos e, as vezes, tocava o paciente...
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Sob todo afeto violento existe o amor traído.
Algo assim, dizia Reich.
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A barra fica tão pesada quando se toca em assuntos a respeito dos mecanismos neuróticos que Segismundo lançou mão de uma teórica pulsão "Tanatos", o princípio da morte, para disfarçar a sua consciência de que é o princípio do Prazer quem domina a psique.
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Fróide era ciumento, egoísta, humano (demasiadamente humano) e fez tudo para expulsar Reich da psicanálise, pois ele defendia que só existia o princípio do prazer e explicou o masoquismo a partir dele.
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Ferindo-se, brigando, guerreando, humilhando-se o ente humano sente um alívio pervertido para a tensão psíquica acumulada; expressa na couraça muscular e nas atitudes neuróticas.
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O alívio sadio e proposto pela natureza é o orgasmo genital entre pessoas adultas que se respeitam e livremente se amam.
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Já o conhecimento do desenvolvimento desta função é uma questão ainda mais difícil de ser assimilada e aceita socialmente, pois pressupõe que pessoas sãs, orgásticas, responsáveis e amorosas transmitam este amor a vida, ao prazer, a paz e a decência inata dos processos naturais para as crianças.
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Coisa que, felizmente, está cada vez mais comum.
Como disse, ideias e, principalmente, a ciência não morre.
Quem não vive de doença e guerra defende a abordagem científica.
*
Vamos que vamos, rumo a uma humanidade sadia!
Avante!
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celsolungaretti disse...

Meu caro SF, sua mensagem inspirou-me reflexões, mas isto não quer dizer que eu estivesse respondendo ipsis litteris a ela. Referi-me ao clássico do Freud pois foi o primeiro a detonar a imagem das crianças como anjinhos assexuados. Quer você aceite, quer não, foi um divisor de águas.

Nunca pretendi ser psicanalista, nem estudar a fundo a psicanálise. Mas, quando estava preso, percebi claramente que a derrota da luta armada se deve e muito muito à forma como a ditadura conseguiu manipular os cidadãos comuns pela lavagem cerebral do "milagre", convencendo boa parte deles a agirem contra seus verdadeiros interesses econômicos.

Em 1968 já tentara ler A IDEOLOGIA DA SOCIEDADE INDUSTRIAL, mas a falta de conhecimento freudiano me fez desistir. No final da minha fase de prisioneiro político, contudo, mandaram-me para um quartel mais civilizado para que não voltasse às ruas parecendo aqueles mortos-vivos resgatados pelos aliados dos campos de concentração nazistas. Pegaria mal para eles.

Nesse curto período em que realmente fui tratado como os prisioneiros políticos deveriam ser, pude pedir que meus pais me trouxessem livros da biblioteca circulante da Mooca e os trocassem a cada visita. Eu devorava seis por semana.

E evitei dar bandeira, pois não me convinha abusar de uma regalia rara depois de tanto tempo de tratamento inclemente: o período de torturas e incomunicabilidade durou 75 dias, mas continuei privado de coisas básicas, com o ouvido direito gotejando pus e sendo obrigado a escutar os gritos terríveis dos que ainda eram torturados.

Certa manhã, na metade do banho de sol numa espécie de cela sem teto e com arame farpado no topo da parede, o sargento chegou e disse: "Desculpa, mas hoje o sol vai acabar mais cedo. Você não gostaria de ver o que vai acontecer aqui". Não vi, mas ouvi tudo da minha cela.

E, um mês depois, conheci quem foi torturado naquele dia, um professor do PCB cujos ossos dos dedos da mão ficaram expostos. Os choques derreteram a carne. Também estava sendo recuperado para não causar impressão tão horrível ao sair.

Foi nessas circunstâncias que li, de cabo a rabo, as obras do Freud. E meu foco foi sempre o dos efeitos sociais da repressão sexual. Eu pretendia curar a sociedade, não as pessoas individualmente.

Mal fui colocado em liberdade, pude ler o Marcuse e entendi tudo com a maior facilidade. Depois, quando foi lançado no Brasil o VIDA CONTRA MORTE do Norman O. Brown, constatei que ele fora bem mais fundo nos assuntos que me interessavam.

Finalmente, discordo de ti com relação ao Reich, que me pareceu simplório e adepto de soluções fáceis. Sua glorificação da relação genital me pareceu equivocada na teoria e na prática.

Sempre percebi que a descarga do sêmen não é a consumação do prazer, mas sim seu final, quando o homem já não consegue mais aguentar a tensão que se avoluma dentro dele. Eu tentava prolongar ao máximo o tempo de prazer antes do gozo, porque era o momento em que eu e a companheira realmente nos fundíamos como se fôssemos um só corpo.

O ideal para os seres humanos seria temem sempre uma relação cordial e amorosa (em sentido amplo) com seus semelhantes ao invés de serem encarniçados competidores pelos parceiros que lhe atraem.

Se conseguirmos algum dia sairmos da pré-História da humanidade, seremos assim. E muitos da geração 68 já tentamos sê-lo então, ao montarmos comunidades para nos relacionarmos como homens novos, irmanados pelas convicções e sentimentos, não pelo sangue.

SF disse...

***
Grande Celso!

Esta experiência de dor extrema não tenho.

Direi da minha.
*
O que eu disse de Fróide digo de Reich.
Fróide foi um Padin Inácio e, com sua prepotência, conseguiu apenas transformar psicanálise em uma EAD.
Psicólogos tem que ter formação presencial, acadêmica e formal.
Psicanalista, qualquer um que saiba ler e escrever pode ser.
*
Ao boicotar a solução da função do orgasmo para a neurose (e outros avanços teóricos); o que equivaleria a uma "cura", ele queria perpetuar uma relação neurótica (a resistência) e lucrativa com seus pacientes.
Dar alta significaria perder dinheiro.

Já Reich... esse tentou ganhar dinheiro vendendo vento encaixotado. Foi preso por charlatanismo.

Ambos tinham fixações na fase anal retentiva.
Como, afinal, era toda a sociedade da época em que viveram.
***
Fases anal retentiva (acúmulo, possessividade) e fase anal expulsiva (sadismo) e os transtornos obsessivo-compulsivos de limpeza, pureza e demais ritualismos neuróticos.
Não a toa foi uma época de guerras e higienismo.
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O que não se pode negar é a genialidade do trabalho teórico deles.
*
A solução de Reich é simples e barata.
E funciona!
E não tem nada a ver com controlar isso ou aquilo.
É justamente quando se para de querer controlar (fase anal) que a natureza pode realizar o processo perfeito de cura das neuroses (genital).
*
Duas frases>
Freud - o são recorda, o neurótico repete.
Reich - o neurótico não chega ao orgasmo.
***
F= O mecanismo de evitar recordação da situação traumática no neurótico faz ele criar os sintomas;
R= O gozo e ejaculação não são orgasmo, qualquer neurótico tem isso, mas os sintomas não desaparecem.
*
Fróide tinha um nítido sintoma da fase oral não superada e que custou-lhe o maxilar e dolorosas cirurgias.
Mas o narcisismo era tão grande que admitir que a couraça estava naquela região e dar razão a Raiche... isso nunca!
Ele evitava com chistes.
***
Enfim, as teorias de Freud serviram para o sobrinho vender cigarros.
Todos ganharam dinheiro e câncer.
*

Túlio disse...

Olá, CL
Uma curiosidade, nos tempos de prisioneiro, como você e os demais companheiros lidavam com a depressão ?

celsolungaretti disse...

Túlio, eu não sou o mais indicado para falar sobre isso, porque nunca fiquei nos "aparelhões" da repressão, mas isolado no DOI-Codi/RJ, PE da Vila Militar e Regimento de Cavalaria.

O período de incomunicabilidade e torturas foi, obviamente infernal, um teste contínuo à minha capacidade de resistência. Percebi logo que não conseguiria enfrentar aquela barra na valentia e que tinha de apelar para a inteligência e dissimulação.

Fingindo-me mais fragilizado do que estava, consegui preservar informações importantes e não ser responsável por quedas de companheiros com posição organizacional superior ou equivalente à minha (cada um desses que caía causava enorme estrago).

Infelizmente, nem sempre os companheiros perceberam o jogo que eu estava fazendo. Mas, com os tais balanços das quedas, hoje pode-se facilmente constatar que, aparências à parte, não fui nenhum anjo exterminador.

E o tempo mostrou que muito menos tive responsabilidade na queda da área guerrilheira, cuja localização eu nem sequer conhecia. A repressão só chegou lá após capturar viva uma pessoa que sabia o lugar.

Mas, é claro que fiquei abalado, não estava preparado para algo tão extremado. E a falta de informação me fez cometer erros tolos, como preencher irrefletidamente testes psicológicos que indicaram aos milicos que eu tinha inteligência acima da média e os estava manipulando. Depois disso sentiram-se insultados e apanhei mais. Passaram a desconfiar de tudo que eu dizia. (continua)

celsolungaretti disse...

(continuação) O período prolongado de tortura e a percepção de que lá fora eu estava sendo bode expiatório de culpas alheias (ficou claríssimo para mim quando não entrei na lista de troca pelo embaixador alemão) foi um golpe duríssimo.

Outro, ter sido transferido do DOI-Codi para outra unidade barra pesadíssima, a PE da Vila Militar, quando já estava acreditando que o pior havia terminado. Acontece que aquele pessoal fora afastado da tarefa de captura dos militantes da luta armada e queria a todo custo ser reintegrado no esquema, por causa das recompensas: grana dos empresários fascistas, valores em dinheiro e equipamento que apreendiam conosco e dividiam entre si, medalhas do pacificador, promoções na carreira, etc.

Quando me estouraram o ouvido embora tudo que eu conhecia já houvesse sido alterado (65 dias depois da prisão, nem que quisesse eu teria informações para lhes fornecer) o elástico arrebentou. Aguentar-me para salvar companheiros era uma coisa, sofrer por uma questão de imagem já não me importava mais. Foi quando o peso da derrota desabou em cheio sobre mim.

Escrevi aquele pseudo-arrependimento com uma companheira sendo torturada na sala ao lado e os milicos dando-me socos no corpo quando entravam e saíam. O comandante da tortura, tenente Aílton Joaquim exigia que eu escrevesse algo para convencer os companheiros a não entrarem na guerrilha e, na verdade, eu já estava consciente de que tínhamos sido derrotados e não era hora de jovens serem destruídos fisica e/ou psicologicamente, muito menos assassinados. Melhor sobreviverem para lutarem de novo adiante.

O que não estava nas minhas cogitações é aparecer em TV. Magro como nunca fui e com aquelas marcas pretas de tortura no rosto, achei que a coisa ficaria na conclamação escrita. Aí me tiraram da solitária imunda na qual passava as madrugadas só de cueca, tiritando de frio, deram cama, coberta, devolveram roupa e me deixaram em paz. Esgotado, passei os dias seguintes dormindo quase todo o tempo. (continua)

celsolungaretti disse...

(continuação) Dois ou três dias depois, acordaram-me de madrugada e disseram para me vestir. A caminho da TV Globo, no Jardim Botânico, o capitão Guimarães (que depois viraria bicheiro e presidente de associação de carnavalescos) apontou uma ponte e disse que, se não repetisse a lengalenga que tinha escrito, nem voltaria para o quartel. Seria encontrado enforcado embaixo da ponte.

Não lembro de quase nada que falei na ocasião. Mas, não deixei de notar que capricharam na maquilagem para cobrir as marcas pretas no rosto. Nos dias seguintes continuei dormindo muito e nem sabia se aquela ida à TV havia existido ou sido um pesadelo.

Não tinha depressão, mas sim a mente confusa até que o companheiro Wellington Moreira Diniz, também prisioneiro no quartel, passou mal do coração e os milicos decidiram permitir que um soldado ficasse apanhando livros da biblioteca do quartel e levando para ele pensar em outras coisas. Consegui pegar carona no esquema e a névoa na minha cabeça foi se dissipando. A leitura sempre foi um estímulo muito forte para mim.

O tempo restante na PE da Vila Militar foi de recuperação de forças (emagrecera uns 30 quilos), ginástica na cela para me fortalecer, ler os livros (para nossa sorte, o quartel tinha as obras completas do Júlio Verne, então eu e o Wellington lemos o lote inteiro), puxar lembranças felizes exatamente para não me deprimir e analisar os erros que haviam nos levado à derrota.

Na segunda metade do meu tempo de prisão eu até me mantive mais sereno. Mas, ao ser libertado, vi que havia ainda muita emoção represada. Passei um tempo esquisito, metendo-me em situações perigosas e desaconselháveis para quem acabava de sair da prisão, mas conseguindo me safar porque a convivência com o perigo me ensinara a administrar tais situações.

Aí a sorte me socorreu e companheiros do movimento estudantil me convidaram para participar da comunidade alternativa que eles estavam montando. A análise que deveria ter feito mas naquele tempo achava desnecessária (e nem teria como pagar...) acabou substituída por aquela vida solidária que praticávamos em recinto fechado, um apoiando e ajudando o outro, enquanto o inferno grassava lá fora. Não poderia durar muito e nem durou.

Mas, foi o suficiente para eu voltar a andar com as minhas próprias pernas, iniciando carreira jornalística e alugando quitinete barata para morar com uma companheira.

Talvez eu haja sobrevivido moralmente por ter a convicção de que havia sido injustiçado e que precisaria manter-me vivo se quisesse revelar a minha verdadeira história, pois ninguém o faria por mim. E acabou sendo exatamente o que aconteceu, 34 anos depois, quando finalmente tive provas concretas de que o "arrependimento" havia sido forçado e havia sido uma farsa.

Resgatei a minha credibilidade porque sobrevivi. O Massafumi, que tinha sido mais vítima do que vilão (a organização em benefício da qual ele se tornou procurado pela repressão no país inteiro aceitou o desligamento dele e simplesmente o abandonou, miserável, obrigado até a dormir em barraca de feirante no Mercado Municipal), se desesperou e cinco anos depois, meio louco, obteve sucesso na terceira tentativa de suicídio. Ter sobrevivido permitiu-me também lançar luzes sobre o drama terrível que ele viveu.

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