segunda-feira, 8 de agosto de 2022

10 ANOS APÓS A MORTE DE SARACENI, UM NOVO DESAFIO ESTÁ NAS RUAS

Paulo César Saraceni morreu em 2012.

Tinha 78 anos e fazia cinema desde 1959.

Em mais de meio século de atividades, dirigiu 13 filmes, nove dos quais também roteirizou.

Foi um dos fundadores do  cinema novo, mas nem de longe fez obras de importância equiparável às dos dois outros parceiros de empreitada: Glauber Rocha (indiscutivelmente, o maior cineasta brasileiro de todos os tempos) e Nelson Pereira dos Santos (bem mais prolífico e realizador de clássicos como Rio 40 Graus e Vidas Secas).

No entanto, Saraceni constituiu-se numa referência muito forte para minha geração, por um único motivo.

Seu O Desafio, lançado em 1965, foi provavelmente a primeira resposta cinematográfica à quartelada.

Enfoca os sentimentos de culpa, impotência e prostração subsequentes à vergonhosa derrota sem luta.

Foi o mal-estar que acometeu toda aquela esquerda: supunha-se a um passo do poder, iludida pelo triunfalismo inconsequente do Partido Comunista Brasileiro e seu principal dirigente (Luiz Carlos Prestes), mas acordou ouvindo marchas militares no famigerado 1º de abril de 1964.

E dá-lhe más ressacas! E dá-lhe lavagens de roupa suja! E dá-lhe lutas internas no partidão! E dá-lhe rachas!

Em 1965, a esquerda lambia as feridas e se reconfigurava, voltada para dentro de si mesma. Não reagia.

Aí, foi lançado
O Desafio. E juro! o título apareceu pichado nos muros de São Paulo. Só o título, com a tinta escorrendo. Eu tinha 14 anos, via aquilo e nada entendia. Ignorava que fosse uma mensagem vinda das catabumbas: não estamos mortos!

Só em 1967, dando os primeiros passos no movimento estudantil, fui assistir ao filme e compreender o motivo das pichações.

E, francamente, não gostei daquele imenso desencanto que ele flagra, o atoleiro no qual se move Marcelo, o personagem politizado (interpretado pelo Vianninha, de saudosa memória), durante quase todo o tempo.

Mas vibrei com o final, quando ele enfim levanta, sacode a poeira e dá a volta por cima, decidido a voltar ao bom combate.

Isto ficou apenas sugerido, como se fazia necessário sob o tacão da censura. Depois de um porre com um repulsivo colega de trabalho, vão ao apartamento deste, cuja esposa se despe e se-lhe oferece. Antes que ele tenha qualquer reação, o marido acorda e fita ambos, em meio à sua névoa alcoolica. 

Marcelo empurra a mulher e vai embora, enojado. Desce uma escadaria com expressão resoluta, afaga a cabeça de um menino pobre e se distancia, marchando ao encontro do seu destino.

Tudo isto ao som de um tema da peça Arena conta ZumbiÉ um tempo de guerra,  canção que Augusto Boal, Gianfrancesco Guarnieri e Edu Lobo haviam derivado da poesia antológica de Bertolt Brecht, para usar o esmagamento do quilombo de Palmares como metáfora do golpe militar.
Na peça, era a lição que um guerreiro às portas da morte legava aos que viriam depois. Uma sugestão velada também, claro ("Eu sei que é preciso vencer/ Eu sei que é preciso lutar/ Eu sei que é preciso morrer/ Eu sei que é preciso matar"). 

Só que parecia algo meio distante, lá pra frente, pois o momento era de derrocada.

No filme, ficou mais fácil perceber que se tratava do passo seguinte, imediato: um recado de que não só a luta tinha de ser retomada, como assumiria doravante características de guerra.

Foi profético. Houve mesmo a guerra, de consequências trágicas para a esquerda (quantos quadros insubstituíveis foram dizimados!), mas inevitável: ela só reconquistaria o respeito do povo caso se dispusesse a sangrar por seus ideais, como deixara de fazer em 1964.

Muitos dos que não pegaram em armas recriminaram nosso  vanguardismo, nosso imediatismo pequeno-burguês. Segundo eles, só servíramos para acirrar a repressão e fornecer pretextos para o endurecimento do regime.

Omitiram ter sido exatamente sua tibieza em 1964, quando deixaram de travar a luta em condições bem mais favoráveis, que nos obrigou a assumir adiante a missão quase kamikaze de lavar a honra da esquerda, virando a página da desmoralização e restituindo-lhe a credibilidade. 

Resolvi rememorar o desafio de 1965 porque um novo desafio será lançado às forças da intolerância e do retrocesso daqui a três, diante da Faculdade de Direito da USP,  no Largo São Francisco, com a leitura de dois manifestos antigolpe que têm tudo para detonarem as últimas esperanças do presidente delinquente. 

Aqueles que pensam por ele (pois se trata de uma faculdade da qual o Bozo é carente) temem que o ato da 5
ª feira consolide definitivamente a rejeição ao celerado, desencadeando a revoada dos apoiadores comprados por cargos e verbas públicas para a arca de Noé do Lula, na qual cabe tudo, até cobras e lagartos...

Nisto, pelo menos, eles estão certos: tal página, uma das mais vergonhosas da História do Brasil, deverá mesmo começar a ser virada nesta quinta.

Enquanto esperamos, que tal darmos uma olhadinha em O desafio, para irmos entrando no clima? (por Celso Lungaretti) 

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