terça-feira, 14 de abril de 2020

NÃO PODEMOS MAIS ESQUIVAR-NOS DESTA AMARGA VERDADE: A ESQUERDA AJUDOU A CHOCAR O OVO DO BOLSONARISMO

Vivemos numa sociedade que:
— desperdiça o potencial já existente para se proporcionar uma existência digna a cada habitante do planeta;
 que faz as pessoas trabalharem muito mais do que seria necessário para a produção do necessário e útil;
 que condena parcela substancial da população economicamente ativa ao desemprego, à informalidade e à mendicância;
 que estimula ao máximo a compulsão consumista sem dar à maioria a condição de adquirir seus objetos de desejo;
 que retirou do trabalho qualquer atrativo como realização individual, tornando-o apenas um meio para obtenção do vil metal (ou seja, uma nova forma de escravidão).

Então, os que ainda têm emprego e os empreendedores continuarão irrealizados, esforçando-se demais para nunca obterem as gratificações almejadas, pois a lógica do capitalismo é perpetuar a insatisfação e mitigá-la com o consumo (a cenoura colocada à frente do asno para que ele continue puxando a carroça). Um círculo vicioso perverso que faz a fortuna dos analistas, dos farsantes religiosos e dos picaretas da auto-ajuda.
É paradoxal que, em nossa época, formidáveis avanços científicos e tecnológicos coexistam com uma regressão ao ambiente medieval, com os nobres entrincheirados em condomínios de alto padrão, circulando em veículos brindados e só podendo levar vida social em shopping centers, não ousando mais exporem-se fora de suas fortalezas. No exterior desses espaços fortificados e vigiados, os bárbaros estão sempre à espreita, prontos para desferir seus golpes.

Uma previsão terrível de Friedrich Engels, um dos pais do marxismo: quando uma sociedade consegue aniquilar as forças progressistas que poderiam levá-la a um estágio superior de civilização, acaba sendo destruída pela barbárie. O paralelo é com Roma, que venceu os gladiadores de Spartacus mas sucumbiu aos povos atrasados, condenando o mundo a séculos de trevas.
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TROCANDO EM MIÚDOS
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Na ótica marxista, o capitalismo representou um estágio superior de civilização em relação ao feudalismo. No entanto, às vezes o sistema que já esgotou sua contribuição positiva é bem-sucedido em bloquear as forças de mudança. Foi o caso de Roma e está sendo o do capitalismo hoje.

Quanto a Roma, o que pegava era a escravidão. O passo seguinte seria reestruturar o Império a partir do trabalho de homens livres. E era a isso que levaria uma eventual vitória de Spartacus e seus gladiadores. Quando Spartacus foi derrotado, Roma e a escravidão entraram em lenta decadência, até que os bárbaros derrotaram o Império e o retalharam.

Então, voltou-se a um modo de produção bem primitivo: uma economia de base rural, um patamar há muito superado. Só a partir do mercantilismo se alcançou o estágio de desenvolvimento que a urbana Roma atingira. E a História passou a caminhar de novo para a frente.

Tanto o escravagismo quanto o capitalismo foram pujantes durante seus primórdios, para depois esgotarem sua contribuição e passarem a travar o desenvolvimento das forças produtivas. E atualmente é o capitalismo que cumpre esse papel de deter o progresso.

P. ex., se hoje o aparato produtivo se voltasse para o atendimento das necessidades sociais, ganharia um impulso formidável. Já pensaram em tudo que teríamos de fazer para compatibilizar nossas atividades econômicas com o meio-ambiente? 

No direcionamento das pesquisas médicas para a cura das moléstias e a descoberta de vacinas eficazes, em vez de investir-se prioritariamente em medicamentos que apenas prolongam a vida dos pacientes e amenizam seu sofrimento? 

No monumental esforço de educação em massa que teria de ser empreendido para que todos os cidadãos, sem exceção, se tornassem realmente civilizados?

Bem vistas as coisas, a história da humanidade foi até agora a história da luta contra a necessidade. Só no século 20 passaram a existir condições científicas e tecnológicas de se produzir o suficiente para garantir uma sobrevivência digna a cada habitante do planeta. A possibilidade de atingirmos um estágio superior de civilização atualmente, é enorme. O problema deixou de ser a escassez, mas sim a adoção de prioridades erradas.

Ultrapassamos a barreira da necessidade e estamos prontos para ingressarmos no reino da liberdade. Só falta direcionarmos o potencial produtivo para o que é realmente necessário e útil: habitação, alimentação, vestuário, saúde, cultura, esporte, lazer.

Os homens poderiam trabalhar muito menos, viver muito bem e desenvolverem plenamente suas potencialidades. É tudo questão de mudarmos o foco. Para que precisamos de bancos, afinal? Das várias burocracias? Da propaganda que exacerba o consumo?
Escravidão e feudalismo não surgiram por mandamentos divinos. Resultaram de circunstâncias históricas e foram descartados quando as circunstâncias mudaram. O capitalismo também pode ser substituído por uma organização diferente da vida econômica e social.

É ultrajante que ainda exista tanta gente passando fome, tantos desempregados e subempregados. Quanta sordidez e quanto sofrimento inútil!
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TOQUE DO EDITOR — Caso os leitores não tenham notado,  o texto acima nada tem de novo. Todas as suas frases foram extraídas do meu artigo A barbárie nos ronda (confiram aqui), que coloquei no ar há mais de 13 anos, em 22/02/2007, ainda no blog O Rebate, pois o Náufrago da Utopia surgiria apenas em agosto de 2008. 

Só acrescentei o intertítulo, nenhuma palavra mais. E deletei algumas passagens menos relevantes e outras que evidenciariam ser ele originário da década passada, além de melhorar a diagramação.  

Perguntarão os leitores se isto não passa de um exercício de narcisismo ou tenho algo mais sério em mente? Tenho.
É que A barbárie nos ronda foi meu artigo daquela época no qual mais me alonguei sobre um posicionamento que perpassava muitos dos meus textos de então: o de que o compromisso dos revolucionários é conduzir a humanidade a um estágio superior de civilização.

Isto porque o populismo de esquerda (leia-se PT)  considerava irrelevante esta proposição marxista. Passara a nortear-se pela estreiteza dos critérios geopolíticos e pela amoralidade da realpolitik, adotando a postura utilitarista de que, para desgastar as nações capitalistas avançadas, valia tudo (mesmo apoiarmos as mais retrógradas tiranias fundamentalistas dos países árabes, que ainda estavam espiritualmente estacionadas na Idade Média!) e tratar os direitos humanos como perfumarias (já que algumas nações pseudo-socialistas não davam a mínima para eles).

Preguei no deserto, pois havia bem poucos ouvidos de esquerda abertos para escutarem críticas ao partido que estava no poder e era dono de todas as boquinhas a serem distribuídas aos que fechavam os olhos à sua descaracterização. Aliás, também nisto não havia novidade, pois acontecera exatamente o mesmo, em escala bem maior, durante o stalinismo.

Os resultados estão aí: arrogantes e impermeáveis às críticas que poderiam revitalizá-los e melhorá-los, tanto o stalinismo quanto o PT ruíram fragorosamente.

E, no terreno semeado pelo populismo de esquerda, de desprezo pelo pensamento, pela ciência e pelos valores humanistas, com um líder cheio de limitações intelectuais, políticas e ideológicas sendo idolatrado como um messias, brotou o populismo de direita, que não passa de uma versão mais tosca e exacerbada dos mesmos defeitos. 

As boçalidades que hoje tanto nos repugnam  encontraram terreno fértil entre o povão porque ele passara anos e anos sendo doutrinado com base em meia-dúzia de slogans simplistas (pois o que dele se queria eram apenas os votos, não uma participação em pé de igualdade), até ficar acreditando piamente que, como diziam os versos sarcásticos da canção Cambalache¡Todo es igual!/ ¡Nada es mejor!/ Lo mismo un burro/ Que un gran profesor...

Eis que hoje, ao invés de um grande professor como o FHC, temos na presidência da República um burro chamado Bolsonaro. Alguém está gostando? 

Mais: alguém já se deu conta de que a forma chocante como o populismo de esquerda ultrapassou todos os limites da civilidade para assassinar a reputação de FHC tem muito a ver com a perda de respeito dos incultos pelo conhecimento arduamente adquirido? 

E que, graças a isto, essas hordas de primatas já não se envergonham (pelo contrário se orgulham), de desfilarem em carreata pela avenida Paulista, bloqueando ambulâncias e ecoando o mais grotesco besteirol da extrema-direita?   

Tomara que as amargas lições que estamos recebendo há 15 meses nos façam perceber que, findo esse show de aberrações extemporâneo e que já está nos estertores, teremos de reconstruir a esquerda de forma bem diferente, reatando o compromisso com a civilização, com os interesses superiores da humanidade, com a plena liberdade, com a solidariedade, com a compaixão e com o pensamento crítico, pois estes são componentes indissociáveis da revolução com que Marx, Proudhon e outros titãs sonharam. 

A igualdade econômica que, enquanto depreciam o restante, os reducionistas valorizam em sua retórica (sem, contudo, conseguirem viabilizá-la na prática), não basta.

Certa vez constatei que os 12 mandamentos de Cristo eram reverenciados durante os feriados religiosos, mas em todos os outros dias do ano os cristãos se norteavam, isto sim, pelo 11º mandamento: Mateus, primeiro os teus.

É desolador percebermos que se pode afirmar quase o mesmo sobre os ensinamentos dos grandes pensadores do marxismo e do anarquismo... (por Celso Lungaretti)  

5 comentários:

Anônimo disse...

"Eis que hoje, ao invés de um grande professor como o FHC, temos na presidência da República um burro chamado Bolsonaro. Alguém está gostando?"

"Mais: alguém já se deu conta de que a forma chocante como o populismo de esquerda ultrapassou todos os limites da civilidade para assassinar a reputação de FHC tem muito a ver com a perda de respeito dos incultos pelo conhecimento arduamente adquirido?"

Caraca, véio, precisava colocar esse vendilhão traíra como vítima no seu texto ?

Este ultraneoliberalismo do (des)governo bozo-tchutchuca era o grande sonho do "príncipe dos sociólogos"...

Parece até que você defende o "governo de notáveis" dos milicos ou a democracia sem povo da oligarquia.

celsolungaretti disse...

Eu defendo que as disputas políticas se travem em torno de valores políticos e não da destruição de uma pessoa que não era nossa inimiga e tinha trilhado conosco outras etapas da jornada.

E o pior de tudo foi que a coisa descambou para uma desqualificação indiscriminada do saber. Para destacarem um intuitivo inculto, tentaram provar que um mínimo de formação intelectual era desnecessário para alguém conduzir o povo.

Tudo que usaram para convencer o povo de que o Lula servia para presidente pavimentou o caminho para que o povo agora aceitasse outro intuitivo inculto muito pior. Foi a chamada mágica besta.

Quanto ao Lula, foi o principal responsável pela vitória do Bozo ao fazer a esquerda perder um tempo vital enquanto encenava a farsa egolatra da "candidatura fantasma" e ao torpedear a união da esquerda puxando o tapete do Ciro Gomes.

E agora, quando passamos pela pior emergência sanitária nos últimos 102 anos, ele simplesmente some do mapa, não sem antes torpedear o "Fora Bolsonaro".

É um personagem muito mais nefasto na História brasileira do que o FHC. Deixou uma terra arrasada e uma esquerda arrasada atrás de si.

Henrique Nascimento disse...

Muito bom, Celso. Lembro-me do fora FHC. Hoje o fora Bolso não é politicamente estratégico. Espertalhões. Dá asco!

Anônimo disse...

Desculpe-me, mas agora você extrapolou de vez. Poderia até concordar que os dois são duas faces da mesma moeda, mas jamais assumir que o Lula foi mais nefasto que o dom fernando.

FHC, na contra mão dos países ricos, isentou do IR os gordos dividendos do capital e está assim até hoje. Doou a Vale, que nos presenteou com a tragédia de Mariana e Brumadinho. Deu dinheiro pros banqueiros com o Poer. Quebrou o brazil três vezes. Colocou os tanques do exército nas refinarias e quebrou a organização sindical dos petroleiros etc etc etc

celsolungaretti disse...

O FHC fez o óbvio de um presidente da República na democracia-burguesa: serviu ao capitalismo.

Já o Lula herdou uma esquerda no auge do seu prestígio e já nos anos 80 começou a expurgar as tendências de esquerda, esvaziar sua postura combativa e tangê-la unica e exclusivamente para as disputas eleitorais.

Quando as primeiras prefeituras importantes foram conquistadas pelo PT, ele deu mão forte para aquele advogado compadre dele montar um esquema de desvio de recursos municipais para os cofres do partido. O Paulo de Tarso Venceslau não se prestou a essa maracutaia e acabou expulso.

A Comissão de ética que o PT convocou para apurar o caso, presidida pelo Hélio Bicudo, decidiu que o corrupto deveria ser expulso como laranja podre que era e o Venceslau por ter levado à imprensa um problema interno do partido. O Lula ameaçou sair do partido também, se não mudassem a decisão. A Executiva Estadual fez-lhe a vontade.

Na ocasião, fui um raríssimo esquerdista a hipotecar publicamente solidariedade ao Venceslau, que eu respeitava como respeito todos que tiveram coragem de pegar em armas contra a ditadura. No artigo que escrevi para o Jornal da Tarde, profetizei que, ao expulsar um militante honesto para preservar um fdp, o PT estava emitindo uma senha de "liberou geral" e plantando as raízes de sua própria destruição. E foi exatamente isto que aconteceu.

Para não alongar muito, pulemos para a escolha da Dilma para ser sua sucessora porque ele não podia acumular três mandatos. Havia pelo menos uma dezena de quadros muito melhores, mas ele optou por aquela que ele considerou incapaz demais para fazer-lhe sombra. Aí a Dilma acabou com a economia do País no primeiro mandato.

Depois, no segundo, eu e muitos outros analistas cansamos de advertir que ela não tinha competência para segurar a onda, depois de ter incubado uma baita recessão. Várias vezes favoreci o "Volta Lula" porque, por menos que gostasse dele, eu sabia que a Dilma seria infinitamente pior. Não adiantou. Ele a deixou completar a destruição, propiciando a devolução do poder para a direita.

Por último, as duas enormes lambanças do Lula na eleição de 2018 mandaram o poder para mais à direita ainda. Se o Bolsonaro não fosse de crassa incompetência, teria criado um poderoso regime fascista no Brasil. Estava com a faca e o queijo na mão. Só escapamos dessa por causa dos erros do nosso inimigo, não por nossos méritos.

Nem que vivesse mil anos o FHC conseguiria prejudicar tanto a esquerda como o Lula nas últimas décadas. Tanto que agora noutro instante decisivo, ela simplesmente sumiu do mapa e quem desconstruiu o Bozo foram o Supremo, os governadores, o Maia, o Alcolumbre e o Mandetta. A única notícia que tivemos do Lula foi que ele comandou a decisão de o PT negar apoio ao "Fora Bolsonaro".

O Ulysses Guimarães também não era um dos nossos, mas "diretas-já" nunca teria sido o movimento que foi sem sua coragem. O Lula é o único líder que hoje poderia fazer o mesmo pelo "Fora Bolsonaro". Mas, não é nem um centésimo dos homens que foram o velho Ulysses e o Brizola (em 1961, quando evitou a primeira tentativa de golpe militar).

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