quarta-feira, 20 de junho de 2012

A RESISTÊNCIA ARMADA, NUMA ÓTICA DE COMBATENTE

Com o brilhantismo de sempre, o nosso bom Carlos Lungarzo discorreu sobre os justiçamentos, por parte de seus companheiros de armas, de militantes tidos como traidores, no artigo Guerrilha: os aspectos "obscuros" (acesse aqui). A discussão foi suscitada pela reportagem que a Folha de S. Paulo publicou no último domingo (17) sobre quatro desses episódios, ocorridos durante a ditadura militar.

Lungarzo se propôs também a fazer "uma reflexão respeitosa" sobre minha própria resposta ao jornal da ditabranda, TFP + CCC + Ternuma + Opus Dei = Folha de S. Paulo (acesse aqui), por discordar de uma referência que eu teria feito "às motivações de resistentes desesperados pela infiltração".

Vale esclarecer que eu apenas tentei dar aos leitores uma noção do nosso estado emocional naquela fase terrível. Se não, vejamos:
"...devem ser levadas em conta as condições dramáticas nas quais confrontávamos o aparelho repressivo da ditadura. A desigualdade de forças era extrema e o inimigo, totalmente inescrupuloso.

Ao despertarmos, nunca sabíamos se chegaríamos vivos à manhã seguinte. Acabarmos, mais dia, menos dia, sendo presos e torturados era quase uma certeza; e mortos, forte possibilidade.

Infiltrados como o cabo Anselmo devassavam nossas organizações. Tínhamos até medo de abrir os jornais, pois era quase certo encontrarmos a noticia da queda  ou óbito de um companheiro estimado.

Submetidos a pressões tão terríveis, alguns resistentes tomaram decisões questionáveis".
E, um pouco antes:
"Quanto ao fulcro da questão, os justiçamentos de agentes infiltrados sempre embutiram o risco de erro na escolha do alvo; e os de militantes que fraquejaram, são simplesmente indefensáveis e indesculpáveis".
Então, por um lado eu dei algumas explicações sobre como se chegava à decisão --que, contudo, reprovo-- de punir-se com a morte quem fraquejou diante do inimigo; e, pelo outro, adverti que a decisão de executar-se um agente infiltrado é quase sempre temerária, pois dificilmente dispomos de informações suficientes para termos 100% de certeza de que ele o seja.

Caso do dito  Cabo Anselmo, sobre o qual pairavam suspeitas, desconsideradas pelos dirigentes da VPR. O  Comandante Moisés  (José Raimundo da Costa), que conhecia o Anselmo desde os movimentos de marinheiros, botava a mão no fogo por ele; considerava-o fraco politicamente e obcecado por holofotes, mas nunca um inimigo.

Chegamos a conversar sobre as acusações que o PCB fazia ao Anselmo; o  Moisés  as rechaçava, lembrando que o partidão também tinha acusado o Lamarca de agente da CIA. Acabaria morrendo por causa deste excesso de confiança no velho amigo.

INDISCRIÇÃO POST-COITUM

Foi também por intermédio do  Moisés  que fiquei conhecendo os detalhes do justiçamento do capitão Charles Rodney Chandler. Estudando na Escola de Sociologia e Política (SP), ele caiu na besteira de revelar sua condição de militar estadunidense a uma colega com quem acabara de transar. Ela fez chegar a informação à VPR, que concluiu: era um espião a serviço da repressão. E o matou. [Há quem diga que ele teria sido confundido com um dos assassinos do Che. Nunca ouvi tal versão dos companheiros.]

Ironia: uma das últimas tarefas de Lamarca
no Exército foi ensinar bancárias a atirarem.
Aos 18 anos, sem muita experiência de vida, a crueza da narrativa me chocou. Passou-me pela cabeça a hipótese de que tivesse havido precipitação. E, ao longo do tempo, foram me ocorrendo outras possibilidades, como a de que estivesse apenas colhendo informações para análises políticas, não para apontar alvos à polícia brasileira; e até de que, meramente, pretendesse escrever um best-seller sobre a guerrilha urbana.

A própria VPR, no Congresso de Mongaguá (abril/1969), fez uma autocrítica implícita: resolveu nunca mais  justiçar  um inimigo e só depois explicar ao povo o motivo pelo qual o tinha feito. As sentenças letais só se aplicariam a quem já estivesse identificado, aos olhos da massa, como delas merecedor (alguém como o delegado Sérgio Fleury, p. ex.).

Enfim, como participante que fui da luta armada, prefiro abordar este assunto em termos bem concretos. O edifício teórico erguido pelo Lungarzo é, sem dúvida, fascinante, mas numa roda-viva daquelas não tínhamos tempo nem serenidade para equacionar nossa atuação de forma tão sofisticada; passávamos o tempo todo tentando sobreviver, resistindo às pressões e respondendo aos desafios. As questões se apresentavam a nós sob aspectos eminentemente práticos. E sempre exigindo decisões imediatas.

Quem trava uma luta de resistência à tirania, em condições de extrema inferioridade de forças, não se pode dar ao luxo de perder seus escassos combatentes. Então, até hoje considero que era válida a execução de quem representasse ameaça real aos nossos efetivos.

Lamarca, com um tiro prodigioso a longa distância, evitou que um guarda de trânsito alvejasse o primeiro companheiro a transpor a porta de um banco que estava sendo expropriado pela VPR. Se, movido por considerações humanitárias, decidisse permitir a morte do militante no lugar da do policial, seria melhor depormos as armas...

Represália contra apoiadores da ditadura: a
caminhonete era cedida para os torturadores.
Da mesma forma, caso houvesse certeza de que o Anselmo era o que era, não haveria como poupar sua vida; mesmo desmascarado, continuaria ajudando a repressão a caçar resistentes, tendo a vantagem de poder identificá-los de vista e de conhecer nossos hábitos nos mínimos detalhes.

Já quem, não resistindo às torturas, abriu informações valiosas para a repressão, geralmente já tinha feito o estrago que podia e não representava mais perigo. O justiçamento seria apenas uma forma de intimidar os que continuavam na luta, dando-lhes mais motivos para não fraquejar. Mas, quando se precisa recorrer a tais expedientes, é porque a luta verdadeiramente já está perdida. Inadmissível.

OS COMANDANTES E OS DESCARTÁVEIS

Pior ainda quando a punição extrema era decidida em função da posição hierárquica de quem tinha sido preso ou morto.  Isto colocava implicitamente os aliados, simpatizantes e militantes subalternos como descartáveis –e, no entanto, corriam os mesmos riscos que os dirigentes, movidos pelos mesmos motivos. Aí, sim, estavam sendo absorvidos os traços mais desumanos da cultura militar.

Mad dogs são inaceitáveis nos movimentos de resistência. 

A decisão de executar inimigos deve ser precedida de averiguações exaustivas e discussões as mais aprofundadas, tal como passou a preconizar a VPR depois do episódio de Chandler. 

Nenhum militante pode ser morto para servir de exemplo aos demais, nem em função de meras hipóteses (tipo, desligando-se da organização ele se tornará inconfiável).

Mas, aos agentes infiltrados do inimigo cabia, sim, darmos o mesmo destino reservado nas guerras aos espiões.

São as conclusões que eu tirei e deixaria para futuros movimento de resistência –torcendo para que nunca mais eles venham a ser necessários.

Quem quer ir além disso, simplesmente impugnando mortes em todas e quaisquer circunstâncias, na verdade discorda da resistência armada em si. E os precedentes históricos atestam que são raríssimas as vezes em que os tiranos se deixam persuadir a simplesmente entregarem o poder; pelo contrário, reagem muito mal contra quem tenta entregar-lhes o bilhete azul.

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