1970: aos 19 anos, preso político. |
É que me lembrei da velha constatação de Freud e de muitos artistas, de que aquilo que nos acontece no início da vida define nossos padrões de comportamento para sempre.
Eu fui criança enfermiça até os sete anos, amiúde gripado e febril, muito magro. Tuberculose era um fantasma que assombrava o sono dos meus pais, mais ou menos exorcizado com as antigas vacinas BCG que me eram aplicadas no posto de saúde, mas elas não dissipavam todos os seus temores.
E um tio farmacêutico, numa época em que os controles de seu ofício quase inexistiam, aplicava-me penicilina sempre que necessário, por conta própria e sem me causar nenhum dano.
Aliás, para a clientela pobre do bairro, ele substituía com vantagem os médicos que os coitadezas não tinham como bancar (os serviços públicos eram dantescos e a maioria fugia deles, salvo nos casos realmente graves).
Só entrei na escola com sete anos, em 1958. Comecei a cursar o 1º ano do curso primário com tais limitações. Nas férias, fui operado das amigdalas... e meus problemas mudaram quase instantaneamente.
2023: sempre no bom combate. |
Passei a ser saudável... demais. Com enorme apetite, que meus pais correram a satisfazer, aliviados por se verem livres dos receios que a minha magreza antes lhes causava.
Fiquei obeso até lá pelos 12, 13 anos, quando o crescimento me colocou no peso normal.
Mas, o fato é que, primeiramente por ter saúde frágil, depois por ter ficado gordo, não me enturmei bem com os colegas do primário. E adquiri o perfil de lobo solitário, que acabou me ficando para sempre.
Excluído da panelinha dos mais destacados e brilhantes, reagi ficando na moita e não me esforçando até o exame final, quando surpreendia a todos obtendo o melhor resultado da classe.
No ginásio começaram os trabalhos em grupo e eu desenvolvi outra estratégia: formei minha própria panelinha, agrupando os patinhos feios e liderando-os de tal forma que o conjunto acabasse competitivo em relação à panelinha dos brilhantes e até a superasse.
Percebendo que meus protegidos jamais exporiam os trabalhos tão bem quanto os desembaraçados, mesmo que eu lhes preparasse ótimos scripts, introduzi a apresentação em forma de jogral. Imprimia o texto, distribuía as cópias com as falas de cada um sublinhadas, ensaiávamos, destacávamos os trechos mais importantes recitando-os em coro, etc. Funcionava.
Março/68: morte do Edson Souto. Foi a minha primeira passeata. |
De resto, tinha um ou outro amigo isolado, para conversar, ir ao futebol e ao cinema, jogar sinuca, remar no lago do Ibirapuera, sair atrás de garotas (quase sempre sem sucesso) e das prostitutas do centro da cidade (barra que não era sensato encarar sozinho).
Só no movimento estudantil me vi como parte de um conjunto de iguais – e foi um tempo inesquecível. De uma ou outra forma, éramos todos diferentes dos jovens da nossa idade; e, irmanados pelo ideal comum, não competíamos entre nós, respeitando e prestigiando o talento de cada um. O meu era a redação. O grupo assumiu que eu deveria escrever os textos de panfletos, manifestos, etc., e ponto final.
Com a radicalização da luta, acabei separado dos meus caros amigos. E, mais uma vez, enfrentando rejeições em função da precocidade que, de um lado, me tornou, provavelmente, o mais jovem comandante da guerrilha de então, aos 18 anos, como integrante do Comando Estadual da VPR em São Paulo (abaixo apenas do Comando Nacional).
De outro, valendo-me invejas e hostilizações que afloraram quando o José Raimundo da Costa e eu iniciamos o processo que acabaria levando ao racha dos 7 e à recriação da VPR.
Também atirei minha pedra no governador Sodré, que a esquerda escorraçou do 1º de maio na Praça da Sé. |
Passei o resto da vida fora das panelinhas e tendo uma relação conflitante com elas. É claro que tudo se tornou bem mais difícil, pessoalmente, para mim.
Por outro lado, escapei da tendência bem brasileira de se relevar os erros dos amigos e transigir em relação a princípios. Pouco importando se sozinho ou com muitos ao meu lado, defendo sempre o que julgo ser correto. E desenvolvi uma couraça que me tornou imune à ação de rolos compressores.
Para mim, a política não se reduz a um jogo de futebol, em que tudo é visto pelo prisma do time pelo qual se torce e o gol impedido no finzinho do jogo merece aplausos.
Maio 2020: a avenida Paulista, da qual os fascistas expulsaram os petistas em 2016, era retomada por secundaristas e torcedores de futebol. As novas gerações são nossa esperança! |
Então, por piores que sejam as práticas em que o inimigo incorra, serei fiel até o fim aos valores originais do marxismo. Devemos contribuir para o advento de um estágio superior de civilização, com cada um de nós corporificando pelo menos algumas das virtudes dos homens novos que, numa sociedade igualitária e livre, todos nos tornaremos.
No fluxo revolucionário dos anos 60, era mais fácil defender tais posições (depois taxadas de utópicas pelos inimigos de 1968). Hoje, no refluxo, parece até lógico o retorno ao velho maniqueísmo stalinista e à realpolitik do tempo da guerra fria, aceitando-se como males menores déspotas maiores do tipo de Gaddafi e Saddam Hussein(2), apenas porque seus interesses não se alinha(va)m com os de EUA, Israel e países europeus.
A sobrevida do capitalismo durou bem mais do que Marx previa, mas sua margem de manobra é cada vez menor. |
Esquece-se até que de revolucionários eles não tinham ou têm absolutamente nada!
Só que tais males menores, por sua ignorância, iniquidade e barbárie, produzem, na verdade, o pior de todos os males: a descaracterização da esquerda.
Deixamos de representar, aos olhos dos injustiçados e dos oprimidos, a alternativa à desumanidade do capitalismo putrefato e à liquidação dos valores mais nobres sob o primado dos cálculos mesquinhos.
Quando encaminhamo-nos para cenários propícios à retomada das lutas pela revolução mundial (3), é hora de voltarmos a pensar grande. E com ética. E com humanidade.
E com, no mínimo, senso comum: quem quer mudar o mundo, não pode estar associado ao que de pior o mundo já produziu.
Se minha sofrida trajetória teve algum sentido, foi o de me preparar para o desempenho do atual papel, de trincheira contra a descaracterização da esquerda, mantendo viva a lembrança das premissas libertárias do marxismo, que os pragmáticos de hoje tudo fazem para relegar ao olvido. (por Celso Lungaretti)
1. Este artigo foi escrito e publicado pela primeira vez em 2011, mas continua expressando fielmente meus valores e sentimentos;
2. Hoje seriam os igualmente desprezíveis Putin, Ortega e assemelhados, gente disposta a passar sobre montanhas de cadáveres para satisfazer suas ambições e/ou compulsões torpes;
3. Sim, 12 anos atrás eu estava esperançoso quanto ao que adviria da insustentabilidade definitiva do capitalismo e da escalada do aquecimento global. Incurável otimista, não me passavam pela cabeça as hipóteses da entropia, do caos e do retrocesso civilizatório. E continuo até hoje acreditando que a humanidade acabará sobrevivendo aos estertores agônicos do capitalismo e aos horrores decorrentes das alterações climáticas, mesmo pagando um preço terrível por sua demora em buscar a salvação. (CL)
Poesia-tributo aos companheiros que comigo ingressaram na VPR.
Após a morte do Eremias, Gerson, Mané e Gilson, restamos quatro: o
Diego, o Edmauro, a Teresa e eu. Declamei-a por insistência da
minha prima Nádia Stabile, que decidira gentilmente criar este vídeo.
3 comentários:
Hoc non pereo habebo fortior me.
“O que não me mata, faz-me mais forte”.
https://gilvanmelo.blogspot.com/2023/04/muniz-sodre-um-nome-para-o-inominavel.html
https://www.ihu.unisinos.br/627720-oligopolios-na-alimentacao-mundial-lucros-milionarios-e-a-pandemia-de-fome
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