sábado, 8 de abril de 2023

OS MOTOBOYS SÃO METONÍMIAS DO BRASIL PARALÍTICO E SEM FUTURO


N
os anos 1970, a crítica Pauline Kael escreveu que os helicópteros viraram metáforas do Mal no cinema americano. O contexto da afirmação era a Guerra do Vietnã, a derrota que um povo de sandálias impôs à maior potência bélica de todos os tempos.

Adoro o cheiro de napalm de manhã, dizia o coronel Kilgore em meio ao balé de helicópteros que cuspiam balas e bombas em Apocalypse Now. Mas em O Franco Atirador e Rambo as máquinas aladas de matar serviam somente para resgatar ianques estropiados, vencidos.

De uma maneira ou outra, helicópteros ruidosos e desengonçados condensavam o mal-estar da nação dividida entre os que insistiam e os que desistiam de infligir o american way of life ao mundo.
 
Os helicópteros americanos mantiveram sua missão imperial —no Afeganistão, Iraque, Síria, Sudão, Líbia e Iêmen—, mas estão hoje associados aos usos e costumes da nata transnacional que manda no mundo. Magnatas olham das nuvens sua obra: a favelândia intransitável.

No chão da realidade, outro bicho mecânico serve de metonímia —a parte que significa o todo— para os conflitos do presente. Em vez do besouro-helicóptero, é a moto-cavalo que carrega os gladiadores dos novos tempos, os manos motoboys.

Motoboys são diferentes de motoqueiros. Esses últimos integram tribos com máquinas incrementadas. Podem ter ares românticos, igual Marlon Brando em O Selvagem, contraculturais, igual Peter Fonda em Easy Rider, ou pós-apocalípticos, igual Mel Gibson e Tom Hardy em Mad Max.

Já os motoboys são descendentes dos office-boys, os contínuos que levavam documentos de um andar para outro ou para escritórios próximos. Com a expansão das cidades, o desemprego e a precarização do trabalho, integraram-se à paisagem da periferia do planeta.

Contra cerca de 1,4 bilhões de carros, há 600 milhões de motos no mundo, mas seu crescimento é bem mais acelerado. Saigon é a cidade com maior número delas; os países, na ordem, são a Tailândia, o Vietnã, a Indonésia e a Malásia. São o veículo preferencial em países pobres.

Neles, o transporte público é uma piada e os automóveis têm preços proibitivos. A moto criou um proletariado e o obriga a se virar num trabalho degradante e mal pago, sem proteção nem direitos.

Sob sol ou chuva, atravessando nuvens de fumaça intoxicante, lá vai ele, o motoboy que arranca retrovisores com a bota: Bip! Bip! Bip! São odiados pelos motoristas, nos quais dão fechadas e aos quais dirigem indicadores em riste. Divertem-se em azucrinar os cativos em celas de quatro rodas.

As motos têm a vantagem de não poluírem tanto e gastarem menos energia que os carros, essas tumbas lerdas que sintetizam o irracionalismo contemporâneo: pesam uma tonelada e queimam galões de combustível para levar uma pessoa de 70 quilos daqui até ali.

A ideologia de ambos é a da lei da selva, também conhecida como neoliberalismo: o transporte individual fomentado pela propriedade privada. Os pardos que se espremam em ônibus sulfurosos, que se lasquem nas latas de sardinha de trens de subúrbio.

Os motoboys são óleo e areia nessa engrenagem encrencada. Óleo —entregam pizza, papéis, remédios, roupas, até o bacalhau da Semana Santa; evitam que os com alguma grana saiam à rua.

Areia —apesar dos serviços prestados, irritam e atemorizam. Não são vistos como pessoas de cérebro, espírito e sangue. São entes encouraçados com caixotes nas costas, anônimos de feições ocultas por elmos indevassáveis; átomos de uma massa bandoleira.

Isso ocorre porque bandidos reais se disfarçam de motoboys para roubar celulares e esfaqueiam ou atiram em quem ousa resistir. Não se sabe quantos casos assim acontecem no Brasil. Mas se sabe que quatro motociclistas morrem por dia no asfalto nacional.

Os motoboys compram motos em prestações e juros a perder de vista. A legislação permite que andem entre as faixas para carros porque, para a sociedade, importa mais que driblem os congestionamentos do que sobrevivam.

Recebem uma merreca por job e por isso não respeitam sinais e fazem acrobacias. Se não trampam, não ganham. Não têm seguro para as motos nem plano de saúde para si. Quando chegam aos 30 anos —se chegam— estão um bagaço.

Sua imagem no cinema está cristalizada num filme áspero como eles, Motoboys - Vida Loka, de Caíto Ortiz, cujo aniversário de 20 anos não deveria passar em branco porque mostra um Brasil que segue o mesmo, paralítico e sem futuro. (por Mario Sergio Conti, jornalista e apresentador de TV que foi um dos poucos expoentes renomados da grande imprensa a escrever sucessivos artigos em favor da libertação do escritor Cesare Battisti no período 2008-2011)

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