paul krugman
AS MENTIRAS VIRAIS QUE SEGUEM MATANDO
Um ano atrás, parecia razoável esperar que, já no início de 2022, estaríamos falando na covid usando o pretérito, ao menos enquanto grande problema de saúde e qualidade de vida.
Vacinas eficazes foram desenvolvidas com velocidade milagrosa; certamente, um país sofisticado como os Estados Unidos encontraria uma maneira de distribuir essas vacinas amplamente e rapidamente.
Então, por que não superamos a pandemia? Parte do problema tem sido a criatividade da evolução do vírus. A variante Delta nos chocou com sua letalidade; agora, a Ômicron nos choca com sua facilidade de transmissão.
Ainda assim, poderíamos e deveríamos ter nos saído melhor. E a principal razão de não termos conseguido isso foi o poder das mentiras de motivação política.
Antes de entrar nos detalhes dessas mentiras e do estrago provocado por elas, quero deixar algo bem claro: sim, esta é uma questão política.
Sei que não sou o único comentarista a enfrentar reações negativas por enfatizar a natureza partidária da resistência às vacinas.
Somos constantemente lembrados que muitos estadunidenses não vacinados não são fanáticos do Partido Republicano, que há diferentes motivos pelos quais as pessoas recusam as vacinas ou ainda não as procuraram. Tudo isso é verdadeiro, mas a política desempenhou um papel crucial e crescente.
Observemos, p. ex., um levantamento da KFF realizado em outubro, revelando que 60% das pessoas não vacinadas se declaravam republicanas, em comparação a apenas 17% que se identificavam como democratas.
Ou a valiosa análise de Charles Gaba dos dados no nível dos condados, mostrando que em média cada ponto porcentual extra de apoio a Trump nas eleições de 2020 corresponde a uma redução de aproximadamente meio ponto na taxa de vacinação de um condado.
Mas como a política conseguiu enfraquecer tanto aquilo que deveria ter sido um milagre da medicina? Identifico três importantes mentiras que continuam sendo repetidas pelos políticos republicanos e pela mídia de direita.
Primeiro, temos a alegação segundo a qual o coronavírus não seria nada de mais. Seria de se esperar que tal alegação já tivesse sido esquecida, levando em consideração que mais de 800 mil estadunidenses morreram de covid desde o dia em que Rush Limbaugh comparou este vírus a uma gripe comum.
Mas tal ideia continua circulando. Figuras políticas como Marco Rubio fazem pouco da resposta à variante Ômicron, descrevendo-a como histeria irracional, porque a nova cepa parece provocar um número relativamente baixo de hospitalizações entre a população totalmente vacinada.
Em 1876 (febre amarela no carnaval) era assim. O Bozo e seus cúmplices querem ver a reprise. |
Ele logo deixa de lado esta qualificação, algo que o levantamento da KFF indica ter iludido milhões de republicanos não vacinados, que se dizem pouco preocupados com uma doença que deveria preocupá-los, e muito.
E os comentaristas conservadores explodiram de raiva quando o presidente Biden destacou, com razão, que o coronavírus ainda é extremamente perigoso para quem não tomou a vacina; Tucker Carlson acusou Biden de tratar os não vacinados como sub-humanos.
Em seguida: a alegação segundo a qual as vacinas são ineficazes. Se a dose de reforço funciona, por que ela não funciona? – publicaram no twitter os republicanos da comissão judiciária da Câmara.
O que eles querem apontar, supostamente, é o fato de a variante Ômicron produzir um imenso número de novas infecções, ao mesmo tempo ignorando cuidadosamente as evidências maciças de que mesmo quando os estadunidenses vacinados são infectados, sua probabilidade de hospitalização (ou morte) é muito inferior à dos não vacinados.
Finalmente, temos a alegação segundo a qual tudo não passa de uma questão de liberdade, e a decisão de tomar a vacina ou não deveria ser tratada como qualquer escolha individual. P. ex., o governo de Greg Abbott, no Texas, usou este argumento como base de um processo que busca impedir o governo federal de obrigar o uso de máscaras entre a população.
O governo Abbott também pediu por mais ajuda federal para o Texas, onde a taxa de vacinação é muito baixa em parte porque Abbott impediu o setor privado de exigir comprovantes de vacinação para enfrentar uma alta nos casos de covid e decorrentes hospitalizações. Falta dizer alguma coisa?
Leitores atentos terão notado que, além de falsas, essas alegações republicanas se contradizem de muitas maneiras. Podemos ignorar a covid graças às vacinas, que, aliás, não funcionam.
Vacinar-se é uma decisão individual, mas sonegar às pessoas as informações necessárias para que tomem tal decisão com sabedoria é um vil ataque à sua dignidade.
É tudo uma questão de liberdade e livre mercado, mas essa liberdade não incluiria o direito das empresas privadas de protegerem seus próprios funcionários e clientes.
Então, vemos que nada disso faz sentido, a não ser se percebermos que a obstrução dos republicanos à vacina não é fruto de uma ideologia coerente e sim da busca pelo poder. Uma campanha de vacinação bem-sucedida seria uma vitória para o governo Biden, e por isso teve de ser enfraquecida com o uso de qualquer retórica disponível.
É claro que a estratégia antivacinação funcionou politicamente. A persistência da covid ajudou a manter o clima sombrio nos EUA, o que sem dúvida prejudica o partido que está na Casa Branca. Daí os republicanos que fizeram tudo ao seu alcance para impedir uma resposta eficaz à covid não terem hesitado nem por um segundo em responsabilizar Biden pelo fracasso em acabar com a pandemia.
E o sucesso da destrutiva politização da vacina é, em si, profundamente horripilante. Parece que o cinismo completo compensa, mesmo se promovido ao custo das vidas de seus apoiadores. (por Paul Krugman, economista estadunidense agraciado em 2008 com o Prêmio Nobel de Economia, escritor e colunista do New York Times)
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