Como, p. ex., do jornalista Ricardo Kotscho, meu colega quando éramos focas no Estadão, ao terminar seu comentário sobre o discurso de Lula no 7 de setembro do ano passado e vaticinar: "Com esse discurso, Lula está de volta ao jogo. Podem escrever".
Bingo! Acertou em cheio, ali está o ministro Edson Fachin para confirmar.
Kotscho conhecia bem o homem, tinha sido seu secretário de imprensa durante dois anos, isso incluía contatos diários diretos e viagens. Não seriam 19 meses de prisão capazes de quebrar o pernambucano pau-de-arara, como ele mesmo conta, vindo de Abaetés com seus pais pobres retirantes para São Paulo, onde trabalhou na indústria automobilística montada na região do ABC, tornando-se logo conhecido por liderar movimentos grevistas.
Outro conhecedor profundo do líder Lula era o dinâmico e entusiasta publicitário Carlito Maia, um dos fundadores do Partido dos Trabalhadores. Ele acreditava na criação de um partido formado principalmente de gente do povo, de onde sairiam suas lideranças autênticas. Era o caso de Lula e Carlito apostou nisso, uma, duas e três vezes até ver Lula Lá, como dizia seu slogan vitorioso.
Não é preciso se recorrer à mitologia e suas figuras legendárias para se contar ou cantar o eterno retorno do herói, numa comparação com a inesperada volta de Lula. Nossa história não tão distante, relata também o retorno do controvertido ex-ditador Getúlio Vargas.
Getúlio, também chamado de pai do pobres, era nacionalista e havia sistematizado o direito dos trabalhadores à aposentadoria e imaginado a Petrobras, concretizada por ele em 1953.
Vamos esquecer agora os defeitos de Vargas, que foram muitos, para lembrar, p. ex., que a independência brasileira no setor do petróleo garantiu ao Brasil seu desenvolvimento.
A aposentadoria, por sua vez, deu aos trabalhadores a garantia de uma merecida segurança na velhice, mesmo sendo de valor mínimo para a grande maioria.
Vargas foi o criador das primeiras garantias sociais à classe trabalhadora, Lula foi o presidente das grandes conquistas sociais.
A decisão do juiz Edson Fachin, do Supremo Tribunal Federal, de anular os processos contra o ex-presidente Lula, tornando-o elegível em 2022, ocorre num momento de grave crise política no Brasil, agravada pela incapacidade do presidente Bolsonaro de enfrentar as consequências sanitárias e sociais do coronavírus.
Um retorno de Lula seria em boa hora. Bolsonaro continua destruindo a estrutura do Estado, aplicando as orientações de privatização da Escola de Chicago, que são as de reduzir ao máximo a máquina estatal e ampliar o campo do capital, ignorando as consequências sobre o povo. Além disso, Bolsonaro não possui nenhuma sensibilidade humana, como tem demonstrado seus últimos pronunciamentos.
O desmonte do Estado brasileiro está avançado e, em pouco tempo, a privatização tornará a economia brasileira semelhante à do Chile. Vendidas nossas riquezas e nossas estatais ao capital internacional, o destino do Brasil como país independente estará comprometido para sempre.
Sobre esse desmonte, Lula declarou:
"Consiste no fatiamento ou venda de instituições centenárias, como o Banco do Brasil, a Caixa Econômica Federal e o BNDES, que estão sendo esquartejadas e fatiadas –ou simplesmente vendidas a preço vil.
Depois de colocar à venda por valores ridículos as reservas do pré-sal, o governo desmantela a Petrobrás. Venderam a distribuidora e os gasodutos foram alienados. As refinarias estão sendo esquartejadas.O furor privatista do governo pretende vender a maior empresa de geração de energia da América Latina, a Eletrobrás, uma gigante com 164 usinas — duas delas termonucleares — responsável por quase 40% da energia consumida no Brasil.
A demolição das universidades, da educação e o desmonte das instituições de apoio à ciência e à tecnologia, promovidos pelo governo, são ameaça real e concreta à nossa soberania. Artistas e intelectuais clamam pela salvação da Casa de Ruy Barbosa, da Funarte, da Ancine".
A decisão do juiz Fachin, ao que tudo indica, visou evitar um mal maior nas estruturas institucionais do país, vista a odiosa campanha desfechada pelos gabinetes do ódio dos apoiadores de Bolsonaro contra o Supremo Tribunal Federal e seus membros, dentro do objetivo maior de provocar um golpe militar. O discurso belicista do deputado federal Daniel Silveira, atualmente preso, foi bastante revelador.
Os atuais desacertos, imprudências e mesmo idiotices do presidente Bolsonaro, ao qual se pode acrescentar o epíteto de coveiro da Nação, assustam. Tanto que o presidente do Partido Democrático Trabalhista, Carlos Lupi, acaba de entregar ao procurador-geral da República, Augusto Aras, um pedido de interdição do presidente Bolsonaro por insanidade mental, em lugar de um impeachment.
Tudo isso mais a explosão da crise sanitária afugentam capitais estrangeiros e provocam uma constante desvalorização do real, criando um clima de instabilidade econômica detestado pelos grandes capitais, já não mais dispostos a continuar apoiando o despreparado e imprevisível Bolsonaro. A denúncia da Organização Mundial da Saúde quanto ao risco sanitário representado pelo Brasil completa, em termos internacionais, esse quadro negativo e desqualifica Bolsonaro como presidente.
Outro fator importante foi a derrota de Donald Trump nas eleições norte-americanas. Bolsonaro e seus filhos estavam atrelados ao governo e à política dos EUA, situação denunciada por Lula. A essa dependência política se juntava uma gradativa submissão econômica.
Derrotado nas eleições, o ex-presidente Trump continua desafiando as leis de seu país repetindo a mentira de ter havido fraude nos resultados eleitorais, tendo mesmo fomentado um ataque ao Capitólio, numa tentativa frustrada de golpe alimentada por fake news e gabinetes do ódio.
Fiel ao seu mestre, Bolsonaro se elegeu e vem se mantendo graças a ambos, espalhando teorias de conspiração e mentiras contra as vacinas, no mesmo estilo do grupo complotista estadunidense QAnon de extrema-direita. Esses gabinetes de ódio estão ativos contra Lula e já estão atacando o juiz Edson Fachin.
Resta citar o movimento evangélico, hoje uma bem azeitada máquina eleitoral com cerca de 30% do eleitorado, como coluna de apoio de Bolsonaro e ponta-de-lança contra Lula. Sob o manto da pregação da doutrina cristã, utilizam o pretexto do combate à corrupção e amedrontam o eleitorado evangélico com o risco do comunismo para transformá-lo num instrumento de apoio ao liberalismo estadunidense, capaz de levar à destruição do Estado e à entrega de nossas riquezas, pela privatização, aos grupos econômicos estrangeiros.
Os evangélicos se revelaram um eleitorado dócil e ingênuo, numa versão moderna do eleitorado de cabresto. Se, hoje, a Igreja Católica tem retomado a linguagem do Evangelho dos Pobres, cometeu praticamente uma autodestruição ao ter abandonado, durante as últimas décadas, o Evangelho Social, deixando assim um flanco aberto para a penetração do populismo evangélico no Brasil. A doutrina evangélica atual ilude seus seguidores com uma espécie de adaptação da mensagem cristã ao sistema capitalista de investimentos, com o engodo do Evangelho da prosperidade.
Na expectativa da capitalização de sua fé nas bolsas de valores das promessas bíblicas desvirtuadas pelos pastores, os fiéis se tornam submissos, abrem mão de seus direitos sociais e abandonam a luta pelas conquistas sociais. Acreditam piamente que o reconhecimento de seus direitos virá só depois da morte. Será o eleitorado de cabresto contra Lula. A pretexto de combate ao pecado, os evangélicos anatematizam a cultura brasileira e, em especial o samba, em favor do gospel estadunidense.
Embora existam, no momento, diversas candidaturas, Lula é o único líder capaz de reunir com o PT as diversas tendências da esquerda. Seus dois mandatos de centro-esquerda, mesclados de centro-direita, durante os quais manteve seus compromissos econômicos com a direita, não assustam. Em compensação, o despreparo de Bolsonaro tem gerado e aumentado inquietações.
A imprensa europeia reconfortada, comentando a elegibilidade de Lula, considerava-o favorito nas próximas eleições, citando a queda de Bolsonaro nas últimas sondagens feitas no Brasil. (por Rui Martins, no Observatório da Imprensa)
2 comentários:
Para bem da democracia e do republicanismo Lula está de volta, o que não deve nos levar a crença romântica e imediatista de que ele seja o melhor candidato das esquerdas em 2022. A futura governabilidade e reconstrução do país pede serenidade. Além disso, nunca devemos nos esquecer de que a democracia, em sua plenitude, pede alternância do poder (que não inclua força genocida, claro).
Com todo respeito, o Rui Martins mostra uma visão muito romantizada da conjuntura.
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