sábado, 11 de abril de 2020

O MUNDO DA RIQUEZA ABSTRATA FALIU

O mundo fundado na riqueza abstrata (aquela mensurada por padrões monetários) de há muito roda em falso.

Isto se dá porque o dinheiro perdeu sua conexão com o valor, do qual deveria ser representação fidedigna.

A moeda meramente fiduciária, quando deixa de ser emitida sob correspondência com a chamada economia real (da produção de mercadorias e serviços, sendo estes últimos também mercadorias), processo que já vinha ocorrendo e agora atinge o seu clímax com o coronavírus, passa a ser um capital fictício por excelência, sem possibilidade de resgate futuro por produção de valor válido (produção de mercadorias). Tende, portanto, a chegar a um momento de inviabilidade como modo de mediação social. 

A crise do coronavírus, como bem escreveu outro colaborador permanente deste blog, David Emmanuel de Souza Coelho, apenas acelerou o processo. 

Tal aceleração, caso se torne prolongada, não permitirá aos Estados nacionais (todos) que, por intermédio dos seus Bancos Centrais, supram a carência social por dinheiro indefinidamente, posto que é único instrumento de aquisição dos meios de subsistência social nas sociedades mercantis (aquisição de mercadorias). 

Eles sabem disto, mas não aceitam formas alternativas de produção social, sendo este o pavor que faz com que governantes ignaros, aferrados à forma de poder político-econômico sob o qual ascenderam ao comando do Estado, proponham a volta à circulação da produção de mercadorias e do mercado, sem se importarem com o custo de vidas que isto acarretará.

Afirmando cinicamente que estão preocupados com o sustento das pessoas  e servindo-se do argumento falacioso de que morrerão mais pessoas pela crise econômica do que pela pandemia, eles procuram disfarçar a verdadeira intenção: evitar que caia, para o cidadão comum, a ficha de que se pode produzir e distribuir bens e serviços sem a intermediação do dinheiro e de toda a entourage institucional dele derivada, aí incluída a própria forma de poder político submisso ao capital sob a qual governam.

País que emite a moeda internacional por todos aceita como válida e que de há muito tem seus números econômicos artificialmente sustentados, os Estados Unidos veem, agora, evidenciado tal artificialismo, já que estão sendo obrigados a suprir economicamente sua população com dinheiro oficial falso (o dólar estadunidense). 

Somente para se ter uma ideia do tamanho da encrenca, nos últimos dias 16,8 milhões de pessoas economicamente ativas (que representam cerca de 60 milhões de estadunidenses, considerando os familiares) pleitearam seguro- desemprego.

O FED, Banco Central deles, deverá injetar cerca de US$ 2,6 trilhões (correspondentes a cerca de 13% de todo o PIB dos EUA) para suprimento do sustento das pessoas e do próprio fluxo da economia. Mas tal medida não tem o condão de promover uma retomada sustentável da economia caso a pandemia persista por longo prazo.

O resultado desta ópera bufa é que a hora da verdade para o dólar dos Estados Unidos e para toda a sua economia pode estar chegando bem antes do que era previsto.

O aporte dos US$ 2,6 trilhões é medida de socorro financeiro capaz de minimizar os danos por cerca de um trimestre, mas caso tenha de se repetir pelos trimestres seguintes, isto causará um déficit orçamentário sem precedentes.
Isto obrigaria a mais e mais emissões de moeda sem lastro, demonstrando aquilo que já sabíamos: o dólar é uma mercadoria sem valor e que sobrevive à custa da incauta credibilidade alheia e dos sacrifícios impostos a outras nações.

Tanto os bancos quanto os organismos como Goldman Sachs, Morgan Stanley, JP Morgan e Capital Economics preveem uma queda brutal do PIB dos EUA, que já têm uma dívida pública superior ao seu PIB, a qual só não lhe causa maiores danos em razão dos baixíssimos juros sobre ela incidentes. 

É fácil rolar e até aumentar a dívida quando os credores aceitam financiá-la sem remuneração, na vã esperança de que acabarão recebendo o dinheiro de volta, pois não acreditam no dia do juízo final. 

O mesmo não acontece com o Brasil e demais países da periferia capitalista que pagam juros altos, daí o desespero por aqui ser ainda maior. Não é, Paulo Guedes?

Um exemplo de como é difícil a vida dos países periféricos (e o era antes mesmo da epidemia que veio piorar tudo): em 2019 o capital internacional já havia retirado do Ibovespa cerca de R$ 44,5 bilhões, levando os rentistas brasileiros a migrarem da renda fixa baixa para o mercado de ações, o que lhes acarretou um prejuízo de até 34% do capital investido. 

O Ibovespa, que em 23/01/2020 cravava quase 120 mil pontos, desabou para menos de 80 mil pontos. Um terço da grana (bilhões e bilhões de reais!) virou fumaça.  

A França, pela voz do seu ministro das Finanças Bruno Le Maire, informa que houve uma queda de 6% do PIB projetado para o primeiro trimestre, e que cerca de 5 milhões de franceses aderiram ao programa de apoio ao desemprego, por meio do qual o governo paga parte dos salários dos trabalhadores.

Considerando que o Estado não produz valor, mas apenas o recolhe via impostos extraídos da população, como se admitir que possa subsidiar indefinidamente em valor válido (dinheiro gerado na produção de mercadorias) a paralisia da produção causada pela pandemia? 

O fenômeno do subsídio via dinheiro sem lastro (que em algum momento será confrontado com a realidade de maneira trágica para a população) resta evidenciado.

Há escassez de dinheiro válido mas inexiste escassez de dinheiro oficial falso, e isto ocorre porque a chamada economia real (produtora de valor válido via mercadorias) já não tem capacidade de gerar uma massa global de valor (com correspondente extração de mais-valia) no nível exigido para a irrigação das relações financeiras mundiais. 

Em tais condições o Estado se vê obrigado a emitir moeda oficial falsa, como tem ocorrido, ou emitir títulos da dívida que jamais serão resgatados; ou seja, ruma para o abismo. 

Pergunta-se: cabe a nós, os anticapitalistas, assumirmos a administração dessa falência sistêmico-estatal dentro dos critérios políticos-jurídicos-econômicos-constitucionais estabelecidos, ou devemos negar o Estado e sua democracia burguesa, denunciando a sua impropriedade funcional?   

A verdade é que os capitalistas, embora detenham a concentração de riqueza abstrata acumulada a partir da apropriação indébita do valor produzido socialmente pelos trabalhadores assalariados e contem com apoio institucional e jurídico das regras de Direito que correspondem à negação do ideal de justiça, não conseguem administrar a contento aquilo que formataram. 

Não será a esquerda, aferrada às migalhas que o poder institucional burguês aceita lhe conceder como forma de autolegitimação, quem vai, por dentro, sabotar o Estado burguês, e pela via do processo eleitoral. Ao contrário, a história tem demonstrado a esquerda sempre se subsume ao poder burguês.

A teoria revolucionária, infelizmente, vem sendo de há muito negada pelos acomodados partidos de esquerda que somente pensam nas próximas eleições, como fazem o PT, o Psol, o PC do B, etc. Mas ela (e a própria realidade que constatamos no dia a dia da agonia do capitalismo) está a demonstrar de forma cabal a urgente necessidade de um novo modo de produção social.

Temos aqui tentado elaborar tal teoria revolucionária a partir de ensinamentos teóricos da crítica da economia política marxiana e de tantos outros pensadores (Guy Debord, Robert Kurz, Moishe Postone, Klaus Peter Ortlieb, já falecidos, além de Anselm Jappe e Jorge Paiva, felizmente ainda vivos, entre outros), com os ajustes que a própria realidade nos ensina. 

E é ela  que deverá ser nosso fio de Ariadne, capaz de nos mostrar a saída do labirinto escravista imposto à humanidade nos últimos milênios, conduzindo-nos à emancipação humana. 

Que bom seria se não precisássemos de uma terrível pandemia para fazer cair a nossa ficha!

A vida está nos mostrando que a riqueza material produzida socialmente é a única possível no estágio atual do saber da humanidade. (por Dalton Rosado)

4 comentários:

Francisco Lima disse...

"Considerando que o Estado não produz valor, mas apenas o recolhe via impostos extraídos da população," - Ainda que não seja economista nem contador, sempre fico incomodado quando leio aqui e alhures tal afirmação. Quando o Estado provê serviços de Assistência Médica e saude coletiva (ex. vacinas) e de Educação, pesquisas, etc não está produzindo valor? Acho que tal detalhe mereceria uma reflexão dentro de sua perspectiva.

celsolungaretti disse...

Caro Francisco Lima,

o Estado não produz valor.

Mas, quando se torna acionista de uma empresa (como a Petrobrás, p. ex.) e se torna capitalista, sob a forma mista ou integralmente pública, é a empresa estatal quem está produzindo valor e extraindo mais-valia.

Aliás, o Estado como dono de empresa que assim, por via obliqua se torna patrão capitalista, geralmente é incompetente e gerador de corrupção, terminando por ceder às exigências de mercado de eficiência empresarial e competitividade, e privatizando ditas empresas por disfunção de sua natureza original. Foi o que aconteceu com a estatização capitalista completa nos países marxistas-leninistas.

A regra é o Estado administrar apenas o controle monetário (no que se refere ao valor), ou seja, a emissão de moeda sinalizada pela produção de mercadorias (ou não, como agora ocorre). Quando essa produção é feita por intermédio de empresas estatais que produzem valor circunscrito a essa atividade empresarial, é uma exceção geralmente ineficaz que somente confirma a regra.

Um abraço e espero ter elucidado para você esse conceito sob o ponto de vista da economia política.

Grato pela intervenção e leitura dos nossos textos.

Dalton Rosado

Anônimo disse...

Caro, DR
Que coincidência, ao ler o seu texto enquanto estou revendo o filme Wall Street (o original de 1987). Nas primeiras cenas do filme, há uma fala nesse sentido, em que há muito dinheiro sem lastro no mundo...

celsolungaretti disse...

Aqui é o Celso mesmo, vim dar uma palavrinha de cinéfilo.

O filme que melhor ilustra as ideias do nosso caro Dalton é O DIA ANTES DO FIM (https://www.imdb.com/title/tt1615147/?ref_=fn_al_tt_1), sobre um banco de investimentos que, embora com nome fictício, percebemos claramente se tratar do Lehman Brothers.

Esse banco constata que o acúmulo de papéis podres que detém lhe causará um enorme prejuízo, a menos que os passe adiante antes de o mercado se dar conta da situação. Só que, com isto, fará explodir uma crise financeira de grandes proporções (ou seja, a crise do subprime).

Não vacila. Passa o tempo que resta se livrando desses papéis de tudo que é jeito, ou seja, empurra o prejuízo para os outros.

Os corretores que tratam de executar essa operação sabem que se trata de uma prática irregular, que ficarão sem emprego e queimados no seu mercado profissional, então trabalham sofregamente para receber a comissão aumentada que o banco lhes oferece. Será seu pé de meia para enfrentar a fase difícil pela qual passarão em seguida.

Um dirigente do banco, cinicamente, sabendo as consequências daquilo que ele está fazendo, diz que grandes crises financeiras já aconteceram antes e vão acontecer depois, então não tem remorsos em botar a empresa inteira em regime de "salvo-me eu e que sifu o mundo".

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