quinta-feira, 9 de abril de 2020

DEPOIS DO VENDAVAL – 1: O MUNDO QUE EMERGIRÁ DA PANDEMIA

Por óbvio, analisar como ficará o mundo após o fim da pandemia possui um forte componente especulativo. 

De fato, falar sobre o futuro sempre entra no aspecto de previsão, realizável ou não. No entanto, aqui aplicarei a ideia da tendência, que se caracteriza pelas potencialidades do movimento concreto atual. 

Portanto, dissecarei possibilidades inscritas no cenário presente, particularmente na dinâmica econômica e geopolítica do mundo atual. 

Fosse possível resumir o processo mundial com a pandemia numa imagem, seria aceleração. A pandemia não veio modificar a dinâmica geoeconômica da nossa era, mas acelerar processos que já estavam em andamento. Então, o mundo pós-pandemia vai ser um mundo no qual os arranjos que vinham se desenhando até aqui terão ganhado contornos mais definitivos. 

O mundo antes da pandemia vivia o que gosto de chamar de dissolução do neoliberalismo. O que isto significa? Por mais paradoxal que pareça, não se trata da superação desta forma de acumulação capitalista, mas sim de sua conclusão lógica. 

O neoliberalismo já havia arruinado com as diversas instâncias de vínculos sociais, de representação política e de proteção social. Ou seja, houve um processo de descoletivização da sociedade, agravada pela profunda desindustrialização dos países europeus e americanos. 
"erguiam-se centenas de muros e barreiras à circulação das pessoas"
O resultado deste processo foi a atomização da sociedade: cada indivíduo passou a centrar-se apenas em si mesmo, interagindo com os demais apenas e tão somente por meio da troca de mercadorias, e, acima de tudo, da troca de dinheiro. 

O dinheiro assumiu a função de costura do tecido social. Não havendo mais sindicatos, associações, clubes, parlamentos ou mesmo entidades públicas para criar laços sociais – pois todas, ou foram extintas, ou se tornaram meras correias de transmissão dos interesses do capital – restou às pessoas a conexão por intermédio da troca de valores. 

No entanto, quando a primeira grande crise do regime neoliberal explodiu em 2008, o dinheiro escasseou. A diminuição da troca de dinheiro na sociedade equivaleu à descostura de um vestido. O tecido social começou a se dissolver e, como já não existiam entidades coletivas, a alternativa foi a escalada da guerra de todos contra todos. 
"o principal problema residiu na falta de organização e orientação revolucionária"
É neste contexto que devemos compreender as revoltas anticapitalistas ao longo do planeta nos últimos dez anos, bem como seus fracassos e a ascensão de governos de extrema-direita. 

Quanto ao fracasso, bastaria dizer por agora, de forma ligeira, que o principal problema residiu na falta de organização e orientação revolucionária. 

Ela é fruto não só da decadência dos movimentos revolucionários, mas também da perda de credibilidade das organizações de esquerda, a maioria capturadas pelo regime neoliberal e transformadas em meras administradoras da miséria. 

A ascensão da extrema-direita veio no rastro dos fracassos e foi galvanizada por uma tentativa reacionária de explicação da crise. Corretamente, os neofascistas acusaram a falência das antigas organizações políticas e coletivas e o abandono do povo por parte destas. A transformação de antigos revolucionários em ricaços ou sua decadência moral pela corrupção cumpriram importante papel na propaganda reacionária. 
Velhos clichês: a busca da salvação no passado místico
Mas, os neofascistas não teriam tido o êxito que tiveram se não tentassem, de alguma forma, reconstruir laços sociais para romper a atomização social. Neste aspecto, buscaram galvanizar a população em torno das ideias de Deus, pátria e família, buscando a salvação no passado místico. 

Alguns, mais audaciosos, tentaram reconstruir a glória econômica do passado, como é o caso de Trump e Johnson. 

E aqui entramos no reflorescimento do nacionalismo, ou, ao menos, do discurso xenófobo. Importante constatar que o regime neoliberal não impôs a atomização apenas dos indivíduos, mas também das nações. Pode parecer contraditório isto diante do fato de que a época neoliberal foi uma época de intensa globalização. Mas esta globalização foi a do dinheiro, não das pessoas. 

Para ver isto, basta lembrar a natureza essencialmente comercial de praticamente todos os tratados e acordos internacionais feitos ao longo das últimas décadas. Mesmo nas organizações vinculadas à ONU, que seriam espécies de estruturas sociais coletivas a nível mundial, as mais destacadas foram as de cunho financeiro: FMI e Banco Mundial. 

É sintomático que, enquanto se criavam múltiplas facilidades para a circulação de mercadorias e dinheiro, erguiam-se centenas de muros e barreiras à circulação das pessoas. Nunca na história humana houve tantos muros e cercas costeando fronteiras ao redor do planeta. E isto em plena globalização!
"grandes potências reiniciaram competição entre si"

Ou seja, a integração mundial emulava a integração entre os indivíduos: era apenas o tênue fio do dinheiro costurando um tecido geopolítico frágil. 

Quando veio a crise e o dinheiro escasseou, o efeito foi o mesmo: guerra de todos contra todos, mas, neste caso, o todos eram os países. 

Isto explica o fenômeno Trump e seu America first, assim como o brexit e outras ações de unilateralismo ao redor do mundo. As grandes potências reiniciaram uma competição entre si e os países menores ficaram na situação de ter de escolher em qual time jogar. 

Então, o quadro mundial antes da pandemia era de uma radicalização do unilateralismo, do fechamento de fronteiras e da competição desenfreada entre os países. A pandemia, na minha visão, apenas veio acelerar isto. 

Pois, com a pandemia ficou claro o absurdo de se ter apenas um país enquanto fábrica do mundo, no caso, a China. Além disto, a pandemia mostrou que o tão propalado mercado mundial era tão frágil quanto uma célula sendo atacada pelo coronavírus. 

Na hora H, as cadeias de abastecimento falharam ao redor do mundo e as produções ficaram paralisadas, sem condições de receber os insumos. Isto se mostrou ainda mais dramático no caso da produção de insumos hospitalares. 

me first tornou-se a tônica, com países roubando suprimentos de outros nos conveses dos portos e nas pistas de decolagem.
"com países roubando suprimentos dos outros"
Ficou patente que a solidariedade, mesmo forçada pelo dinheiro, não existe nesta suposta comunhão global. Até mesmo a União Europeia revelou seu caráter atomizado com a Alemanha recusando-se a ajudar países-membros necessitados. 

Diante disso, o que avento para o mundo pós-pandemia? Um mundo ainda mais atomizado e com países ainda mais fechados. 

Antigas barreiras já existentes, agora serão erguidas ou reforçadas com justificativas sanitárias. Os países se tornarão amplamente desconfiados uns dos outros e antigas organizações de cooperação – creio até que mesmo a OMS – serão colocados em questão. 

As grandes potências vão começar uma corrida pela reindustrialização, ao menos de insumos fundamentais. As cadeias globais de abastecimento ficarão desacreditadas e voltará a ter impulso a ideia de fazer estoques e criar cadeias locais de produção. O just in deverá perder força. 

A China certamente sairá da crise como superpotência e líder mundial, mas deverá tomar decisões rumo a uma economia ainda mais nacionalizada, pois as multinacionais instaladas em seu território sofrerão forte pressão das sedes para desinvestir no país. 

Meu prenúncio, portanto, será de um mundo ainda mais conflituoso, com o capitalismo retrocedendo ainda mais para suas bases nacionais. As burguesias refluirão para dentro de seus países de origem, em busca de proteção e estímulo dos Estados nacionais. 

Será, portanto, um período tenso, de menor cooperação internacional e mais competição. 

E o Brasil nisto? Bom, este será assunto para o próximo capítulo desta série. (por David Emanuel de Souza Coelho) 
(continua neste post)

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