A justiça é seletiva e letárgica no Brasil: os piores criminosos, quando servem aos poderosos, quase sempre morrem antes de serem condenados e cumprirem pena. |
Trata-se, evidentemente, apenas de um ponto de partida. Só havendo vontade política por parte dos três Poderes a iniciativa prosperará.
Pelo menos ela vem num momento propício: após a fracassada tentativa golpista de Jair Bolsonaro haver revelado que continua existindo uma banda podre nas Forças Armadas, os fardados não estão em condições de proteger seus aloprados. Precisam é convencer os brasileiros de que deixaram de ser uma ameaça à democracia.
Vale lembrar que a quase totalidade dos vilãos maiores já saiu de cena. Morreram:
— todos os ditadores que em 1964/85 colocaram a faixa presidencial sobre a farda:
— todos os signatários do Ato Institucional nº 5 menos um (Delfim Netto, hoje com 95 anos); e
— os capangas mais famosos do regime de exceção, como o delegado Sérgio Fleury, o comandante de centro de torturas Brilhante Ustra e o responsável pelo retumbante fiasco do cerco a Carlos Lamarca em Registro, Erasmo Dias, que era um tigrão para barbarizar universitários mas virava tchutchuca diante de combatentes treinados, mesmo dispondo de 1.733 soldados para impedir a fuga de cinco guerrilheiros.
Se Toffoli obtiver o que Dilma nem tentou, que tal trocarmos esta imagem pela dele? |
— todos os signatários do Ato Institucional nº 5 menos um (Delfim Netto, hoje com 95 anos); e
— os capangas mais famosos do regime de exceção, como o delegado Sérgio Fleury, o comandante de centro de torturas Brilhante Ustra e o responsável pelo retumbante fiasco do cerco a Carlos Lamarca em Registro, Erasmo Dias, que era um tigrão para barbarizar universitários mas virava tchutchuca diante de combatentes treinados, mesmo dispondo de 1.733 soldados para impedir a fuga de cinco guerrilheiros.
Ainda assim, é preciso darmos o desfecho correto a uma das páginas mais vergonhosas da nossa História, inclusive para não legarmos um precedente ignóbil aos que virão depois.
O próprio Jair Bolsonaro poderá espernear contra as penas a que será condenado por genocídio, golpismo e uma infinidade de outros crimes, alegando merecer a mesma anistia dos responsáveis pelas atrocidades dos anos de chumbo. Portanto, mesmo que ela venha a ser pra lá de tardia, é importante que a justiça não falhe em definitivo.
Neste sentido, pouco importa se o Toffoli não tem exatamente o perfil ideal para encabeçar tal cruzada. Afinal, aquela cujo dever moral era (até mesmo por haver sofrido a tortura na própria carne) usar toda a sua autoridade presidencial para tentar remover o obstáculo que impedia a condenação dos torturadores, falhou miseravelmente.
Refiro-me, claro, a Dilma Rousseff, que assumiu a presidência da República em 2011, cinco semanas depois de a Corte Interamericana de Direitos Humanos haver decidido que a anistia brasileira de 1979 era inválida por haver sido promulgada em plena ditadura, com parlamentares oposicionistas sendo inclusive chantageados a votarem a favor (só assim presos políticos seriam libertados e exilados políticos poderiam voltar para cá sem serem detidos no desembarque).
Henfil e os mortos e desaparecidos políticos: a alusão é à propaganda "tomou doril, a dor sumiu" |
Mas, preferiu ignorar esta parte da sentença, embora insistentemente cobrada por muitos juristas e entidades defensoras dos direitos humanos; e, quanto à outra parte, permitiu que os militares tornassem uma chanchada a busca dos restos mortais dos guerrilheiros exterminados no Araguaia, que deveriam ser entregues às respectivas famílias.
Finalmente, para tirar o assunto incômodo do noticiário, instituiu a Comissão Nacional da Verdade, sem, contudo, respaldar a sua atuação: sempre que o colegiado se chocou com os negaceios dos perpetuadores da mentira, não recebeu o apoio necessário para cumprir efetivamente a sua missão.
Logo os integrantes da comissão perceberam que sua função era meramente propagandística e que deles nada se esperava além de um relatório reunindo e sistematizando as informações já levantadas em investigações passadas, como as dos defensores dos direitos humanos e as da imprensa. Nada acabou vindo à tona que se comparasse, p. ex., à Casa da Morte de Petrópolis e às ossadas de Perus.
Vale destacar, contudo, que a da Dilma Rousseff foi apenas a última de uma sequência de omissões, que passa:
É crível isso como presidente do Brasil redemocratizado? |
— pela falta de afinidade ideológica do Fernando Collor com a tarefa e a falta de grandeza do Itamar Franco, mais preocupado com os anacrônicos fuscas e os paralelepípedos de cidades históricas ;
— por Fernando Henrique Cardoso não ter ousado concluir a lição de casa, embora haja percorrido uma parte do caminho ao instituir a Comissão de Mortos e Desaparecidos Políticos e a Comissão de Anistia;
— pela amarelada de Lula no início de 2010, quando o Alto Comando do Exército lançou um verdadeiro ultimato contra o esboço da terceira versão do Programa Nacional de Direitos Humanos e ele, como presidente da República e comandante-em-chefe das Forças Armadas, simplesmente contemporizou e prometeu alterações, quando deveria é ter respondido ao desafio com a exoneração imediata dos insubmissos (a partir daí os militares não pararam mais de dar murros na mesa sempre que contrariados);
— por, em diversas escaramuças no período 2007/2010, Lula invariavelmente haver tomado o partido de seus ministros conservadores quando, opostos a eles, Tarso Genro (Justiça) e Paulo Vannuchi (Direitos Humanos) tentavam engajar o governo federal em iniciativas voltadas para a revisão da Lei da Anistia. (vide este artigo);
O STF num de seus piores momentos: em 2010, quando garantiu a impunidade dos torturadores. |
Concluindo: a Argentina saiu de uma ditadura em dezembro de 1983 e em 1985 já estava processando o ditador e o comandante do principal centro de torturas, que não escaparam de ver o sol nascer quadrado.
Por aqui, o próprio hino nacional nos garante que somos um povo heroico e que um filho deste solo não foge à luta, mas isto não se sustenta face aos 39 anos de ultrajante impunidade das bestas-feras da ditadura e da hipocrisia de mandatários que foram a própria corporificação da banalidade do mal a que se referiu Hannah Arendt.
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