domingo, 18 de fevereiro de 2024

DILMA DESPREZOU A CHANCE DE VIABILIZAR A REVISÃO DA ANISTIA DE 1979. TOFFOLI DECIDE ASSUMIR ESTA BANDEIRA.

A justiça é seletiva e letárgica no Brasil: os piores criminosos, quando servem aos
 poderosos,  quase sempre morrem antes de serem condenados e cumprirem pena.  
Passados 39 anos desde que o Brasil se redemocratizou, só agora poderá ser removido um dos piores entulhos autoritários do ciclo dos generais: o ministro Dias Toffoli, do Supremo Tribunal Federal, deseja promover, ainda em 2024, uma audiência pública para rediscutir a Lei da Anistia.

Trata-se, evidentemente, apenas de um ponto de partida. Só havendo vontade política por parte dos três Poderes a iniciativa prosperará.  

Pelo menos ela vem num momento propício: após a fracassada tentativa golpista de Jair Bolsonaro haver revelado que continua existindo uma banda podre nas Forças Armadas, os fardados não estão em condições de proteger seus aloprados. Precisam é convencer os brasileiros de que deixaram de ser uma ameaça à democracia. 

Vale lembrar que a quase totalidade dos vilãos maiores já saiu de cena. Morreram:
Se Toffoli obtiver o que Dilma nem tentou,
que tal trocarmos esta imagem pela dele?
— todos os ditadores que em 1964/85 colocaram a faixa presidencial sobre a farda:
— todos os signatários do Ato Institucional nº 5 menos um (Delfim Netto, hoje com 95 anos); e
— os capangas mais famosos do regime de exceção, como o delegado Sérgio Fleury, o comandante de centro de torturas Brilhante Ustra e o responsável pelo retumbante fiasco do cerco a Carlos Lamarca em Registro, Erasmo Dias, que era um tigrão para barbarizar universitários mas virava tchutchuca diante de combatentes treinados, mesmo dispondo de 1.733 soldados para impedir a fuga de cinco guerrilheiros.

Ainda assim, é preciso darmos o desfecho correto a uma das páginas mais vergonhosas da nossa História, inclusive para não legarmos um precedente ignóbil aos que virão depois. 

O próprio Jair Bolsonaro poderá espernear contra as penas a que será condenado por genocídio, golpismo e uma infinidade de outros crimes, alegando merecer a mesma anistia dos responsáveis pelas atrocidades dos anos de chumbo. Portanto, mesmo que ela venha a ser pra lá de tardia, é importante que a justiça não falhe em definitivo.   

Neste sentido, pouco importa se o Toffoli não tem exatamente o perfil ideal para encabeçar tal cruzada. Afinal, aquela cujo dever moral era (até mesmo por haver sofrido a tortura na própria carne) usar toda a sua autoridade presidencial para tentar remover o obstáculo que impedia a condenação dos torturadores, falhou miseravelmente.

Refiro-me, claro, a Dilma Rousseff, que assumiu a presidência da República em 2011, cinco semanas depois de a Corte Interamericana de Direitos Humanos haver decidido que a anistia brasileira de 1979 era inválida por haver sido promulgada em plena ditadura, com parlamentares oposicionistas sendo inclusive chantageados a votarem a favor (só assim presos políticos seriam libertados e exilados políticos poderiam voltar para cá sem serem detidos no desembarque).
Henfil e os mortos e desaparecidos políticos: a alusão
é à propaganda "tomou doril, a dor sumiu"

Como a sentença da corte internacional vinculada à OEA prevalecia sobre as decisões do Judiciário nacional, Dilma teve nas mãos a oportunidade de finalmente tirar o gênio da garrafa, sem maiores riscos: bastaria ter cumprido o que a corte determinou.

Mas, preferiu ignorar esta parte da sentença, embora insistentemente cobrada por muitos juristas e entidades defensoras dos direitos humanos; e, quanto à outra parte, permitiu que os militares tornassem uma chanchada a busca dos restos mortais dos guerrilheiros exterminados no Araguaia, que deveriam ser entregues às respectivas famílias.

Finalmente, para tirar o assunto incômodo do noticiário, instituiu a Comissão Nacional da Verdade, sem, contudo, respaldar a sua atuação: sempre que o colegiado se chocou com os negaceios dos perpetuadores da mentira, não recebeu o apoio necessário para cumprir efetivamente a sua missão. 

Logo os integrantes da comissão perceberam que sua função era meramente propagandística e que deles nada se esperava além de um relatório reunindo e sistematizando as informações já levantadas em investigações passadas, como as dos defensores dos direitos humanos e as da imprensa. Nada acabou vindo à tona que se comparasse, p. ex., à Casa da Morte de Petrópolis e às ossadas de Perus.

Vale destacar, contudo, que a da Dilma Rousseff foi apenas a última de uma sequência de omissões, que passa:
É crível isso como presidente do Brasil redemocratizado?
— pela inapetência da
Nova República no que tange à remoção do entulho autoritário, com os parlamentares pisando em ovos por temerem uma recaída totalitária e com um presidente (José Sarney) que passou quase toda a ditadura lambendo os coturnos dos fardados como integrante e até presidente do partido situacionista, só abandonando o navio em 1984, quando o regime militar já agonizava: 
— pela falta de afinidade ideológica do Fernando Collor com a tarefa e a falta de grandeza do Itamar Franco, mais preocupado com os anacrônicos fuscas e os paralelepípedos de cidades históricas ;
— por Fernando Henrique Cardoso não ter ousado concluir a lição de casa, embora haja percorrido uma parte do caminho ao instituir a Comissão de Mortos e Desaparecidos Políticos e a Comissão de Anistia;
— pela amarelada de Lula no início de 2010, quando o Alto Comando do Exército lançou um verdadeiro ultimato contra o esboço da terceira versão do Programa Nacional de Direitos Humanos e ele, como presidente da República e comandante-em-chefe das Forças Armadas, simplesmente contemporizou e prometeu alterações, quando deveria é  ter respondido ao desafio com a exoneração imediata dos insubmissos (a partir daí os militares não pararam mais de dar murros na mesa sempre que contrariados);
— por, em diversas escaramuças no período 2007/2010, Lula invariavelmente haver tomado o partido de seus ministros conservadores quando, opostos a eles, Tarso Genro (Justiça) e Paulo Vannuchi (Direitos Humanos) tentavam engajar o governo federal em iniciativas voltadas para a revisão da Lei da Anistia. (vide este artigo);
O STF num de seus piores momentos: em 2010, quando garantiu a impunidade dos torturadores.
— pela decisão do STF em abril/2010, confirmando que a Lei da Anistia continuava impedindo que os torturadores e respectivos mandantes fossem condenados pelos seus crimes, por mais hediondos que fossem (execuções, torturas, estupros, espancamentos, afogamentos, ocultação de cadáveres, maus tratos a crianças filhas de presos políticos para intimidá-los e outros horrores). 

Concluindo: a Argentina saiu de uma ditadura em dezembro de 1983 e em 1985 já estava processando o ditador e o comandante do principal centro de torturas, que não escaparam de ver o sol nascer quadrado. 

Por aqui, o próprio hino nacional nos garante que somos um povo heroico e que um filho deste solo não foge à luta, mas isto não se sustenta face aos 39 anos de ultrajante impunidade das bestas-feras da ditadura e da hipocrisia de mandatários que foram a própria corporificação da banalidade do mal a que se referiu Hannah Arendt.

Vislumbram-se oportunidades para ainda mudarmos isto, acertando as contas tanto com o terrorismo de estado mais remoto quanto com o golpismo e o genocídio recentes. Se as deixarmos passar, será melhor nos assumirmos de vez como os bananas das Américas.
(por Celso Lungaretti

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