quinta-feira, 6 de janeiro de 2022

O ESTRANHO CASO DO WESTERN ITALIANO QUE NÃO FOI UM GRANDE FILME, MAS EXERCEU ENORME INFLUÊNCIA.

Sergio Leone inventou o western italiano com Por um Punhado de Dólares (1964), definindo suas linhas mestras ao contrapor ao moralismo maniqueísta dos bangue-bangues estadunidenses um universo primitivo, carente de quaisquer valores que não fossem a luta pela sobrevivência e a defesa de interesses pessoais por todos os meios, em que o Bem não existia e os maus só se diferenciavam entre si por os piores atuarem em bandos e os menos piores (os anti-heróis) se virarem sozinhos graças às suas habilidades  superiores, principalmente no manejo das armas.

No sétimo dia o deus Leone descansou e o serafim Sergio Corbucci completou a criação, dando a tal universo um visual mais compatível, truculento, sombrio, sujo e enlameado, no qual os únicos poderes são:
— uma gangue que se identifica por suas echarpes e capuzes vermelhos, remanescente dos confederados vencidos na Guerra da Secessão, mas associada pelos signos visuais a sociedades ultradireitistas que viriam bem depois, como a Ku Klux Khan e a Tradição, Família e Propriedade (*); e
— um pequeno contingente de mexicanos que tenta obter recursos e armas para sua participação nas atividades revolucionárias .
A esse grotão decadente chega Django (Franco Nero), um soturno ex-soldado da União, a pé, carregando sua sela e arrastando um caixão, para logo envolver-se casualmente com os litigantes. Primeiro, vê três mexicanos chicoteando uma mulher loura por ela haver tentado fugir do grupo, que presumivelmente a aprisionara e a mantinha como concubina compulsória do líder (José Bordálo). 

Eles são baleados de surpresa por cinco echarpes vermelhas, que pretendem crucificá-la por sua promiscuidade com os inimigos, mas aí Django intervém, trava com eles rápido diálogo e, também sem aviso, não lhes dando a menor chance de reação, mata os cinco com disparos rápidos.

Assim, como se fosse um cavaleiro andante da Idade Média, o impulso de salvar aquela (não) donzela o coloca imediatamente no meio da disputa de poder que lá se trava, dando início à série de acontecimentos que protagonizará meio ao acaso, pois tinha ido lá apenas para fazer negócios com os mexicanos, não para envolver-se na briga deles. 

E isto com uma dose de violência  chocante para a época (hoje o filme passaria em qualquer sessão da tarde) e dois duelos icônicos com os echarpes vermelhas do major Jackson (Eduardo Fajardo), o primeiro na rua central da cidade e o final no cemitério.

Apesar do roteiro tosco e dos diálogos pueris
, foi um filme tão bizarro e impactante para a época que inspiraria fortemente boa parte dos spaghetti westerns vindouros. 

Afora ter gerado uma infinidade de fitas "B" com anti-heróis também chamados Django, mas sem ligação com a equipe do filme inicial e tendo outros atores no papel principal. 

Franco Nero só retomaria o personagem no outonal e meramente mediano Django – a volta do vingador (d. Nello Rossati, 1987).  

Até Quentin Tarantino quis imitar o filme de Corbucci, mas seu Django livre (2012) não tem sequer a desculpa de estar abrindo uma novo caminho: apenas fechou o ciclo da decadência de um cineasta menor, imerecidamente endeusado e que já deveria ter-se despedido da câmara após perpetrar o pastiche histórico Bastardos inglórios (2009), como um garotinho mimado brincando de dar a Hitler a punição que não recebeu da História.  (por Celso Lungaretti)    
o que  não seria de estranhar-se no cinema italiano, pois, p. ex., o delegado interpretado por Gian-Maria Volonté em Investigação sobre um cidadão acima de qualquer suspeita (d. Elio Petri, 1970) tinha evidentes pontos de contato com fatos da vida do celerado tocaieiro do comandante Marighella, Sérgio Paranhos Fleury.

2 comentários:

Anônimo disse...

A nota de pé de página levou-me a procurar por um vídeo disponível de "Investigação sobre um cidadão acima de qualquer suspeita", a que assisti há muitos anos numa dessas sessões corujas da Globo. Se bem me lembro, por duas vezes. Surpreendi-me, agora, ao ver que o filme é colorido.

celsolungaretti disse...

Curiosamente, os artigos que encontrei na web sobre o filme não citam a semelhança do personagem com o delegado Fleury, que era muito comentada nos círculos de esquerda naquele tempo.

Ora, Fleury ficou conhecido inclusive no exterior por ter comandado, no final de 1969, a tocaia trapalhona a Marighella, na qual foi morta também uma policial (atingida pelo fogo cruzado "amigo" e um civil qualquer que trafegava com seu carro pela região).

Quanto à impunidade, ele era um assassino notório, como líder do grupo de extermínio Esquadrão da Morte, mas mesmo assim, em reconhecimento pelos serviços por ele prestados depois que passou a atuar na repressão política, os militares criaram um dispositivo legal para evitar que ele fosse preso preventivamente por seus crimes em passado recente.

O próprio Volonté enfatiza, na sua caracterização, a semelhança com os trejeitos de Fleury. E, claro, esse famoso drama brasileiro jamais deixaria de ser conhecido por Elio Petri, que militara até a década anterior no Partido Comunista Italiano.

Também é possível que Florinda Bolkan tenha tocado nesse assunto, pois, sendo amiga do Samuel Wainer, deveria conhecer bem tal história.

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