sábado, 10 de julho de 2021

OS INIMPUTÁVEIS DA PÁTRIA AMADA

Quando o sargento Manoel Silva Rodrigues, além da comitiva 
presidencial, transportou outro tipo de droga para a Europa, não era a Presidência da República nem a Aeronáutica quem estava contrabandeando cocaína. 

Era apenas um delinquente que usava a farda, desonrando-a, para melhor se proteger da fiscalização alfandegária. 

Se um soldado rouba uma arma militar para vendê-la às milícias urbanas, é expulso da corporação caso seja desmascarado como autor do furto. 

Por que, então, uma CPI não poderia investigar militares de alta patente que estão sob fortes suspeitas de, ocupando cargos de governo civil, terem participado de maracutaias na compra de vacinas contra um vírus letal? Isto é uma afronta aos integrantes honestos das Forças Armadas ou uma ameaça para os desonestos que nelas estão incrustrados? 

Sabe-se que, durante os 21 anos de ditadura militar, não foram poucas as suspeitas de cambalachos. 

Inclusive, generais eram admitidos na diretoria de grandes empresas para facilitarem os negócios destas com o governo e para lhes darem proteção quando acusadas de práticas econômicas ilegais. A invisibilidade desta área complementar de atuação era garantida pela censura e eles jamais foram tampouco processados por tráfico de influência.  

É conhecida a história de um figurão da grande imprensa que, tendo autorizado a publicação de notícia sobre um assunto malcheiroso, foi ameaçado por um militar de alta patente. 

Ao ser-lhe perguntado quem era o diretor do jornal, ele, num rasgo de coragem afrontosa, respondeu: o Alfredo Buzaid, pois o ministro da Justiça, e não os jornalistas, decide o que pode e o que não pode ser publicado. 

Quando uma nota do Ministério da Defesa (recentemente expurgado por Jair Bolsonaro), em conjunção com os comandantes das três Armas, afirmou que as Forças Armadas não aceitarão qualquer ataque leviano às instituições que defendem a democracia e a liberdade do povo brasileiro, isto soou no mínimo bizarro, à medida que eles estavam se dirigindo a investigadores  autorizados de crimes de peculato; daí ter sido amplamente interpretada como uma intimidação ao parlamento, tal qual estivessem fazendo os senadores de alvo num estande de treinamento militar.  

Seria leviano e ofensivo às Forças Armadas apurar-se a possível prática de um crime civil, pelo simples fato de possivelmente estarem envolvidos oficiais de alta patente? 

Não seria o caso de as Forças Armadas defenderem o Senado em tal apuração, reforçando as instituições democráticas civis que dizem defender e dando um exemplo de que são capazes de cortar na própria carne? 
Apurar possíveis crimes não é defender o povo brasileiro contra o cancro da corrupção com o dinheiro dito
público que tanto faz sofrer este mesmo povo (vale acrescentar que o erário é minimamente público e que não há maior corrupção do que a mediação social pelo próprio capital, admitida em termos legais). 

Ou será que, mesmo sem querer, a nota representa um ato falho, com tais militares sentindo-se atingidos embora não tivessem responsabilidade direta nos atos de colegas que pertencem à corporação, mas teriam delinquido noutro contexto, ou seja, quando prestavam serviços civis ao governo? 

É claro que o autogolpista Boçalnaro, o ignaro, que sonha com eternizar-se no poder como um déspota imune aos questionamentos, adorou a nota assinada pela Arma que ele tudo faz para transformar em meu Exército. Sentiu um cheiro de respaldo à sua conspiração permanente. 

Não e por menos que reiterou no último dia 9 a ameaça implícita na sua afirmação de que, caso não sejam reintroduzidos os anacrônicos votos impressos, não haverá eleições, como se lhe cabesse definir sozinho o processo eleitoral, passando por cima da Constituição, da legislação eleitoral e do TSE.

É claro que isto se trata, também, de uma tentativa de tirar o foco das mutretas que vêm cada vez mais à tona, sejam as referentes à sua prevaricação com as vacinas e ao peculato dos auxiliares que estão lucrando com a desgraça dos brasileiros, sejam as do esquema de rachadinhas que ele criou e cuja responsabilidade estava deixando convenientemente permanecer nas costas largas do filho 01, decerto acreditando que a faixa presidencial lhe permitiria garantir a impunidade do dito cujo. 
Inimputável? Neste caso,
dá até para aceitarmos...

Também sinaliza que, vendo-se com cada vez menos apoio popular para reeleger-se, ele cogita  melar o jogo eleitoral, repetindo a tentativa golpista de Donald Trump, apesar de ela ter fracassado. 

O certo é que o Boçalnaro exacerba o cometimento de crimes de responsabilidade e aumenta o volume do seu tradicional comportamento desequilibrado, que cada vez mais se insere, de modo piorado, no perfil de ex-presidentes como Jânio Quadros e Collor de Melo. 

Mas o Brasil, ainda que sinta os efeitos próprios a um país da periferia do capitalismo, é ressabiado demais para aceitar ditadores ao estilo Vladimir Putin (Rússia), János Áder (Hungria), Xi Jinping (China), Nicolás Maduro (Venezuela), Daniel Ortega (Nicarágua), Recep Tayyip Erdogan (Turquia) e outros que tais. 

Amadurecemos com os tormentos recentes da ditadura militar que findou há apenas 36 anos,  após a qual veio uma transição mal ajambrada da qual até hoje nos ressentimos pesadamente. 

As manifestações de rua e as pesquisas de opinião pública bem demonstram que o povo brasileiro, ainda que possa ser iludido episodicamente na busca de soluções de uma miséria secular, sabe muito bem o que representa:
— a atual inexistência de empregos e salários dignos;
— a volta da inflação, que está retomando gosto;
— a falta de leitos nos hospitais;
— a falta de escolas públicas bem aparelhadas e com vagas;
— a falta de habitação;
— as ruas sem esgoto sanitário, esburacadas e mal iluminadas dos bairros das periferias; e,
— enfim, a falta de tudo que livraria o povo brasileiro dessa humilhante realidade da miséria da grande maioria.

Pergunta-se qual é mesmo o significado da afirmação de que as Forças Armadas não aceitarão as decisões parlamentares de apuração de corrupção.
Eis algumas hipóteses:  
— seria ir ao Judiciário reclamar de possível injúria? 
— seria apenas (e de modo constitucionalmente irregular) pedir retratação de um outro poder, o legislativo? 
— seria colocar os tanques em frente ao Congresso Nacional, como ocorreu em outra oportunidade, mobilizando a soldadesca contra as instituições? 
— seria fechar o Supremo Tribunal Federal e prender os seus ministros e magistrados? 
— seria cassar mandatos parlamentares mediante um Ato In(cons)titucional?
— seria simplesmente prender os senadores que as Forças Armadas considerarem como insultuosos por estarem inquirindo oficiais superiores?
— seria dar a eles o mesmo destino do deputado Rubens Paiva, já que o Boçalnaro disse em 1999 que a ditadura militar deveria ter matado uns 30 mil opositores?
— ou será que veem o parlamento como instância jurisdicional incompetente para a apuração de crimes civis praticados por militares em funções civis? 

Por último: será esta a democracia que dizem defender, uma democracia na qual eles, tornados inimputáveis, estariam a salvo da responsabilização por seus atos? (por Dalton Rosado)

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