sábado, 11 de julho de 2020

CURIOSIDADE: UM ARTIGO QUE ESCREVI PARA CIRCULAÇÃO INTERNA NA VPR VOLTA ÀS MINHAS MÃOS MEIO SÉCULO DEPOIS – 3

(continuação deste post)
Bento manchado de sangue, após prisão 
O artigo que redigi em janeiro de 1970 e voltou agora às minhas mãos (acessem-no aqui) era o capítulo final de uma série criada para vender aos nossos quadros e a outros militantes de esquerda a ideia de que as Teses do Jamil, depois incorporadas ao programa da nova VPR, seriam a culminância da trajetória evolutiva do pensamento revolucionário no Brasil. Mas, não me culpem por tal exagero, também as outras organizações se promoviam assim, enfeitando demais o pavão.

O que o Jamil fez foi, isto sim, um primor de pragmatismo, varrendo as teias de aranha teóricas que atrapalhavam a união da esquerda contra o inimigo principal.

O PCB passara décadas pregando que, não tendo o Brasil passado por uma revolução burguesa típica, sobravam resquícios feudais no campo e existiria uma burguesia nacional tão indisposta com o imperialismo a ponto de o enfrentar.

Duas bobagens. Se o trabalhador rural brasileiro aspirava a ter sua terrinha, isto não implicava que, tão logo a possuísse, se tornaria inimigo figadal dos socialistas; ele estaria ocupado demais, tentando sobreviver à concorrência desigual com os grandes proprietários e com os grandes empreendimentos rurais. 

Nada indicava que, proclamando-nos socialistas e dispondo-nos a contribuir para que ele obtivesse a sonhada terra, ele dissesse não, com vocês não quero papo...     

Quanto aos resmungos de industriais e comerciantes genuinamente brasileiros contra o maior poder de fogo das multinacionais, eram superestimados pelo PCB que, por sinal, sempre se deu bem demais com os ditos cujos e foi por eles financiado... 
A burguesia nacional, na visão de Glauber Rocha

Na verdade, tal nacionalismo de araque ia até receberem oferta melhor do imperialismo, como Glauber Rocha magnificamente exemplificou em sua obra-prima Terra em Transe: o magnata das comunicações Julio Fuentes (Paulo Gracindo) confronta a multinacional que domina o país até que esta o seduz propondo-se a anunciar maciçamente nos seus veículos. 

Aí Fuentes retira a escada do esquerdista Paulo Martins (Jardel Filho), que ditava a linha editorial, deixando-o pendurado na brocha.

Mas, para não assustar os camponeses (que nem ligariam) e a burguesia nacional (que, no frigir dos ovos, optaria pelo lado inimigo), o PCB adotava a linha cautelosa que explodiu na sua cara em 1964, evitando falar em revolução e em darmos um fim à exploração capitalista. Falava em povo e nos dias que o Brasilino passava consumindo produtos e serviços estrangeiros a cada momento...

No processo de crítica e autocrítica subsequente ao golpe de 1964 (sim, naquele tempo não nos conformávamos passivamente com as grandes derrotas que sofríamos e as discutíamos aprofundada e apaixonadamente, para detectar nossos erros e aperfeiçoar nossa atuação), os contingentes da esquerda mais dispostos à luta contra a ditadura foram substituindo os manuais de Nelson Werneck Sodré, Josué de Castro e que tais pelo A revolução brasileira, de Caio Prado Jr., que proclamava enfaticamente o caráter socialista da revolução.

Jamil foi além:
Greve de Osasco, 1968; seus 2 líderes ingressariam na VPR
— se era impossível afirmar-se por aqui um capitalismo nacional, independente do imperialismo, por que temê-lo? 
— se os pequenos proprietários rurais não conseguiriam competir com os grandes empreendimentos capitalistas no campo, por que vê-los como adversários em potencial, caso conseguissem o que queriam?
— se uma revolução democrático-burguesa já deixara de ser possível no Brasil (se é que algum dia o fora...), por que deveriam os defensores do estágio socialista perder tempo e dispersar esforços combatendo os contingentes de esquerda que a defendiam, pregando a revolução popular ao invés da revolução socialista?

Enfim, o melhor era acreditarmos que, uma vez desencadeada a revolução, sua dinâmica necessariamente conduziria ao socialismo, daí ser desnecessário e desgastante batalharmos por isso. Travando uma luta contra inimigo mais poderoso, teríamos de unir todos que pudéssemos mobilizar contra ele, ao invés de afastar os que não rezassem por cartilha idêntica à nossa nos mínimos detalhes.

A derrubada da ditadura não seria fruto de uma guerrilha nos moldes cubanos, da guerra popular maoísta nem da greve geral leninista, mas sim da conjugação de uma miríade de ações revolucionárias no campo e nas cidades. Assim como Guevara recomendava que se criassem no mundo um, dois, três, mil Vietnãs, deveríamos estimular o afloramento de focos de resistência por todo o Brasil.  
Livro que foi muito influente

E se perdêssemos o controle desse processo e outra tendência acabasse se tornando a dominante após a vitória da revolução? Era um risco a corrermos. Não poderíamos nem deveríamos tentar controlar todo o processo, mas sim deixar que as iniciativas dos outros brotarem, apoiando-as na medida do possível. E confiar que a nossa coerência nos colocaria em posição destacada depois.

E qual o papel que nos caberia nessa luta pulverizada? Como a organização militarmente mais capacitada, as de:
— lançarmos uma coluna móvel estratégica (que não se fixaria em determinada região, mas se movimentaria sempre, atacando o inimigo para desgastá-lo e para exemplificar que era possível derrotar as Forças Armadas e, com isto,  alimentar a chama da resistência em todo o país); e
— a de fazer propaganda armada nas cidades (tomando supermercados para que o povo pudesse saqueá-los, sequestrando ricaços para obrigar suas famílias a distribuírem mantimentos nas favelas, etc,).

Enfim, a partir da modernidade revolucionária que presenciara na Europa; de influências como os livros A revolução na revolução, de Regis Debray e O desenvolvimento do subdesenvolvimento, de Gunder Frank; e da proposta da coluna móvel estratégica do Cesar, o Jamil criou o melhor programa possível para o estágio da luta que atravessávamos naquele momento. 

Realmente, perdíamos cada vez mais a iniciativa e mal conseguíamos realizar ações de grande porte sem a participação conjunta duas ou mais organizações, daí ser tão oportuna tal conclamação à união da esquerda, para que ninguém tentasse ocupar posição hegemônica como a do PCB até 1964, as organizações cooperassem umas com as outras ao invés de competirem estupidamente, as iniciativas isoladas surgissem em todo lugar e, numa etapa mais avançada do processo, se desse a união de todas essas forças para a derrubada da ditadura.

Infelizmente, já era tarde demais. 
Moraes desmentiu a versão de suicídio da irmã, Iara Iavelberg 
O Moisés e eu não fomos páreo para o Max e o Bento que, com os poderes de comandantes nacionais, conseguiram fazer com que fosse anulada nossa auto-indicação como delegados para o congresso nacional da VAR-Palmares que teve lugar em Teresópolis (RJ), setembro/1970, enquanto transcorria o sequestro do embaixador estadunidense Charles Elbrick pela ALN.

É que, com o caos pelo qual passava a Organização em SP devido à queda e morte do Elias, os três comandantes remanescentes decidimos ser temerária a realização de uma conferência nacional e optarmos por indicarmos nós mesmos os dois delegados. O Moraes, adepto da posição massista, insistiu que fôssemos ele e um de nós, o Moisés ou eu. 

O Moisés ficou tentado a ceder-lhe a vez, mas argumentei que duas vozes num congresso de umas 40 já teriam enorme dificuldade para prevalecerem; uma, menos ainda. Inconformado, o Moraes recorreu depois ao Max e ao Bento, que contra-atacaram com seu maior poder de fogo. 

Resultado: nossa auto-delegação foi cassada e acabamos permanecendo em Teresópolis apenas como seguranças, com direito a assistirmos aos debates com o bico calado quando não estivéssemos vigiando durante horas e horas os caminhos pelos quais a repressão eventualmente chegaria, para darmos o alarme e sermos os primeiros a morrer...   
O Mário Japa depois casou com a viúva do Juvenal

E os massistas iam vencendo ponto por ponto até que, ao perceber que a guerrilha rural deixaria mesmo de ser, na prática, a prioridade suprema, reduzindo-o a uma rainha da Inglaterra, o Cesar se decidiu a romper com a VAR, encabeçando aquele que seria chamado de racha dos sete: ele, o Alberto (José Araújo da Nóbrega), o Léo (Darcy Rodrigues), o Mário Japa (Shizuo Ozawa), o Matos (Cláudio de Souza Ribeiro),  o Moisés e eu.   

Ambos tivemos, então, reconhecido nosso papel: o Cesar se desculpou por não ter percebido antes que, ao invés de sermos os golpistas alegados pelo Bento e pelo Max, nós é que estávamos com a posição correta. 

O nosso novo programa teve realmente como espinha dorsal as Teses do Jamil, a organização passou realmente a ocupar-se apenas das tarefas armadas e a VPR foi realmente restaurada. Só erramos ao supor que o Colina fosse inteiramente massista e devêssemos nos separar in totum da metade VAR; parte viria, em seguida, para o nosso lado, como o Juvenal (Juarez Guimarães de Brito), a Lia (sua esposa Maria do Carmo) e o Virgulino (Wellington Moreira Diniz). 

A VAR tinha cerca de 300 quadros e acabou conservando uns 200. Mas os nossos 100 abrangiam  os mais aptos para as ações armadas, daí termos certeza de que desempenharíamos papel mais relevante no prosseguimento da luta. E a previsão se confirmou.
*  *  * 
Augusto foi homenageado na escola que cursou
Em termos pessoais, esse reencontro com um passado tão distante me fez perceber que formara retrospectivamente uma visão amarga demais do que fora aquele período para mim. A agressividade dos nossos adversários na luta interna, esmagando-nos com o peso de seus cargos e os meios de que dispunham para espalhar versões deturpadas a respeito de nossos objetivos, me chocou.

Depois, à medida que os massistas iam prevalecendo no desenrolar do congresso, refleti que, com a vitória deles, necessariamente exigiriam de mim uma autocrítica que eu jamais faria, inconformado com o jogo sujo que sofrera. 

Mas, procurado em todo o país, com a minha cara nos cartazes (por nós apelidados de galeria dos imortais da Oban), para onde iria? O que faria? Ainda assim, mesmo que tivesse de deixar Teresópolis por minha própria conta, com a grana que tinha no bolso, eu estava decidido a me desligar de imediato.

O Moisés, com sua mania de conservar sempre um trunfo guardado na manga, deveria ter-me contado que já acertara o ingresso de nós dois na Rede Democrática do Bacuri (Eduardo Leite). Só o fez depois de, na enésima hora, a maré ter virado em nosso favor... 

E a maior decepção de todas ocorreu na volta a SP. Recebi a tarefa de explicar a posição VPR aos companheiros, em reuniões conjuntas com o Bento, que defenderia a posição VAR. Nesse ínterim, ficaria abrigado num aparelho da VAR, para o qual fui conduzido, como era nossa norma, de carro e com os olhos fechados.
Sobrevivi para travar outras lutas, como a do Battisti em 2008/11

Depois de uma ou duas dessas reuniões (só me lembro que estava sendo convincente, mas não tenho certeza de quantas foram), o companheiro que deveria me apanhar no pontofurou; e não compareceu nem nas alternativas de meia hora depois e de várias horas depois. 

Abandonado, desnorteado e muito procurado, um incrível acaso me tirou da enrascada, pois, em pleno centro velho de SP, dei de cara com o Henrique (Devanir de Carvalho, do MRT), também procuradíssimo, e ele me prestou ajuda solidária, abrigando-me e me recolocando em contato com a VPR.

Constato agora que, no finzinho de janeiro, eu já havia assimilado todos esses maus momentos (inclusive a participação insatisfatória na equipe precursora da área 1 de Registro e o assassinato do Augusto (Eremias Delizoicov, meu colega desde o curso primário, depois amigo, companheiro de movimento estudantil  e um dos sete que ingressaram comigo na VPR).

No documento, vejo que defendia (o melhor que pude) nosso racha e tentava transmitir otimismo. Por que lembrava dessa série como fora da realidade da VPR, intelectual demais e descabida? Provavelmente porque, depois do Congresso de Teresópolis da VAR, do racha e do novo Congresso que recriou a VPR, baixara na Organização um clima de ojeriza por textos programáticos/teóricos e por congressos, a ponto de eu mesmo ter optado por não participar desse último.  

Aí, quando o Moisés me disse que alguns veteranos estavam considerando minha série um desperdício de papel, acabei ficando com essa imagem na cabeça. Hoje percebo que estava longe de ser tão ruim assim, embora hoje a fizesse menos triunfalista e mais realista.

Mas os jovens são mesmo mais entusiasmados que os idosos e meio século não transcorre sem nos modificar, para melhor ou para pior...  
.
(por Celso Lungaretti)

Um comentário:

SF disse...

Muito boa esta série.

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