quinta-feira, 9 de julho de 2020

CURIOSIDADE: UM ARTIGO QUE ESCREVI PARA CIRCULAÇÃO INTERNA NA VPR VOLTA ÀS MINHAS MÃOS MEIO SÉCULO DEPOIS – 1

Foi pitoresco receber, chegando aos 70 anos, um artigo que escrevi quando tinha 19 e era militante clandestino da Vanguarda Popular Revolucionária, enfrentando a ditadura bem no auge dos famigerados anos Médici. Mal me lembrava dele e das circunstâncias que o geraram.

Mas, quando a historiadora Carla Luciana Silva, professora da Unioeste, me achou no Facebook e remeteu os arquivos da relíquia que garimpara, fui aos poucos relembrando o que tinha sido essa primeira série que escrevi na vida (tantas outras viriam depois!), ainda sem o know-how jornalístico que adquiriria mais tarde, tanto que a intitulei, simploriamente, Nossas perspectivas revolucionárias

Sendo péssima a qualidade das fotos, consegui, a muito custo, reconstituir apenas o terceiro e último capítulo, que reproduzo abaixo. Seu valor como contribuição à teoria revolucionária é nenhum, mas presumo que as novas gerações tenham interesse no que, a partir dele, se pode depreender sobre a hoje lendária VPR.  

Aguardem a complementação deste post nos próximos dias, quando farei a contextualização e comentarei o que essa série representou para mim e para a VPR.

Adianto apenas que pouco tempo se passara desde o racha dos sete (encabeçado pelo comandante Carlos Lamarca e do qual participei) no Congresso de Teresópolis da VAR-Palmares, em setembro de 1969, daí eu estar então flagrantemente empenhado em justificar a decisão que havíamos tomado, de reassumirmo-nos como VPR.  

Por enquanto, vamos ao artigo, com todos os erros que cometi ao redigi-lo, pois não cedi à tentação de fazer correções (por Celso Lungaretti)
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UMA VIRAGEM RUMO AO CAMPO
Como vimos procurando destacar, nossa esquerda vem marchando, através dos tempos, ao sabor de duas forças contraditórias e que corporificam, uma delas, nossa colonização cultural e a importação de esquemas e instruções teóricas estranhas à nossa realidade; e a outra, nossa tentativa de atuar politicamente e pensar nossa realidade segundo ela mesma.

Consequentemente, a primeira se justificando e pensando através, principalmente, do leninismo de 1920, corpo de teoria que visava, acima de tudo, justificar uma estratégia insurrecionista de penetração orgânica no seio da classe operária e propaganda desenvolvida pela vanguarda partidária, até que se criassem as condições de desagregação do estado burguês que permitissem sua derrubada pela revolução.
Lamarca, antes de passar à clandestinidade
A segunda, pelo contrário, construindo progressivamente sua própria teoria (vide Debray e – sem nenhuma contestação – o companheiro Jamil [Ladislau Dowbor] –, uma revolução autêntica em termos de teoria revolucionária latino-americana), temperada pela dura realidade vivida em que a formação das consciência das classes para a luta só pode se dar nos quadros da própria luta, sustentada de início por uma pequena e combativa vanguarda progressivamente abra o caminho para a ampla organização armada das massas para a luta.

Até 64, dominou tranquilamente a primeira tendência, então corporificada pelo PCB; no entanto, o rude golpe que a teoria importada sofreu com a quartelada de 1º de abriu deu ensejo, de um lado, ao surgimento dos primeiros grupos armados, que agiam acima de tudo intuitivamente, para responder a necessidades objetivas (as expropriações se iniciaram quando o número de quadros clandestinos era tal que não havia mais como sustentá-los a partir das finanças legais) e desafios evidentes (os primeiros atos propagandísticos através de bombas respondendo a bravatas oficiais, aos descalabros da imprensa burguesa, etc.).

E, de outro, começou a deslocar o "papel" de baluarte da subserviência teórica para uma direita de origem principalmente intelectual e estudantil que foi se formando no seio desses grupos armados (cujos primeiros componentes eram principalmente de origem militar) e que se agrupou e ganhou força em torno dos chamados setores de massa, em que tentou prosseguir a velha prática de penetração orgânica, propaganda formativa, etc., em evidente contradição com a atuação dos chamados setores de expropriação.
Ação que a VPR executou semanas após este artigo   

Deve-se frisar que essa direita começou a surgir nos grupos armados à medida que se dava o esvaziamento do PCB; e que, sofrendo o impacto da própria realidade, ela já não era mais "leninista pura", mas procurava conciliar o leninismo tradicional com algumas gritantes exigências do momento histórico, como a necessidade de levar a luta ao campo (que ela pretendia tutelar, colocando-o como braço armado da cidade), como o imperativo das ações armadas de expropriação, como a exigência de um maior centralismo e de uma organização mais rígida, etc.

Em termos teóricos, essa tendência também foi, progressivamente, se transformando: se antes de 64 ela sequer se preocupava com a questão de tomada do poder, que ficava como que uma consequência natural da luta política, agora ela já havia que colocar a tomada do poder na ordem-do-dia, o que a deslocou, aos poucos, de Lênin até Mao [Tsé-Tung] e Ho [Chi Minh], copiando a estes a estratégia, as etapas pelas quais "atravessaria" a guerra, etc., utilizando a guerra popular para justificar o prosseguimento das inúteis e catastróficas tentativas de penetração orgânica na classe operária nos velhos termos tradicionais, a conceituação ampla da "defensiva estratégia" para ignorar a existência de uma etapa presente em que todos os esforços devem se centrar no deslocamento da vanguarda rumo ao campo (etapa esta que ficou conhecida como de "preparação", e que eu qualifico neste trabalho de "viragem para o campo"), já que toda sua força está no trabalho urbano, onde se situa sua idolatrada "classe operária".
Jamil, o teórico da VPR, hoje leciona economia 

Por isso mesmo, o racha, a cisão e separação dessas duas tendências, a libertação da segunda, até então dominada pelos "importadores", se daria em relação ao campo e a prioridade que se deve dar, na prática, ao seu encaminhamento, que só será garantido através de uma série de medidas que contrabalançassem o peso político maior das cidades e a dependência do trabalho rural em relação ao meio urbano, tanto em termos de infra-estrutura material quanto humana.

Com a generalidade vazia da "defensiva estratégica", os "importadores" procurar mascarar a necessidade de uma série de medidas práticas para garantir a prioridade do campo; por isso, o racha que fizemos afirmaria, acima de tudo, nossa realidade presente, que é, em suma, a da viragem rumo ao campo ou da preparação para a luta no campo. (Lourenço, 29/01/1970) 
(continua neste post)

5 comentários:

Henrique Nascimento disse...

Eu não tinha esse discernimento e maturidade em escrever algo nesse nível nos meus 19 aninhos de vida.

Tenho muita curiosidade em saber qual é o atual paradeiro dos seus ex-companheiros que sobreviveram ao regime. Por exemplo, o que eles fazem hoje. Aqui foi mencionado o "Jamil", personagem muito citado em seu "Naufrágio da Utopoa".

celsolungaretti disse...

Henrique, esse túnel do tempo foi interessante para mim, pois percebi que a minha memória não reteve uma impressão correta.

Lembrava-me dessa série como algo meio deslocado na organização, intelectualizado demais para sua finalidade. Revendo um dos capítulos depois de tanto tempo, percebi que eu tinha, sim, absorvido o estilo dos documentos da VPR até demais. Nem parece coisa minha.

Quanto aos personagens, o Gilson e o Mané morreram nesta década, de forma que, dos 8 que ingressamos juntos na VPR, só estamos vivos o Diego, o Edmauro, a Teresa Ângelo e eu.

O Jamil foi até ministro da Economia em países do 3º Mundo, agora é professor universitário e jamais evoca seu passado guerrilheiro.

A Maria das Graças, que me conduziu para dentro da esquerda, é também professora universitária, detesta o PT e, por extensão, toda a esquerda. Trocamos e-mails, mas nossas opções na vida nos distanciaram muito.

A Maria do Carmo Brito, viúva do Juvenal, casou com o Mário Japa, que fez carreira como jornalista de agência internacional. Moram no Rio.

O Ivan Seixas tinha muitas dores nas costas, de ferimento de tortura. Anda sumido.

Enfim, é uma desolação só. Creio ter sido quem menos mudou, talvez porque não entrei na esquerda por uma empolgação momentânea (acontecia muito na segunda metade dos anos 60). É que o que o capitalismo me prometia não era o que eu queria.

Lá pelos 15 anos já tinha concluído que não queria o destino que me parecia destinado: um diploma universitário, um emprego bem pago, casa bonita, carro, mulher de classe média. Mais ou menos como o Raulzito colocou em "Ouro de Tolo", eu achava tudo isso um saco.

Achava que ganhar dinheiro não era um objetivo que justificasse minha existência (até porque, filho de operário, acostumei-me a me satisfazer com pouco, cheguei até a passar fome quando morava em comunidade alternativa e, de um jeito ou de outro, ia levando).

Passei uns dois anos procurando algo que fosse bom para mim, mas que também beneficiasse as pessoas num sentido mais amplo, ofício e ideal ao mesmo tempo.

Acabei encontrando-o na militância revolucionária. Então, por mais que minha trajetória tenha sido muito sofrida em alguns momentos, nunca cogitei levar outra vida.

Já me decepcionei muito com pessoas, mas tive um vislumbre, no meu "ano hippie", que o ser humano é capaz de levar uma existência fraterna e solidária, se decidir que é isto que ele quer. E continuo acreditando em experimentarmos isso em escala mais ampla, desta vez nos prevenindo contra as vaciladas totalitárias que desfiguraram as revoluções do século passado.

De qualquer forma, a chance de dar certo agora é muito maior, porque já não existe alternativa: ou aprendemos a sobreviver juntos, ajudando uns aos outros, ou dificilmente haverá um século 22.

Um abração!

Henrique Nascimento disse...

Certa vez busquei informações, por mera curiosidade, sobre o paradeiro dos personagens que aparecem no seu livro e também de outros militantes. Esse meu interesse era apenas para sondar se essas pessoas permanenciam fiéis ou (não cabe a mim julgar) se "acomodaram", deixando para trás os ideais que as levaram a pôr suas vidas em risco.

Achei informações sobre deles: Edmauro, que hoje vive na Chapada Diamantina na Bahia (coincidentemente bem próximo do local onde assassinaram Lamarca e o Zequina) e o sargento Darcy que hoje ainda vive no vale do Ribeira. Cheguei a assistir um documentário sobre a guerrilha do Ribeira no qual o Darcy participa.

ismar disse...

Prezadíssimo Celso,

Parei aqui para entrar no teu túnel do tempo e perceber que hoje não existem jovens com 19 anos com a tua capacidade intelectual em 1969.

Parabens.

Ismar,
Salvador,
Ba.

Forte abraço.

celsolungaretti disse...

Meu caro Ismar, há quanto tempo(

Fiz a besteira de te escrever uma longa resposta diretamente cá no blog e a perdi quando tentei salvar, porque a internet havia caído. Algum dia aprenderei a escrever sempre no bloco de notas.

Eu nunca me superestimei, velho amigo. Era um pouco melhor do que os jovens da minha idade e do meu meio (a baixa classe média), mas a meninada vinda dos colégios da elite que eu conheci no movimento secundarista tinha muito mais conhecimentos políticos do que eu.

A verdadeira diferença era de que eu descartara o futuro que minha família desenhara para mim e passei entre os 15 e 17 anos procurando aquilo a que eu quereria dedicar a minha vida. Então, quando entrei na luta não foi um deslumbramento passageiro, mas sim um ponto de chegada.

Já vários outros, como o Persio Arida e até o Ladislau, eram brilhantes e continuaram brilhantes. Recompuseram-se depressa após a derrota e foram vencer na sociedade burguesa.

Então, como a militância passara a ser a minha vida, acabei me entrosando depressa na VPR (e pagando um preço alto pelas etapas que queimei).

Apesar da trajetória turbulenta e em alguns momentos muito sofrida, não posso me queixar. Tenho a impressão de que, em circunstâncias mais amenas, eu nesta idade estaria fazendo exatamente o que faço agora. Nunca quis outra vida.

Um abração!

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