domingo, 16 de fevereiro de 2020

FILMES "CORINGA" E "PARASITA" FLAGRAM A REBELIÃO CEGA NUM MUNDO SOCIALMENTE DEVASTADO PELO NEOLIBERALISMO

De vez em quando a academia de Hollywood faz justiça à arte e premia filmes esteticamente importantes. Este é o caso recente do sul-coreano Parasita, do diretor Bong Joon-ho. 

Não entrarei em detalhes da trama para não atrapalhar a experiência de quem ainda não viu (o tal do spoiler) e para não ser redundante com quem já o conhece. Ressaltarei apenas a lógica expressa ali das relações de classe no capitalismo neoliberal decadente. 

Embora a história se passe na Coréia do Sul, suposto paraíso neoliberal, quem assiste facilmente vê as similaridades com qualquer outro país do mundo e, em especial, com o Brasil. Uma população trabalhadora remediada vive na tensão entre as promessas de consumo e cidadania não cumpridas e a indigência completa. Por outro lado, há uma família de classe média alta alienada de sua realidade e pretendendo emular os valores from USA

A trama do filme é justamente o encontro destes dois mundos e como cada família fará para atingir seus objetivos e conseguir realizar as promessas feitas a elas. Aos pobres, a promessa da cidadania consumidora; aos ricos, a de participarem da lógica cultural globalizada. 

Os ricos usam os pobres, os pobres usam os ricos e a única forma possível de contato entre eles é a da desfaçatez e do parasitismo social. 
Daí vermos na tela uma sociedade em que não há mais espaço para a solidariedade ou para relação juridicamente mediatizada. Ao contrário da antiga relação trabalhista mediada por direitos de empregados e funcionários ou mesmo da antiga relação de patronagem (na qual os funcionários eram protegidos de abusos dos seus patrões), agora, no capitalismo neoliberal, só pode imperar a relação hipócrita, pois precária, de indivíduos isolados e voltados apenas à realização de seus objetivos pessoais. 

Nesta lógica, o outro aparece apenas enquanto um instrumento cujo uso deve ser feito ao mínimo, pois seu fedor pode contaminar o ambiente...

A classe alta não se reconhece mais no povo, pois o compartilhamento cultural deixou de ser o de outrora. Até a língua comum é paulatinamente abandonada em prol do universal inglês. Neste aspecto, os trabalhadores só valem para esta burguesia enquanto força de trabalho ativa. Quando não estão desempenhando um trabalho, eles simplesmente não existem para ela. 

Ao mesmo tempo, a classe trabalhadora também vê à burguesia enquanto fonte financeira. Não é uma classe oposta, são indivíduos com dinheiro, capazes de pagar seu acesso ao mundo do consumo. 
Revoltas à Coringa estão nas ruas, mas...
A relação entre as classes, portanto, passa a ser tênue, atomizada e inconsistente. E isto terá consequências quanto à luta de classes. 

No mundo neoliberal, as organizações de classe – sindicatos, partidos, associações – não existem mais, são apenas simulacros que representam a si mesmas e não aos trabalhadores. 

Do mesmo jeito, os órgãos de representação política – parlamento, judiciário, ministérios, etc – foram sequestrados pelo capital monopolista e não possuem mais permeabilidade aos reclames populares. Numa espécie bizarra de Estado de natureza hobbesiano (o homem é o lobo do homem), há uma guerra surda de todos contra todos.

Sendo assim, como poderá ser expressa a guerra de classes? Apenas enquanto ódio pessoal. Quando finalmente a máscara da hipocrisia caí e não é mais possível existir relação entre os indivíduos, a única saída é cada um cuidar de seus interesses passando por cima do outro. 

E é neste momento que o trabalhador concebe o burguês enquanto seu inimigo de classe e, na sua impotência, só pode executar um ato máximo de ódio pessoal. 

É justamente a rebelião cega, vingança pessoal que nada muda. 

Algo semelhante ocorre em Coringa, mas dando um passo além. Embora esteticamente inferior ao filme coreano, a adaptação cinematográfica do anti-herói dos quadrinhos também consegue apanhar com precisão a dinâmica da era neoliberal do capitalismo. 

Estrategicamente ambientado na década de 80 – para relembrar a funesta era Reagan e também para evitar acusações de incentivo à violência na época atual – o filme vai mostrar outro lado do processo de decomposição social. Enquanto Parasita se voltou às relações deterioradas entre as classes sociais, Coringa abordará como o próprio mundo social se decompõe. 
...Parasita também mostra sociedade se desintegrando...

Muitos censuram o fato de se apresentar no filme um personagem psicologicamente desequilibrado como sendo o vetor de revolta contra o sistema capitalista. Isto seria uma forma, dizem, de atribuir a revolta contra o sistema como sendo um ato de loucos ou criminosos. Há certa justiça nesta censura, mas ela parte de uma consideração parcial da realidade. 

Tal como no caso de Parasita, a realidade é a da destruição das vias coletivas de organização. É o mundo do desespero individualista. As promessas da revolução e da realização humana do fim da história fracassaram. Só restou a realidade dura e alucinada na qual até mesmo a solidariedade de colegas de trabalho e o amor familiar deixaram de existir. 

Neste mundo arruinado, o único caminho lúcido é a loucura. Ela será a forma fundamental de rebelião contra a realidade e será o vetor da luta de classes. E, tal qual no filme coreano, chegará uma hora em que se descortinará ao trabalhador a natureza de classe da burguesia e sua condição de inimiga. E, de modo igual, a única forma de expressar o ódio será pela via pessoal. 

A diferença, no entanto, é que em Coringa, o ato de rebelião pessoal servirá de exemplo para uma rebelião coletiva, desengatando a guerra de classes na cidade de Gotham. Os ricos são os inimigos e devem ser eliminados. 

No entanto, trata-se ainda de uma rebelião individualizada. Os ricos não são visados enquanto classe social ontologicamente concreta, mas enquanto um amontoado de indivíduos agindo contra os trabalhadores. Mais uma vez, o grau de consciência de classe ainda está dentro dos limites do neoliberalismo e impera a atomização. A classe em si ainda está obnubilada pela composição de vários indivíduos. 
...e a pergunta crucial é: até quando suportaremos? Não será nas telas que vamos encontrar a resposta
Coringa dá um passo além de Parasita porque nele a rebelião se torna coletiva, embora ainda permaneça na lógica cega da pura vingança pessoal. 

Retrato mais correto de nossa realidade, porém. Em nossa época, vivenciamos uma série de rebeliões ao redor do mundo, rebeliões muitas vezes que descambam para a vingança pessoal contra símbolos ou indivíduos. O alvo é a vidraça do banco, o ônibus, o presidente, o ministro ou o partido. No entanto, a estrutura social do capitalismo não é confrontada explicitamente, apenas questionada implicitamente. 

Não é gratuito, portanto, o fato de que tais rebeliões muitas vezes terminarem em nada ou mesmo serem apropriadas pela extrema-direita. Pois, sua essência acaba sendo o puro ódio e ressentimento, e disto quem melhor sabe são os neofascistas. Necessitados de inimigos individualizados, Trump, Bolsonaro, Johnson e demais palhaços o apontam para a purgação das massas: é o gay, o imigrante, o esquerdista, o professor, a mulher, etc.

Coringa e Parasita despontam como dois dos filmes que melhor retratam nossa época, uma época devastada socialmente pelo neoliberalismo e cuja recusa pelas classes trabalhadores não encontra uma orientação racional e emancipatória. (por David Emanuel de Souza Coelho)

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