domingo, 2 de dezembro de 2018

DOS SANS CULLOTES AOS COLETES AMARELOS

As barricadas parisienses de maio de 1968...
Por um capricho da História, as efemérides dos dois marcos revolucionários mais significativos do século 20 se sucederam entre novembro/2017 e maio/2018, como que nos convidando a refletir sobre ambos.

A revolução russa de 1917 foi a mais clássica das revoluções inspiradas pelo marxismo – e também o divisor de águas entre os ideais românticos do século 19 e uma tentativa de atualização que produziria um épico... desvirtuamento!

Até a Comuna de Paris (1871), o avanço crescente das lutas do proletariado parecia indicar que a profecia de Karl Marx se concretizaria, com uma onda revolucionária varrendo o mundo de forma quase espontânea, como resultado do esgotamento do capitalismo e da necessidade de sua substituição por uma forma mais avançada de organização da sociedade.

ancien régime, no entanto, contou com o braço forte da Alemanha para retomar o controle da situação e massacrar os communards, com as baixas refletindo bem a desigualdade que marcou o enfrentamento entre as tropas da reação (100 mil soldados) e os defensores da primeira república proletária da História (menos de 15 mil milicianos): foram mil os mortos do lado vencedor e 80 mil dentre os perdedores. Ai dos vencidos!
...e as da Comuna de Paris, em 1871.

Marx concluiu que os inexperientes revolucionários haviam sido tímidos demais, deixando, p. ex., de quebrar a máquina burocrática e militar do Estado enquanto podiam. 

E ficou evidenciado que os governos de países capitalistas acudiam prontamente seus congêneres ameaçados por revoluções, enquanto a solidariedade do proletariado internacional demorava a se organizar.

Lênin foi além, priorizando a estruturação de um partido revolucionário duro, que funcionasse com uma disciplina quase militar, apto a assumir a liderança dos trabalhadores nos momentos agudos para direcionar corretamente sua ação. 

Sua concepção vanguardista levava em conta, também, o surgimento de opositores relevantes no campo da esquerda: os adepto do reformismo, para o qual tendia naturalmente a chamada aristocracia proletária (os operários com cargos superiores e salários mais elevados).  

Constatando que a perspectiva de melhorarem progressivamente de vida sob o capitalismo, sem revolução nenhuma, seduzia muitos trabalhadores, Lênin chegou à conclusão de que o proletariado não se compenetraria espontaneamente de que seu papel histórico era o de dar um fim à exploração capitalista: necessitava de uma vanguarda que, participando com ele das lutas por ganhos materiais, lhe fosse incutindo a compreensão de que as eventuais vitórias eram ilusórias e logo se dissipariam, daí a necessidade de uma profunda e definitiva transformação da sociedade para que as conquistas se eternizassem.
Lênin e Trotsky: enormes acertos e alguns erros.
Lênin estava certo em termos de eficácia: só um partido como o Bolchevique conseguiria tomar o poder em novembro de 1917, apesar de contar com efetivos bem menores do que os de seus competidores do campo da esquerda. Em momentos críticos, poucos militantes que sabem o que querem, estão dispostos a irem até o fim e obedecem sem pestanejar a comandantes capazes pesam muito mais do que muita gente confusa, sem grande determinação nem líderes à altura dos acontecimentos.

Mas, a profecia de Trotsky sobre a maldição do vanguardismo, lançada no tempo em que ele ainda se opunha aos bolcheviques, também se revelou correta: "Primeiramente, o partido substitui o proletariado. Depois, o Comitê Central substitui o partido. Finalmente, um tirano substitui o Comitê Central".

O certo é que a Rússia foi se tornando um mero capitalismo de Estado totalitário: 

— seja porque a vanguarda bolchevique incubava mesmo uma nomenklatura ou seja, uma burocracia partidária quase equivalente a uma nova classe privilegiada;

— seja porque a Rússia não estava mesmo pronta para o socialismo e os vitoriosos de 1917 foram obrigados a cumprir, em seguida, muitas tarefas características de uma revolução burguesa, com a duplicidade de objetivos necessariamente causando desvirtuamentos;

— seja porque o proletariado russo, embora aguerrido e heroico, era numericamente muito reduzido, tendo boa parte dos seus melhores filhos tombado na defesa da revolução;
A liberdade guiando o povo (versão 1968)

— seja porque a consolidação do novo regime se deu em condições dramáticas, num terrível isolamento, com a Rússia tendo de, em 1918-1921, resistir sozinha à invasão de tropas de umas 20 nações capitalistas e aos contingentes dos reacionários internos, para depois desenvolver esforços hercúleos no sentido de saltar rapidamente de um país com desenvolvimento tardio para uma nação moderna).

De certa forma, a União Soviética, sob a tosca tirania de Stalin, serviu como espantalho para a propaganda capitalista dissuadir os operários das nações economicamente mais avançadas de seguirem na mesma direção. 

Contrariando a constatação de Marx, segundo quem eram os países mais pujantes que determinavam o destino da humanidade, com as demais sendo arrastados por sua dinâmica, as revoluções seguintes se deram em países pobres, desorganizados por guerras ou ainda emancipando-se da dominação colonial.

E o capitalismo foi aprendendo a lidar de forma cada vez mais eficiente com as várias tentativas vanguardistas que foram surgindo: seja vencer militarmente as guerrilhas urbanas e rurais, seja asfixiar economicamente ou derrubar governantes adversos por meio das Forças Armadas, Judiciário ou Legislativo de seus países.

Mas, a revolta jovem de 1968 na França foi o primeiro indício de que a História não tem fim e, quando algumas portas se fecham, outras se abrem. O capitalismo não tem tudo dominado, nem jamais terá; pelo contrário, marcha em passos rápidos para a extinção, que só vai significar o fim da História profetizada por Francis Fukuyama se a própria espécie humana extinguir-se junto com ele.

A sociedade que desenvolveu ao máximo os meios de comunicação é também a sociedade em que uma simples centelha evolui rapidamente para incêndio, surpreendendo governos e suas polícias.
Uma nova esquerda despontou em 2013. E foi tratada a pontapés pela velha...
Já em 1968, uma onda de paralisações em escolas de Paris evoluiu rapidamente para uma formidável greve geral, fazendo o presidente De Gaulle balançar no cargo, que só conservou graças à boia que o Partido Comunista Francês lhe atirou, mais interessado em manter sua liderança nas entidades sindicais do que em fazer a revolução. 

Merecidamente, ao agir como fura-greves da nova Comuna de Paris (são muito significativas as semelhanças da pauta dos communards de 1871 com a dos congêneres de 1968, ambas inspiradíssimas!), o PCF se condenou à insignificância. Os franceses não são tão condescendentes com relação às atuações desastrosas de seus partidos quanto os esquerdistas brasileiros...

E, nas manifestações contra o capitalismo e suas mazelas que vêm marcando a década atual, incluindo as jornadas de junho de 2013 no Brasil, a pulverização da vanguarda é uma característica comum. Não há força majoritária da esquerda as convocando e conduzindo, mas uma imensidão de células independentes imantadas pelas redes sociais.
Este título de livro se revelará profético?

Fazem lembrar as ondas revolucionárias que, segundo Marx, varreriam o mundo. Dá para imaginarmos que, com a agonia capitalista chegando ao ponto decisivo, uma crise do tipo da imobiliária de 2007/2008 possa não só evoluir para um clash como de 1929, mas também gerar uma reação da sociedade equivalente à Primavera de Paris.

Concordo com Zuenir Ventura: 1968 não terminou. Os fios da História poderão até ser reatados meio século depois, por que não? 

O certo é que, se tal acontecer, há uma grande chance de a centelha revolucionária novamente provir da França, quem sabe tendo manifestantes com coletes amarelos a empunharem a tocha libertária dos sans cullotes (*) de outrora... (por Celso Lungaretti)
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* Sans-culottes (sem calção) era como os aristocratas denominavam, pejorativamente, os artesãos, trabalhadores e pequenos proprietários participantes da Grande Revolução Francesa. Os culotes eram uma espécie de calções justos que se apertavam na altura dos joelhos, vestimenta típica da nobreza. Já os sans-culottes, que vestiam uma calça comprida de algodão grosseiro, geralmente lideravam as manifestações nas ruas.

Um comentário:

Unknown disse...

***
Só acredito em alguma mudança que venha de países mais desenvolvidos.
De lá, sim, pode vir algo bom.

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