domingo, 15 de abril de 2018

SEMANA TIRADENTES/2 = O TEATRO E A VIDA

"...cada conjurado ficou
sozinho: longe do povo que

não desejava, longe do poder
que pretendia derrubar. (...)
Menos Tiradentes: este queria estar junto — mas escolheu mal com quem" (Boal/Guarnieri)
A peça Arena Conta Tiradentes, que divide com o Romanceiro da Inconfidência (de Cecília Meireles) os lauréis de obra-prima sobre o herói da Inconfidência, foi também pivô de muitas discussões e polêmicas entre os esquerdistas da época.

Veio na esteira de Arena Conta Zumbi (1965), peça em que Gianfrancesco Guarnieri e Augusto Boal já haviam utilizado um acontecimento histórico (a saga dos quilombos) como parábola sobre o golpe militar.

Desde a introdução, esse propósito ficava claro, pois a proposta era contar uma "história da gente negra, da luta pela razão/ que se parece ao presente pela verdade em questão/ pois se trata de uma luta muito linda, na verdade/ é luta que vence os tempos, luta pela liberdade".

Ou seja, as restrições daquele momento o impossibilitavam de fazer uma peça declaradamente sobre a quartelada, mas o Arena utilizou o artifício de comparar, o tempo todo, o episódio passado com o presente.

P. ex., quando D. Aires, ao assumir a condução da campanha contra Palmares, faz um discurso recheado de paralelos com o golpe de 1964, tipo "a independência é necessária na teoria, na prática vigora a interdependência", óbvia alusão às  fronteiras ideológicas  (formação de um compacto bloco anticomunista) que os EUA pregavam, em substituição às fronteiras físicas.

E, como a censura era pra lá de tacanha, não percebeu sequer a quem o Arena se referia, ao colocar na boca de D. Aires esta fala: "Já não precisamos de Exército. Precisamos de uma força repressiva, policial. Unamo-nos todos a serviço do rei de fora, contra o inimigo de dentro!".
Como a usurpação do poder ainda era muito recente, a peça serviu como catarse, destacando a grandeza dos combatentes pela liberdade e a sordidez dos repressores. Era a mensagem adequada a um momento de perplexidade e medo.

Em 1967, entretanto, o foco era outro: a esquerda já se recompusera do susto, passando a discutir de quem, afinal, havia sido a culpa por fracasso tão retumbante.

A responsabilidade do Partido Comunista Brasileiro pela derrota saltava aos olhos: ao invés de organizar as massas para resistirem às previsíveis investidas reacionárias, acreditara que as Forças Armadas cumpririam fielmente seu papel constitucional de guardiãs da democracia.

O Governo João Goulart chegara ao cúmulo de não interferir quando a oficialidade promovia expurgos nas fileiras militares, enfraquecendo a rede de sargentos e cabos que evitara a tentativa anterior de golpe, em 1961. 

A esquerda estava, então, numa temporada de críticas, autocríticas e rachas, tentando reencontrar o norte após o colapso de sua força quase hegemônica, o PCB.
Augusto Boal, o inesquecível
criador do Teatro do Oprimido

Arena Conta Tiradentes refletiu tal momento, ao retratar a Inconfidência Mineira como uma conspiração palaciana, que é desarticulada com facilidade exatamente por não ter o respaldo das massas.

O coringa (narrador), ao explicar o fracasso dos inconfidentes, é taxativo: a maioria deles, pertencente à elite mineira, "estava em cima do muro, pronta pra pular pra qualquer lado, conforme o balanço". E conclui:
"E, se é verdade que muitas revoluções burguesas foram feitas pelo povo, também é verdade que, nesta, o povo estava ausente; e, mais do que ausente, foi afastado. 
Por isso, cada conjurado ficou sozinho: longe do povo que não desejava, longe do poder que pretendia derrubar. Sozinho, cada um pensava na sua prosperidade individual; sozinho, cada um pensou depois na sua salvação. Menos Tiradentes: este queria estar junto — mas escolheu mal com quem".
O alferes era, na verdade, o único vínculo entre os conspiradores palacianos e o povo. E eu não encontro motivos para discordar da avaliação de Boal e Guarnieri:
"Quando pensamos em escrever a história de Tiradentes, tínhamos a impressão de que Silvério não era tão safado como todo mundo dizia, nem o alferes tão herói como constava. 
Depois, estudando, chegamos à conclusão de que Tiradentes foi mais herói ainda do que se diz e Silvério tão safado quanto consta".
Silvério, vale dizer, não foi o único safado: outros também delataram a Inconfidência, mas só ele carrega o estigma histórico, sabe-se lá por quê.

Quanto a Tiradentes, teve comportamento idealista na conspiração e digno no cárcere. Foi, como Lamarca e Prestes, um militar que recusou o papel de cão de guarda do arbítrio e das injustiças, abraçando a causa do povo.

Merece ser reconhecido como o herói maior deste país tão carente de heróis e tão ingrato com os poucos que produz. 

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