Já lá se vão 11 anos que eu divulgo sistematicamente meus artigos na internet. Uma posição que mantenho desde o início e da qual jamais abrirei mão é a de colocar os princípios revolucionários acima de todas e quaisquer conveniências. Quem vai ao povo pregar a luta contra a desumanidade não pode, ele mesmo, compactuar com práticas desumanas.
Pouco se me dão as alianças firmadas por ditadores sanguinários como Bashar al-Assad, o carniceiro de Damasco. Mesmo que sua permanência no poder incomode EUA, Israel, as nações ricas da Europa Ocidental ou qualquer outro grande vilão da esquerda, ainda assim ele tem de ser afastado o quanto antes.
Não passa de um réprobo da civilização, um genocida e um psicopata, tanto quanto Adolf Hitler. ou Pol-Pot. Deveria estar num tribunal como o de Nuremberg, sendo julgado por crimes contra a humanidade.
Das muitas distorções em que incorre a esquerda desvirtuada do pós-1968, uma das piores é avaliar os acontecimentos internacionais sob a ótica desumana da realpolitik, como se o mundo fosse um enorme tabuleiro de xadrez. Ao copiarmos a amoralidade estadunidense (expressa de forma emblemática na frase do secretário de Estado Cordell Hull a respeito do ditador dominicano Rafael Trujillo, “ele pode ser um filho da puta, mas é nosso filho da puta”), deixamos os melhores seres humanos sem motivos para nos seguirem.
Exemplo de realismo político: pacto Hitler-Stalin de 1939. |
Bom para quem quer convencer o povo de que os políticos são todos farinha do mesmo saco e que é melhor cada um de nós cuidar da própria vida. Péssimo para quem precisa reavivar as esperanças de que, unidos, possamos dar um fim à exploração do homem pelo homem.
Revolucionários existem para conduzirem a humanidade a um estágio superior de civilização. Traem sua missão quando compactuam com a barbárie, seja lá qual for o pretexto. Ponto final.
As sucessivas opções pelo supostamente menos pior em detrimento do realmente melhor vêm conduzindo a humanidade para a beira do abismo e a esquerda para a impotência e até a irrelevância. É hora de voltarmos a nossos clássicos, a Marx, Engels, Proudhon, Lênin, Trotsky, Rosa Luxemburgo e outros deste porte, pois, como aprendizes de Maquiavel, fracassamos miseravelmente.
A indignação do veterano Clóvis Rossi com mais uma bestialidade cometida por Assad é minha também.
Idem o desalento, pois ele escreveu e eu o subscrevo por mero desencargo de consciência. Ambos estamos carecas de saber que nem desta vez o cão danado será, pelo menos, neutralizado. Continuará barbarizando, continuará mentindo e aqueles que o protegem continuarão fingindo que acreditam. (Celso Lungaretti)
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DITADURAS SÃO SEMPRE TÓXICAS
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É tarde demais para o mundo se horrorizar com o ataque com armas químicas ocorrido na 3ª feira (4) na Síria.
O horror é inerente às ditaduras, de qualquer coloração política, e elas se instalam ou se mantêm ante a indiferença e/ou impotência do mundo civilizado. No caso da Síria, a ditadura do clã Assad já dura 46 anos, primeiro com o pai, Hafez, e a partir de 2000 com o filho Bashar. Que esse horror suba alguns pontos na escala, com ataques com armas químicas, é tudo menos surpreendente.
Até porque já ocorreu antes: o BuzzFeed relata que, em outubro passado, uma investigação conjunta das Nações Unidas e da Organização para a Proibição de Armas Químicas denunciou que forças aliadas ao governo sírio haviam usado armas químicas pelo menos três vezes entre 2014 e 2015.
O caso mais notório ocorreu em 2013, com o uso de gás sarin em Ghouta, nas imediações de Damasco, o que causou a morte de cerca de 500 pessoas. O episódio levou a um acordo, organizado por EUA e Rússia, pelo qual o governo sírio entregou, em tese, todo o seu arsenal de armas químicas para destruição.
Se, como tudo parece indicar, o ataque desta semana é de responsabilidade do governo ou de aliados, fica claro que nem todo o arsenal foi destruído. Escrevo antes de saber o resultado da sessão de emergência das Nações Unidas (*), até porque é desnecessário esperar: se tivesse que agir, a comunidade internacional deveria tê-lo feito no início da crise síria, em março de 2011.
Tratava-se, então, da revolta de parcela importante da sociedade civil contra a ditadura. Revolta pacífica, reprimida, porém, com a violência característica de toda ditadura.
Deu no que deu: os rebeldes pegaram em armas, o regime endureceu ainda mais, outros países se envolveram – e, seis anos depois, "era uma vez um país, a Síria", como escreve o radialista Fouad Roueiha no capítulo sírio do livro Rivoluzioni Violate, editado na Itália a propósito da fracassada Primavera Árabe.
É natural que um ataque com armas químicas acenda sinais de alarme e desperte gritos de indignação, mas o alarme e a indignação deveriam ter ocorrido também (ou principalmente) ante os 470 mil mortos, os 5 milhões de refugiados no exterior e os 6,3 milhões de refugiados internos.
Para ficar só no tema armas químicas, "desde o início do conflito em 2011, mais de 14 mil pessoas foram vítimas de ataques com armas químicas e mais de 1.500 morreram em decorrência", escreve para o New York Times Ahmad Tarakji, da Sociedade Médica Sírio-Americana.
Para um país de cerca de 18 milhões de habitantes, tais números desenham o pior desastre humanitário desde a 2ª Guerra Mundial, como admitem os organismos das Nações Unidas. A ditadura e a guerra que ela atiçou deixaram a Síria com 85% da população na pobreza, com mais de 2/3 em extrema pobreza, e 1,75 milhão de crianças sem escola.
Uma tragédia inenarrável a que o mundo assistiu, às vezes horrorizado, mas sempre passivo. (Clóvis Rossi)
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* Nota do editor: como o Clóvis Rossi previa, a reunião deu em nada, pois o representante russo conseguiu criar um impasse ao sustentar que as armas químicas pertenceriam aos rebeldes, estando estocadas num depósito atingido pelos bombardeios de Assad. Esopo e La Fontaine não fariam melhor. Como alguém consegue mentir tão descaradamente sem sequer enrubescer?!
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