sexta-feira, 18 de novembro de 2016

REDEMOCRATIZAÇÃO PELA METADE DÁ NISSO!

A meia centena de viúvas da ditadura grunhindo e zurrando no plenário do Congresso Nacional assustou o articulista Vladimir Safatle, professor de filosofia na USP, inspirando-lhe um alerta agourento: "Nada morreu, tudo pode retornar". 

Parece que as vitórias do Brexit e de Trump deixaram nossa intelligentsia à beira de um ataque de nervos, tendo pesadelos com Bolsonaro no papel de Hitler brasuca, prontinho para implantar o 3º reich (depois dos de Vargas e dos generais). 

Há um tanto de exagero nesses receios, não só por se tratarem de épocas e crises diferentes, como também porque seria a repetição da História já nem mais como farsa, mas sim como chanchada da Atlântida...

Evidentemente, concordo com Safatle quanto à imperdoável omissão dos governantes brasileiros que deixaram de revogar a anistia de 1979, abrindo caminho para a apuração e punição dos crimes cometidos pelas forças repressivas durante a ditadura militar. Era algo a ser feito tão logo o País se redemocratizasse, mas a uns faltou convicção e a outros, coragem. 

Collor, provavelmente, simpatizava com os pitbulls do arbítrio. Sarney, como governador e senador, servira repulsivamente ao regime de exceção que lhes retirou as focinheiras. Itamar Franco não era homem para comprar tal briga. Mas FHC, Lula e Dilma ficaram com suas biografias manchadas para sempre. 

Quem teve de exilar-se e quem chegou a ser preso durante aquela ditadura jamais poderia sair pela tangente para evitar problemas, como os pusilânimes fazem; estava moralmente obrigado a defender os valores civilizados, custasse o que custasse!

FHC amarelou e, como prêmio de consolação para os humilhados e ofendidos, instituiu programas de concessão de reparações às famílias dos assassinados e aos sobreviventes do morticínio. 

Lula se apavorou com uma nota oficial do Alto Comando do Exército (vide aqui) que não passava de blefe e, ao invés de destituir imediatamente os insubmissos, determinou a seus ministros que ficassem em cima do muro, nem sim nem não, muito pelo contrário, apontando aos que tinham sede de Justiça o caminho dos tribunais. 

O Supremo Tribunal Federal tomou em 2010 uma das decisões mais infames de sua história (na contramão do entendimento sobre crimes contra a humanidade que vem se consolidando mundialmente desde o Julgamento de Nuremberg), ao outorgar a déspotas o direito de anistiarem a si próprios e aos seus esbirros com o arbítrio em  plena vigência. 

Dilma ignorou a decisão da Corte Interamericana de Direitos Humanos sobre a necessidade de apuração integral da chacina do Araguaia e sobre a não-validade de autoanistias promulgadas por ditadores, montando, como alternativa meramente propagandística, uma comissão da verdade engana-trouxas. 

Em meados de 2008 (vide aqui), percebendo que a falta de vontade política para se punir os algozes dos anos de chumbo inviabilizaria seu merecido encarceramento, eu já tentava convencer a esquerda e os cidadãos com espírito de Justiça a adotarem uma postura mais flexível: exigirem a condenação dos culpados, mas relevarem o cumprimento das penas, eliminando o ingrediente emocional que lhes poderia granjear alguma solidariedade na caserna.

Ou seja, como o Estado brasileiro demorara uma eternidade para fazer o que lhe competia e os réus, ou já haviam morrido, ou tendiam a falecer em breve, além de não representarem mais perigo para a sociedade, então que se concertasse alguma iniciativa no sentido da condenação inequívoca da ditadura de 1964/85, considerando criminosos os torturadores e seus mandantes, mas permitindo (sob pretextos humanitários, em funçao da idade avançada, etc.) que terminassem a vida fora das grades. 

Propus, portanto, abdicarmos do que (saltava aos olhos!) jamais conseguiríamos mesmo obter, em troca do encerramento da questão em termos minimamente aceitáveis, legando um precedente jurídico correto para os pósteros.

Clamei no deserto, claro, porque no Brasil as bravatas que invariavelmente conduzem às derrotas tendem a prevalecer sobre a sensatez que permite salvar algo do incêndio.

E é graças aos erros por nós cometidos no passado que as atrocidades totalitárias voltaram a ser bandeira dos rancorosos anônimosComo ressaltou Safatle:
"Esse é o preço pago pelo Brasil ser um país incapaz de encarar seu passado ditatorial, prender torturadores, exigir das forças armadas um mea-culpa pelo golpe contra a democracia, retirar o nome de membros da ditadura de suas praças e estradas, ensinar a seus jovens o desprezo por intervenções militares...
Não nos enganemos. Essas pessoas que estão a vociferar por mais um golpe de Estado não estão expressando uma opinião. Clamar por golpe militar não é uma opinião. É um crime, o pior de todos os crimes em uma democracia. Quem quer a causa quer os efeitos. Quem pede por golpe militar está a gritar por assassinato, tortura, ocultação de cadáver, censura, estupro, terrorismo de Estado.
Em qualquer democracia mais ou menos consolidada no mundo, o lugar dessas pessoas seria na cadeia, por sedição e incitação a crime".
Veio, assim, ao encontro do que proponho desde a década passada: que apologias da ditadura passem a receber no Brasil o mesmo tratamento jurídico dado à negação do Holocausto nos países civilizados (talvez substituindo as penas de prisão por prestação de serviços à comunidade, pois as condições das penitenciárias daqui são tão terríveis que nelas correriam risco de vida, algo que nem mesmo os pregadores do ódio merecem).

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