Porque, contrariando o significado expresso na origem grega da palavra, não se trata de um governo do povo, mas sim do enquadramento do povo no arcabouço institucional por meio do qual a classe dominante:
- faz prevalecer seus interesses próprios e impinge a ilusão de que eles coincidam com as necessidades da sociedade;
- defende e tenta eternizar o capitalismo, impingindo a ilusão de que ele seja insubstituível;
- defende e tenta eternizar a propriedade privada dos meios de produção, impingindo a ilusão de que ela seja condição sine qua non do dinamismo econômico;
- defende e tenta eternizar a exploração do homem pelo homem, impingindo a ilusão de que ela, tanto quanto a escravidão no passado, não seja uma afronta à dignidade do ser humano.
Nos pronunciamentos públicos, contudo, os principais representantes da esquerda brasileira passaram, farisaicamente, a tratar a democracia como se fosse algo a ser seguido, praticado e preservado. Já não a qualificam de burguesa. Já não afirmam que ela embute a dominação de classe. Nem sequer se identificam mais como revolucionários.
Assisti, estarrecido, a tal transição. Na eleição de 1982 para o governo dos estados, o Senado, a Câmara Federal e as assembleias legislativas, ainda estávamos submetidos à Lei Falcão, que limitava a divulgação nas rádios à leitura, por parte de um locutor, de um breve currículo de cada candidato, complementada nas tevês pela exibição de uma foto 3x4 do dito cujo.
Os petistas que haviam resistido à ditadura, dignamente incluíram nesses currículos sua condição de ex-presos políticos e, às vezes, também o porquê (quais atos ditos subversivos tinham praticado). Os adversários reagiram com zombarias do tipo "os candidatos do PT não têm currículos, têm fichas criminais".
A eleição direta seguinte foi em 1986, para os mesmos cargos e já sem as limitações impostas pela Lei Falcão. O PT, no primeiro dos muitos e muitos recuos que o desfiguraram, deixou de evidenciar a participação dos seus candidatos na luta contra a ditadura militar, antes escondendo-a, ao mesmo tempo em que começou a tentar enquadrar (ou expurgar) tendências de esquerda que existiam no seu seio, como a Convergência Socialista e o PRC.
Quanto mais poder conquistava sob o capitalismo e sem confrontar o capitalismo, mais se definia como um partido de massas igualzinho aos outros, tendo como objetivo máximo a conquista de governos e de cadeiras no Legislativo; e não um partido revolucionário, que tem como objetivo máximo substituir a ganância, a competição zoológica e a aberrante desigualdade capitalistas pela cooperação solidária dos indivíduos para a promoção do bem comum numa sociedade regida pelo igualitarismo.
Ao contrário do simplismo demagógico de Reinaldo Azevedo (segundo quem, por não aceitar seu impedimento, Dilma Rousseff estaria moralmente obrigada a retomar a luta armada), os revolucionários não oscilamos entre dois polos excludentes.
Ao longo de três mandatos presidenciais e um terço, o PT comprovou cabalmente que as ilusões eleitorais não nos levam aonde precisamos urgentemente chegar, nestes tempos em que o capitalismo se torna cada vez mais devastador em termos econômicos e ambientais, ameaçando inclusive a sobrevivência da espécie humana.
Se no século passado (e principalmente na Europa) ainda fazia sentido a esquerda participar de governos e parlamentos, desde que não superestimasse sua relevância, hoje salta aos olhos que o poder político se tornou um mero apêndice do poder econômico, servindo apenas para esconder do povo qual a verdadeira origem dos seus infortúnios.
Então, nem sequer utilidade tática têm mais para nós. Há vida fora de palácios do governo e das sedes do Legislativo. É nos locais de trabalho, nas escolas, nas ruas, campos e construções, que a esquerda a tem de ir buscar, voltando a fazer o trabalho de formiguinha de outrora, até readquirir forças para voos maiores (e melhores!).
Neste momento de extremo desencanto com a política oficial e os políticos, chega a ser hipócrita a presença do PT e dos partidos que permanecerem fiéis a Dilma Rousseff nas eleições deste domingo. Afinal, não cansaram de esgoelar acusações de golpe, aqui e lá fora?
Mas, se a democracia burguesa brasileira for, ademais, golpista, de que lhes adiantará conquistarem cadeiras que poderão ser retiradas de forma escusa a qualquer momento? Parece que, além das bandeiras revolucionárias, essa gente deixou para trás também o raciocínio dialético, não conseguindo mais enxergar certas contradições gritantes nas suas posturas...
O voto coerente, neste domingo e provavelmente em todas as vezes daqui para a frente, será o voto nulo. Isto, claro, supondo-se que os eleitores prefiram escapar das multas, sanções e amolações autoritariamente impostas a quem deixa de comparecer aos locais de votação.
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