sábado, 31 de maio de 2025

SOBRE O FILME 'NO CALOR DA NOITE', UM CLÁSSICO DE 1967, E A NOITE QUE HOJE SE ADENSA E AMEAÇA NOS TRAGAR A TODOS

F
oi por causa da insônia que resolvi rever No calor da noite (disponível no streaming da Prime Vídeo).

É que, quando acordo no meio da madrugada, assistir a um filme qualquer geralmente me ajuda a reencontrar o sono perdido.

A receita só não funcionou desta vez porque o velho clássico de Norman Jewison me provocou uma reflexão sobre a alternância dos humores do respeitável público, que oscilam do ótimo para o péssimo e vice-versa, sem alterarem o fundamental: enquanto o capitalismo continuar sobrevivendo à sua disfuncionalidade, os paliativos adotados pelas pessoas para seguirem vivendo não passarão de tempestades de som e fúria significando nada, como diria Shakespeare.

Evidentemente, sempre nos será mais gratificante vivermos em circunstâncias otimistas do que nas agônicas.  E os melhores dentre nós optam por resistirem com todas as forças ao avanço da desumanidade nos  regimes agônicos, ao invés de prostrarem-se a eles. 

Estimo que assim seja e minha opção de uma vida adulta inteira foi engrossar as fileiras dos resistentes. Tento, ademais, alertar os meus leitores e seguidores de que a alternância desses ciclos não significa que a solução esteja num deles. 

Não está. Ora sobreviveremos razoavelmente (mas muito aquém dos potenciais de melhora existentes) dentro do capitalismo, ora  comeremos o pão que o diabo amassou submetidos ao dito cujo, até que nos decidamos tomar a História nas mãos para destravá-la, livrando-nos do regime da exploração do homem pelo homem. É simples assim.

Atendo-nos ao passado mais recente, o século 20 começou com a ilusão de que os avanços científicos trariam grande progresso para a humanidade, que estaria entrando numa idade do ouro. 

Veio, no entanto, o primeiro conflito mundial e foi como um balde de água fria, com os horrores da guerra de trincheira superando os piores augúrios. E a paz precária acabou sendo apenas um intervalo no qual se incubaram totalitarismos e crises econômicas agudas, as quais desembocaram na Grande Depressão que perdurou durante toda a década de 1930 e só foi superada a partir de uma nova guerra mundial, seguida da penosa reconstrução do que fora destruído.

Assim como hoje falamos de décadas perdidas, poderíamos qualificar toda a primeira metade do século passado como perdida, do ponto de vista da ascensão da humanidade a um estágio superior de civilização.

A década de 1950 começou com a guerra fria pendendo como uma guilhotina sobre o futuro da humanidade e com uma repulsiva caça às bruxas ressurgindo em plenos EUA, o macartismo. 
Mas, após os Estados Unidos mostrarem sua pior face na perseguição arbitrária a alguns inimigos reais mas inofensivos e uma expressiva maioria de inimigos apenas imaginários, sucumbindo a uma grotesca histeria que foi insuflada ao máximo para servir à manipulação política, seria também lá que uma página mais digna da História começaria a ser escrita.

Foi a eclosão de movimentos para que os direitos civis dos negros passassem a ser respeitados, com os ditos cujos não mais sendo tratados como cidadãos de segunda categoria no seu próprio país. 

Hollywood, ainda que movida pelo interesse e não por convicção, não ficou indiferente aos ventos de mudança: a partir do metade final dos anos 50 produziu muitos filmes contrários ao racismo ou que abordavam criticamente as injustiças e desigualdades que continuavam existindo no país mais rico e poderoso do mundo.

A década de 1960 nasceu por lá sob o signo de esperanças ingênuas (John Kennedy não ascendeu ao poder por acaso!). E, embora houvesse uma encarniçada resistência dos setores mais retrógrados, foram crescendo as iniciativas para a erradicação de mazelas há muito arraigadas na sociedade. 

Os assassinatos de Martin Luther King e Malcon X reentronizariam o princípio da realidade, mas é impossível não simpatizarmos com aqueles esforços bem intencionados... e nem sempre bem concretizados em termos cinematográficos
.

A sequência de filmes que adotaram essas novas abordagens se inicia com Sementes de violência (d. Richard Brooks, 1955), seguindo-se Um homem tem três metros de altura (d. Martin Ritt, 1957), Acorrentados (d. Stanley Kramer, 1958), O sol é para todos (d. Robert Mulligan, 1962), Ao mestre, com carinho (d. James Clavell, 1967), Adivinhe quem vem para jantar (d. Stanley Kramer, 1967) e A libertação de L. B. Jones (d. William Wyler, 1970), entre outros.

Um magnífico exemplar de tal tendência é o que motivou esta digressão,  
No calor da noite (1967), que consegue passar sua mensagem edificante sem ranço didático nem pieguice. 

Começa com um sofisticado policial negro da Filadelfia, Virgil Tibbs (Sidney Poitier), de passagem por uma cidadezinha sulista atrasada e preconceituosa, se envolvendo com a investigação do assassinato de um grande empresário.

O xerife Bill Gillespie (Rod Steiger), cuja mentalidade é igualmente tacanha, se vê obrigado a pedir sua colaboração, pois é inexperiente em episódios de tal gravidade e os cidadãos não lhe perdoarão um fracasso, ainda mais sabendo que ele tinha um especialista à mão.

Então, mais do que o esclarecimento do crime, o filme vale mesmo é pela interação entre Gillespie e Virgil, que começa em choques de personalidade e acaba em respeito mútuo; e pela reação da comunidade racista à momentânea ascendência que o policial negro adquire.

Assistir de novo, tanto tempo depois, este filme bem intencionado foi paradoxal porque os preconceitos e a obtusidade que estavam então em fase de superação são exatamente aquilo que o presidente Donald Trump tudo faz para restabelecer, cometendo uma lambança atrás da outra. 

Trata-se de missão impossível e que causará enormes danos à humanidade (principalmente no enfrentamento das alterações climáticas), além de poder levar os EUA a deixarem de ser potência dominante. A China, que já morde seus calcanhares, deverá ser a grande beneficiada pela guerra que Trump move contra a ciência e o pensamento. 

Quem tenta fazer a História andar para trás invariavelmente  quebra a cara, como o Jair Bolsonaro aprendeu (e o Lula, que parece não ter compreendido o porquê do retumbante fracasso da política econômica da Dilma Rousseff, mostra-se tentado a repetir as mesmas besteiras...). 

Quanto à esquerda, mais do que nunca precisa compenetrar-se de que seu papel hoje é o de lutar contra os retrocessos civilizatórios e resistir à desumanização. mas não dentro da perspectiva de restaurar o status quo anterior.   
E há um forte motivo para tanto: as perspectivas que pareciam existir na última virada de século, de que finalmente a humanidade se beneficiaria em larga escala dos avanços científicos e tecnológicos, desfez-se como bolhas de sabão.

Outra vez se comprovou que o capitalismo não pode ser regenerado, nem os principais ganhos obtidos com as melhoras nas atividades produtivas serem redirecionado para os mais necessitados, pois sua lógica é a do aumento incessante da desigualdade econômica e tais ganhos acabam servindo apenas para reforçar a dominação exercida pelos bilionários, uma minoria de repulsivos Eltons Musks. (por Celso Lungaretti)

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