É uma fase de arbítrio e intolerância. Os partidos e organizações que ousaram pegar em armas para resistir à ditadura militar pagam um preço bem alto: as notícias de prisão e morte de militantes são praticamente diárias. Há indícios de melhora da situação econômica do País.
Ele veio de ônibus, calculando que daria tempo. Deu. O ponto com o Ivo e os dois simpatizantes está marcado para as 6h45.
Outro motivo para ter optado pelo ônibus é a certeza de que o coletivo estaria quase vazio nesse horário. Ótimo para quem precisa tomar cuidado com o revólver que traz na cintura, encoberto pela camisa folgada, que usa fora da calça.
Nesta manhã de quinta-feira Júlio não tem outros compromissos. Baterá um rápido papo com os simpatizantes que Ivo vai lhe passar e pronto! Estará livre para voltar ao quarto que aluga na casa de uma simpática velhinha do Rio Comprido (ótima cobertura, nada de fichas para preencher, nada que possa atrair atenções indesejáveis).
O jovem comandante dá alguns detalhes de bastidores que lhe foram transmitidos por outros aliados, Ivo diz o que sabe a respeito, trocam ideias, tecem conjeturas.
A conversa rendeu tanto que acabaram separando-se às 22h40, meio tarde para quem precisa manter-se a salvo das batidas policiais. Foi quando Ivo disse ter dois simpatizantes para passar:
— Eles trabalham numa estatal e têm informações interessantes para o teu setor. Mas só podem te encontrar bem cedinho, o expediente deles começa às 8.
Júlio, que detesta cair da cama, foi obrigado a aceitar o horário desagradável. Consolou-se com a ideia de que depois poderia voltar para seu quarto e dormir mais um pouco.
Chega sem cautela nenhuma, pois confia no jeitão tranqüilo e na experiência de Ivo, um renomado ginecologista beirando os 40 anos, que chegara até a ser candidato à Prefeitura por um pequeno partido. Simpático e bem relacionado, ele é uma verdadeira mina de aliados e simpatizantes para a Vanguarda Popular Revolucionária.
Apelidamos ironicamente esses cartazes de "os imortais da Oban" |
Além disso, esteve com Ivo oito horas atrás. O que poderia acontecer ao bom doutor em tão curto espaço de tempo?
Se pressentisse algum perigo, Júlio teria ido de terno, com o braço para dentro e a arma já engatilhada na mão direita, oculta pelo paletó. É o que faz em pontos arriscados.
Até algumas semanas atrás, teria também uma cápsula de cianureto entre os dentes, pronta para ser rompida por uma mordida mais forte. Foi uma contribuição de simpatizantes da área de medicina, mas o primeiro quadro que preferiu a morte à tortura... sofreu apenas um ataque de diarreia que o debilitou ainda mais diante dos algozes. É que os aprendizes de feiticeiro ignoravam algum detalhe da fabricação do comprimido letal.
A notícia do fracasso chegou à Organização e os militantes mais queimados — aqueles com reais motivos para evitarem cair vivos — tiveram de voltar a conviver com seus temores, sem a opção de uma saída fácil e quase indolor.
O ponto é numa padaria da praça. Júlio olha para os lados antes de entrar, mas só por hábito. E começa a pedir um café no balcão, quando é violentamente agarrado por vários homens. Um o segura por trás, impedindo que mexa os braços. É arrastado para fora, desarmado, encapuzado e jogado no chão de um veículo. Percebe que seu pior pesadelo virou realidade.
Com as mãos algemadas para trás, o capuz apertado, a cara contra o chão, sente falta de ar. Alguém lhe segura a cabeça, forçando-a para baixo, de forma que fique bem oculto dos civis. Durante o trajeto, vai repassando na memória o que lera no panfleto Se Fores Preso, Companheiro, do experiente Carlos Marighella.
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Morte por infarto do jovem Chael Charles Schreier despertou indignação mundial |
Isto, claro, se lhe derem chance. E se não lhe faltar coragem. A hora da verdade chegou e ele não tem certeza de como se comportará.
Quanto durou o trajeto? Quinze minutos? Vinte? Percebe que chegou num quartel, o motorista explica-se ao sentinela. Acesso permitido. O veículo pára e Júlio é retirado aos trambolhões. Tiram as algemas, mas mantêm o capuz. Sente que está numa espécie de recepção.
- Nome!
Resolve ficar calado. Que vantagem há em revelar um nome que está nos cartazes de Terroristas Assassinos Procurados? Imediatamente começaria a ser tratado como um peixe grande.
-Nome!
- Como você se chama, filho-da-puta?
- É, assim não vai. Leva ele logo pro pau.
Conduzem-no aos empurrões. Cai, levanta-se, tenta manter a dignidade. Finalmente tiram o capuz. Está numa sala repleta de homens fortes e mal-encarados. Procura os vidros contra os quais se atirar, mas não existe nenhum. As paredes são todas acolchoadas.
Mandam-no tirar a roupa. Fica imóvel, mas também não resiste quando lhe arrancam todas as peças. Sente-se inferiorizado e frágil diante dos brutamontes. Deixa que lhe envolvam os braços com tecido, amarrem com uma corda, coloquem um cabo de vassoura entre eles e as pernas e o icem. Fica pendurado sobre dois cavaletes, como um frango no grill das padarias.
Eremias, meu amigo desde o primário, morto por dezenas de tiros aos 18 anos |
Percebe que esses gritos animalescos estão saindo de sua garganta.
Socam-lhe o corpo, a cabeça. Mas são os choques que o abalam de verdade. A impressão de que morrerá sufocado, de que seu coração vai estourar.
Deixam que tome fôlego, perguntam-lhe o nome. Percebe que não aguentará, vai ter de mudar de atitude. Precisa de tempo para pensar. Diz o nome.
- Tá mentindo, piroca! Fala a verdade! Como se chama? (outra descarga)
- (ofegando) Sou eu mesmo! O dos cartazes!
Vão digerir a informação. Tiram-no do pau-de-arara, mandam ficar em pé, com o rosto contra a parede. Deixam que amarre de qualquer jeito a calça e a camisa rasgada em torno do corpo.
Antes de dar-lhes as costas, vê os torturadores sorrindo, com ar de deboche. Odeia-se por não ter resistido mais.
Percebe que isso é só o começo, o pior está para vir.
Um grandalhão dá um tapa na sua nuca, depois tenta assustá-lo com o símbolo do Esquadrão da Morte. Com uma mão agarra-o pelos cabelos da nuca; com a outra, coloca bem diante dos seus olhos a caveira do ridículo anel que usa.
— Bem-vindo ao inferno!A plateia estoura em gargalhadas.
Havia uma quarta, que nunca me ocorreria: sobreviver duplamente lesionado, fisica e moralmente, por haver caído numa armadilha da História, em que me debateria pelos quase 35 anos seguintes.
5 comentários:
https://www.marxists.org/portugues/marighella/1951/preso/se.htm
https://www.marxists.org/portugues/marighella/1951/preso/se.pdf
As bestas-feras e seus superiores (generais, brigadeiros e almirantes) deveriam ter sido imediatamente punidos logo em 1985, quando o governo brasileiro voltou a ser civil. É vergonhoso para nós, sabermos que as autoridades tardaram para tomarem iniciativas que poderiam ter sido tomadas já na década de 1980.
Enquanto permanecermos a assistir medidas frouxas no Brasil, só nos restará a permanecer protestando com toda a força, para que os brasileiros saibam que entre 1969 e 1973 inúmeras pessoas que tiveram a coragem de combater com bravura o endurecimento do governo militar, tenham sempre o nosso profundo respeito.
Apenas guerrilheiros, mas que , de fato, queriam um Brasil muito mais justo e muito mais solidário, não só naqueles tempos, mas como também hoje, nesse insano século 21, onde as pessoas pensam que podem dizer e escrever o que dá na telha, quando na verdade, isso é puramente vergonhoso aos cidadãos ainda sérios.
Mas quem te traiu e entregou o ponto pra repressão foi o Ivo ?
Anônimo das 23h05, "trair" é uma palavra muito pesada neste caso. O fato é que a desigualdade de forças ia nos apertando como um torniquete. Sabíamos que o Ivo era uma vulnerabilidade enorme em nossa segurança, mas se tratava do aliado que nos arrumava gente para resolver um monte de problemas que tínhamos. Então, ao invés de prescindirmos dele, continuávamos dependentes dos recursos humanos e materiais que ele providenciava para nós.
Várias vezes eu conversei sobre isso com o Juarez Guimarães de Brito, mas não encontrávamos uma solução. Nossa atuação seria muito mais difícil sem ele. No entanto, não era um militante nem tinha as características de um combatente. Em poucas horas a repressão o obrigou a entregar quem ele encontraria em seguida (eu).
Foi a chamada crônica da tragédia anunciada. No fundo, eu é que bobeei ao supor que estava seguro só por tê-lo deixado lá pelas 22h30 e estar com um novo ponto marcado para as 6h45.
O compromisso de um militante era resistir ao menos 24 horas antes de abrir pontos ou localização de aparelhos. Cabia à Organização avisar, nesse período, os companheiros para não cobrirem os pontos e providenciar a evacuação dos aparelhos. Mas, estávamos sendo otimistas demais. Mesmo para um militante era difícil, digamos, não abrir nada se torturado 12 horas ininterruptamente.
Pior ainda no caso de um aliado, como o Ivo. Então, eu nunca tive raiva dele por ter-me entregado. É que estávamos já no limite das nossas forças e iam surgindo cada vez mais brechas em nossa segurança .
Celso,
Sei que estarei apelando um pouco para o meu lado emocional, mas não escondo a minha raiva em relação as bestas-feras, por aqui, e o quanto sentiria o imenso prazer, se pudesse ver todos os guerrilheiros, num confronto de troca de tiros, conseguirem matar as bestas-feras, com disparos certeiros na cabeça de todos eles, justamente com a intenção de matar aqueles covardes, que jamais tiveram a menor capacidade de honrar a farda que eles vestiam.
E vale lembrar, que em 1979, o igualmente covarde delegado Sérgio Fleury mereceu morrer, como todo carrasco merece morrer sem dó, nem piedade.
Se eu fosse guerrilheiro na época, em que a guerra foi travada, entre a esquerda e a direita, e também fosse um bom atirador, com toda a certeza, num confronto entre as bestas-feras, sempre atiraria com a intenção de matá-los, jamais apenas feri-los, eles mereciam morrer, por serem absolutamente covardes e carrascos.
E não sentiria o menor medo em me tornar uma das pessoas mais procuradas pela repressão na época, sendo mais conhecido como um guerrilheiro matador de bestas-feras.
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