Museu da Capelinha, no Vale do Ribeira: podem destruir acervos, mas sua memória está bem viva. |
Para deixar bem esclarecido o episódio da queda da área de treinamento ativa da VPR no Vale do Ribeira, precisarei servir-me de informações das quais eu não dispunha naquele momento, mas foram chegando às minhas mãos nas décadas seguintes.
Assim, tendo eu aberto no final da tarde de 16/04 a localização da área abandonada, mas omitindo que ela havia sido desocupada pelo menos um mês atrás, os analistas do DOI-Codi desconfiaram de que eu estaria lhes entregando calhau como se fosse ouro e apenas despacharam uma equipe para verificar discretamente o que havia por lá.
Tal equipe vasculhou, em 17/04, o sítio que nos servira de fachada e, ao voltar no dia seguinte para a capital, apenas comunicou que realmente houvera trabalho guerrilheiro no local, mas dele nada restava. Voltou de mãos abanando.
A nova prisão de militante, na manhã de 18/04, foi a que justificou o lançamento da Operação Registro, pois forneceu o pacote completo à repressão: a existência de uma segunda área e de alguns aliados da VPR morando naquela região.
Com as novas informações, o DOI-Codi começou a montar o cerco de Registro. Daí tantos oficiais superiores não pertencentes a seus quadros terem sido chamados às pressas para uma reunião em plena tarde de sábado. E, como pensaram em obter mais detalhes por meu intermédio, me conduziram à sala em que uns 50 deles esboçavam seus planos de ação.
Descuidados, nem se incomodaram em evitar que eu cruzasse no corredor com a pessoa verdadeiramente responsável pela entrega da área ativa.
Acabei sendo-lhes inútil por causa da minha pressão acelerada e do receio que tiveram de uma nova morte de jovem por problemas cardíacos que não deveria ter na sua idade. E não me escapou que haviam descoberto algo muito importante, e graças a quem.
No domingo, 19/04, ambos fomos juntos transferidos, de carro, para a sede paulista do DOI-Codi, na rua Tutóia. E na manhã do dia 20, embarcados num caça da FAB para o palco das ações.
Aí me caiu a ficha de qual era a peça do quebra-cabeças que ainda estava faltando. Pois, quando Lamarca resolveu abandonar a área 1 e desenvolver a área 2, passou a sair de manhã cedinho com o motorista para ir comandar os preparativos. Voltavam no começo da noite se queixando de estarem com a bunda doendo de tantos quilômetros de rodovia que teriam percorrido sentados.
Era, percebi depois, uma encenação para eu e o Massafumi, que já havíamos decidido não continuar no trabalho de campo, ficarmos supondo que a nova área seria uma região rural em que pipocavam conflitos fundiários na Paraná. Na verdade, a área 2 distava apenas uns 30 quilômetros da área 1.
Mas, se moradores iam recolher palmito na mata e poderiam a qualquer momento desconfiar dos novos moradores (nós), além de estarmos demasiadamente próximos da rodovia BR-116, por que abandonarmos a área 1 e transferir o trabalho para outro ponto da mesma região?
Lamarca deve ter concluído que a existência de uma base de 4 ou 5 aliados locais da VPR seria valiosa, começando pelo fato de que assim ele logo saberia se a chegada de um contingente mais numeroso de companheiros a serem treinados levantasse suspeitas na região.
Ou seja, tomou uma decisão pouco recomendável em termos de segurança exatamente por carecer de apoiadores noutras regiões. Optou por correr riscos com os que tinha.
Pior ainda foi ter utilizado os préstimos desses aliados para a aquisição dos dois sítios. Dependendo das suspeitas que a repressão viesse a ter, uma simples ida ao cartório lhe revelaria o endereço de ambos.
Nem sequer foi necessário, contudo. A pessoa presa no sábado já deu ao DOI-Codi todas as informações de que necessitava.
Reportagem da Agência Pública revelou que os militares chegaram a bombardear as matas da região com napalm |
O relatório de operações do II Exército na Operação Registro, do qual só tomei conhecimento em 2004, historiou com exatidão o ocorrido: eu dera involuntariamente a primeira pista à repressão ao revelar a localização da área 1, mas isto não foi levado a sério até que, com a nova queda de militante dois dias depois, os militares tomaram conhecimento de que havia também uma área 2, a qual continuava ativa.
Tive um vislumbre dessa verdade quando, em algum dia da semana seguinte, fui levado às duas áreas de viatura, provavelmente como um teste para averiguarem se eu sabia mais do que revelava. Passamos primeiramente pela área 1 e demonstrei que a conhecia. Não havia informação nenhuma útil para eles lá. então minha sinceridade não faria mal nenhum.
Depois fomos para uma segunda área, que eu desconhecia, mas logo percebi do que se tratava. A área 2 ser tão próxima era a peça que me faltava para o quebra-cabeças inteiro fazer sentido.
Mas, claro, fingi nada ter percebido e os militares aparentemente acreditaram. Se soubessem quanta informação útil eu obtive deles porque me subestimavam...
Talvez pela gravidade do que eu intui, foi uma ocasião em que perdi um pouco a serenidade. Um capitão enfastiado, quando os demais milicos estavam afastados, tentou convencer-me a tentar a fuga pelo mato, "aproveita agora que não tem ninguém olhando!".
Paulo Betti no papel de Lamarca, no filme de 1994: era parecido, mas lhe faltava a aura de homem sofrido. |
Respondi de bate-pronto, sem pensar, apontando o meu peito: "Se é para me matar, atira logo pela frente. Não vou correr para levar tiro nas costas".
O capitão não insistiu, apenas mandou me levarem de volta para o delegacia de Jacupiranga. onde me guardavam precariamente Se fosse mais profissional, perceberia que eu não era o jovenzinho assustado que me esforçava para aparentar.
O que me tirou do sério? Foi haver percebido que minha exclusão da lista de troca do embaixador alemão não deveria ter sido engano, mas sim uma providência necessária para que eu servisse de bode expiatório pela queda da área.
E por quê? Certamente porque preservar a pessoa presa no sábado era mais importante para a VPR do que preservar a minha credibilidade revolucionária.
Não tinha dúvida nenhuma de que Lamarca estava ciente da minha inocência; afinal, ele mesmo me havia contado que algum(ns) ex-colega(s) de farda o municiava com informações quentes sobre o que acontecia no DOI-Codi. Tanto que ele não mexera uma palha quando fui preso no dia 16, mas correu a levantar acampamento e iniciar sua fuga quando a outra pessoa foi presa no dia 18.
Ter chegado à conclusão de que provavelmente estaria sendo desacreditado pela organização quando me esforçava ao máximo para preservar os quadros da VPR foi talvez a gota d'água que extravasou o copo, pois se acrescentou:
Por 40 anos prevaleceu a versão de que Lamarca morrera em tiroteio, mas esta foto provou que ele fora executado |
— à profunda decepção que me causara a briga de foice no escuro em que se constituíra o congresso da VAR-Palmares; e
— ao remorso que sentia por não haver zelado melhor pelos companheiros cujo ingresso na VPR eu liderara.
Daí a prostração que tomou conta de mim no final de junho. O arrependimento forçado que me impuseram me parecia insignificante diante de tudo que eu já havia sofrido.
E, no fundo, realmente era uma mera armação dos serviços de Guerra Psicológica das Forças Armadas. Quem acreditava naquilo engoliria qualquer coisa. Mesmo assim, feria demais o meu amor próprio lembrar-me daquela madrugada de pesadelo na sede da Rede Globo no Jardim Botânico. Quis até acreditar que nada daquilo acontecera, mas, no fundo, sabia que ficara muito aquém da imagem que eu tinha de mim mesmo.
Mas, dos tempos em que devorava os livros de Sartre e Camus, me restou a disposição de nunca buscar consolo fácil. Considerei definitivo aquele péssimo momento e assumi comigo mesmo o compromisso de superá-lo com o que fizesse doravante. Ao sair da prisão já recobrara o espírito de luta. A luta armada havia sido inviabilizada por décadas, mas resistir ao capitalismo, ainda que de outra forma, continuava sendo um imperativo para mim.
Quanto ao Lamarca, com o tempo fui compreendendo melhor seus motivos. Apostara tudo na sua visão de guerrilha rural e, quando teve a oportunidade de partir para a prova de fogo (já estava na selva, armado e conduzindo um grupo de guerrilheiros em potencial), percebeu que não tinha como sobreviver ao poder de fogo imensamente superior do Exército, só lhe restando, como opção para salvar a si próprio e a seus comandados, a volta para a cidade.
Ao ficar sabendo, depois de libertado, como tinha sido o final de vida do Lamarca, resolvi não questionar mais a decisão que tomara a meu respeito e quase me destruíra. Afinal, tendo entregado a vida em nome de suas convicções, ele fez por merecer a minha compreensão, pelo menos.
Aí, em 2007, quando a Comissão de Anistia do Ministério da Justiça concedeu à seus entes queridos uma pensão equivalente à de um coronel de Exército e as viúvas da ditadura bateram pesado em tal decisão, com o apoio repulsivo da grande imprensa, não suportei ver a omissão de tantos sobreviventes da nossa luta, que tinham o dever moral de defender a Família Lamarca;
Ao ter certeza de que não o fariam, entrei na polêmica, confrontando a Folha de S. Paulo, O Estado de S. Paulo e a Veja. Eu tinha a obrigação de ser maior do que aquela ralé que o atacava com tanta fúria, como se continuasse temendo o seu desprendimento e coragem. (por Celso Lungaretti)
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