segunda-feira, 11 de novembro de 2024

A ESQUERDA QUE NÃO SE DEIXOU COOPTAR PELO CAPITALISMO: UM LEGADO (parte 5)

Era de manhã cedinho numa quinta-feira, 16 de abril de 1970. Ao me retirarem o capuz,  vi-me no setor de registro dos novos prisioneiros que chegavam àquele quartel que, soube depois, era o da Polícia do Exército no bairro carioca da Tijuca, onde operava o DOI-Codi, reunindo efetivos da repressão originários das três Armas.

Como silenciei, recusando-me inclusive a dizer quem eu era, fui logo encaminhado para a sala de torturas, no fundo do quartel. Durante dois meses e meio sofreria todo tipo de intimidação e sevícia, conforme relatei no meu livro Náufrago da Utopia   e também em vários artigos e entrevistas. 

Avalio como desnecessário e deprimente repetir os pormenores da minha descida ao inferno. Melhor falar nas lições que extraí, algumas no próprio momento, outras repassando os tormentos na memória, de volta à cela.

Os torturadores tudo faziam para me desnortearem, impossibilitando-me de pensar. Assim, a primeira sessão de torturas foi com a sala lotada de oficiais, agentes, motoristas de viaturas, etc. Agrediam-me de todo lado, faziam perguntas ao mesmo tempo e desferiam murros e pontapés por eu não conseguir responder a todos . Além disto, recebia sucessivos choques elétricos.

Depois, já dependurado no pau-de-arara, começava a ser realmente interrogado. E aí se iniciava a verdadeira batalha. Como a intensidade das torturas era demasiada, tinha de ir buscar nas minhas convicções mais profundas a força para nada dizer a esmo. 

Logo percebi que, ao contrário das fantasiosas bravatas a posteriori de muitos dos companheiros que haviam passado por tais horrores, era quase impossível um ser humano confrontar arrogantemente aquelas bestas-feras, nada respondendo do que queriam saber. Aí a tortura se prolongaria indefinidamente, até o ponto em que o torturado já não teria mais nenhum controle sobre o que revelava.

Felizmente não me perguntaram logo nas primeiras sessões de tortura o que eu mais temia deixar escapar. 

Ou, talvez, tenha sido mero acaso: os companheiros que haviam participado da reunião com o Lamarca na área de treinamento não marcaram pontos comigo logo para o dia em que retornassem, pois tinham problemas mais urgentes para resolverem com outros quadros. A Inteligência podia esperar dois ou três dias.

Sou sincero: não consegui depois reconstituir boa parte  do que ocorreu comigo naqueles primeiros dias de sofrimentos dilacerantes. 

Seja por ter conseguido trancar na minha mente os dados dos pontos que teria com os comandantes superiores organicamente a mim e com os que eram do mesmo escalão, seja porque não tinha nada para discutir de imediato com eles, o certo é que aqueles que, ao caírem, causaram mais danos à VPR, o fizeram antes de quando eu os encontraria. O certo é que, por mérito ou por acaso, não foi graças a mim que a repressão ficou sabendo o suficiente para nos impor as quedas em cascata.

Mas não fui nem poderia ter sido capaz de convencer a repressão de que nada sabia. Para desviar a atenção dos inquisidores de nossos tesouros, fui obrigado a entregar-lhes algum calhau. O que me pareceu justificado naqueles  momentos terríveis (e só neles!). 

Passei o resto da vida lamentando a escolha que acabei fazendo, entre a prisão de algum comandante que poderiam causar dezenas de quedas e a prisão de um aliado cujo único contato com a organização era exatamente comigo. 

Só que o aliado Roberto Macarini (foto ao lado) morreu, seja como consequência das torturas, seja escapando da escolta e atirando-se do Viaduto do Chá por não estar mais conseguindo suportá-las. Nunca soube ao certo. 

Que direito tinha eu de definir, por critérios utilitários, quem seria barbaramente torturado e talvez até morresse, expondo-o para preservar os líderes da nossa organização? Nenhum. Amaldiçoei-me por perceber isto tão tardiamente.

Após minha libertação, nunca mais cogitei voltar a assumir as mesmas responsabilidades como militante. Sabia que, se o fizesse, ficaria novamente conflitado face à questão de quais companheiros eram descartáveis e quais não. Uma vez já tinha sido demais.

Quanto à injusta estigmatização que sofri por atribuírem-me uma responsabilidade que jamais tive na queda da área 2 de treinamento guerrilheiro, às vezes fico pensando que poderia ter provado a minha inocência muito antes se não carregasse tamanho remorso por, numa circunstância extrema, haver agido como o soldado que coloca o patamar hierárquico acima de tudo e não como o homem justo que sempre procurei ser.  (por Celso Lungaretti)

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4 comentários:

Anônimo disse...

Na minha casa mora uma gata.
Ela acha que eu moro na casa dela.
Ela costuma enroscar nas minhas pernas quando está com fome.
Peço a minha filha que dê ração e ela sossega.
Os enroscos e miados me afetam.
É quando eu lembro que a gata é a gata e eu sou eu.
E fico a distância cuidando do meu hoje.
As vezes, até acho ela bonita.

Anônimo disse...

https://www.settimananews.it/societa/pasolini-spiega-trump/

Anônimo disse...

O pior penso eu, Lungaretti, não foram as eventuais falhas que você possa ter cometido. Você tinha 19 anos, estava enfrentando um inimigo no campo em que o mesmo era infinitamente mais forte e não estava em uma luta por interesses pessoais. Pior foram aqueles que vendendo virtudes que nunca tiveram para entregar e lhe viraram as costas. Pior do que o inimigo, é o traidor e o desleal.

celsolungaretti disse...

Erros todos cometemos, companheiro. Inclusive as organizações e os militantes de esquerda. O problema é que por aqui o stalinismo acostumou os esquerdistas a não avaliarem a própria atuação e identificarem onde acertaram e onde se equivocaram. Então, já quando escrevi o NÁUFRAGO DA UTOPIA, em 2005, resolvi levar às últimas consequências que a verdade, e só a verdade, é revolucionária.

Admiti ocorrências que me desagradavam muito e que não eram de conhecimento amplo, porque escrevia para a História e já passara o tempo dos ídolos de pés de barro. Eu não era perfeito, nem perfeitos eram líderes os que escondiam suas falhas debaixo do tapete. O que eu mais queria era passar às novas gerações uma visão realista de como as grandes decisões são tomadas, quase sempre sem termos certeza de havermos escolhido o melhor caminho.

Mas, vacilar na hora de agir pode ter consequências ainda piores. Precisamos desenvolver nossos instintos de revolucionários e confiar neles nos momentos decisivos.

Agradeço suas palavras solidárias, companheiro. É esse o espírito que um revolucionário deve ter: levar em conta as intenções, mais do que os resultados. Os dramas históricos são muito complexos e ocorre de às vezes nos sairmos bem mesmo partindo de um raciocínio errado, ou de fazermos uma análise perfeita mas um imprevisto botar tudo a perder.

Não temos compromisso com o sucesso, mas sim com desenvolvermos nossos melhores esforços em benefício dos humilhados, ofendidos e explorados.

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