Eu, que como jornalista sempre me esforcei para tornar acessível ao leitor comum o blablablá empolado e pretensioso que é marca registrada da corporação acadêmica, não canso de me surpreender quando tantos se prostram a obviedades embaladas em papel para presente chique, como as que constam do artigo (aqui reproduzido) que o Safatle escreveu para a Ilustríssima da Folha de S. Paulo, em resposta aos que criticaram seu último livro.
Para não perdermos tempo, antecipo que concordo com as análises abaixo, que eu mesmo já fazia há bom tempo, só que expondo-as em linguagem mais simples:
— a crise do subprime, em 2008, revelou que o capitalismo se aproxima inexoravelmente do fim e perdeu a capacidade de tornar a existência minimamente aceitável para contingentes humanos cada vez maiores (comparação minha: a época atual lembra muito a iminência da queda do Império Romano, pois há um número cada vez maior de bárbaros cercando-nos e as fronteiras dia a dia se tornam mais inseguras);
— face a isto, a ilusão reformista de que o capitalismo ainda se domesticaria ruiu por terra, o centro político sucumbe aos extremismos e as massas desesperadas despejam sua fúria sobre quem representa o stablishment;
— então, a esquerda institucional, que ora se apoia no centro para resistir às investidas da extrema-direita realmente morreu e só falta enterrar, pois, para obter vitórias momentâneas, sacrifica o desfecho da guerra, associando-se sua imagem àquilo que as massas mais desprezam (as fotos do Lula, pequenino e cheio de si, abraçando o imponente Artur Lira, quase me fazem vomitar!).
Quais as conclusões que podemos derivar de tais constatações?
A primeira é que Hebert Marcuse estava certíssimo no longínquo ano de 1964, quando em seu Ideologia da Sociedade Industrial previu que o consumismo e a lavagem cerebral da indústria cultural dariam um golpe de morte na esperança de irmos conscientizando aos poucos as massas para a revolução.
Isto só funciona para quem ainda não foi mesmerizado e engolido pelo sistema. Sessenta anos depois fica claro que nos tornamos minoritários e é a partir daí que precisamos buscar formas de sobrevivermos politicamente, pois verdadeiros revolucionários não se deitam e esperam a morte chegar, lutam até o fim.
[Provavelmente isto não mudaria de forma decisiva o rumo dos acontecimentos, mas a obsessão do Lula em esvaziar a esquerda combativa e apostar todas as fichas petistas na conquista do poder ilusório conferido pelas urnas, desmobilizando a militância no vácuo entre uma eleição e outra, foi o principal erro de uma carreira repleta deles até a borda.]
E eis que, quando finalmente estamos prestes a nos ver livres do arquivilão Bolsonaro, percebemos que o golpe de misericórdia nessa direita que quer restabelecer, piorado, o capitalismo selvagem, continuará longe de ter sido dado.
Alguém logo sucederá o palhaço assassino e, provavelmente não sendo maluco nem amarelão como o antecessor, deverá cumprir seu papel sem tanto estardalhaço mas com eficácia bem maior.
Por que este pessimismo? Porque, desde o último ano em que a evolução do PIB brasileiro foi compatível com as necessidades de nosso país (2010, com 7,53%), enfileiramos desempenhos entre razoáveis e sofríveis, então o crescimento de 2,9% em 2023 ficou muito longe de representar o desafogo que a propaganda petista tenta nos impingir. Estávamos afundando com água até o queixo e agora o nível desceu para o pescoço. É motivo para espocarmos champanhe?
No início de 2023, eu previa um PIB de pelo menos 6%; não chegou nem à metade. Então, é compreensível o atual desencanto com o Lula3 e permanece a tendência de a agroindústria consolidar-se como o polo dinâmico da economia brasileira, alavancando a escalada política direitista.
Com Bolsonaro varrido definitivamente da cena política (sua pena de prisão tende a ser bem longa, tal o volume de provas e depoimentos acumulados contra ele como golpista, afora o segundo ato que ainda virá, quando for apurada sua responsabilidade no extermínio em massa de brasileiros durante a pandemia!), é bem capaz de a direita se civilizar, passando a exercer uma dominação sem tamanhas maluquices e estridências. Elas não serão mais necessárias.
No entanto, ainda que tocado com luvas de pelica, o projeto dessa gente para o Brasil continuará sendo o mesmo: impor-nos a superexploração, dando um fim às ilusões de conciliação de classes e revivendo o anticomunismo grosseiro dos tempos da guerra fria. [Alô, Malafaia, é contigo que estou falando!]
E é aqui que deixo de estar em sintonia com o Safatle, pois o que ele propõe como resposta da esquerda aos desafios atuais são:
— platitudes retóricas de quem não tem um caminho das pedras para indicar ("Nossa tarefa seria criar o que ainda não existe, usando nossa imaginação política para identificar experiências onde elas estão e trazê-las para a constituição de um modelo");
— ou que equivalem ao uso de estilingues para matar elefantes ("construção de processos de democracia direta, dinâmicas de autogestão e ocupação de fábricas, lutas contra modelos extrativistas", etc.).
Ocorre que, como o próprio Safatle afirma, "nunca as crises do capitalismo se demonstraram tão claramente imbrincadas num sistema de crises conexas: crise ecológica, política, social, econômica, demográfica, psíquica e epistêmica".
É exatamente a simultaneidade entre tais crises e a perspectiva de que, pela via da sinergia, elas se alimentem e alavanquem mutuamente, que torna a situação atual mais ameaçadora do que qualquer outra que a humanidade já enfrentou.
Para ficarmos apenas no que já morde nossos calcanhares:
— tudo indica que uma depressão econômica muito pior que a Grande Depressão do século passado se aproxima a passos largos;
— todas as previsões dos expertos sobre o avanço do aquecimento global e das alterações climáticas têm sido ultrapassadas; e
— abominações como Donald Trump e Vladimir Putin revivem nossos piores temores de guerras nucleares capazes de dizimar a espécie humana.
Já pensaram no que acontecerá com a humanidade enfrentando ameaças tão terríveis ao mesmo tempo?
Concluindo: desde meados do século passado, quando caiu para a esquerda a ficha de que o proletariado industrial não será, de jeito nenhum, o sujeito de uma revolução nos moldes marxistas, várias tentativas de manter em pé as convicções antigas foram tentadas, em vão.
Primeiro foi afirmarem que a aristocracia operária realmente se deixara cooptar pelo capitalismo, mas o peão de fábrica continuava empunhando a bandeira vermelha. Mas, cadê o peão de fábrica que estava aqui? A tecnologia poupadora de mão-de-obra comeu.
Depois, houve quem proclamasse que o papel outrora atribuído aos operários industriais seria cumprido pelos assalariados de forma geral. Sem chance: são dispersos, não têm os mesmos interesses comuns e muitos deles já caíram na arapuca de se tornarem pessoas jurídicas e/ou tentam decolar sozinhos pela via do empreendedorismo, vendo os iguais como competidores a serem superados na luta inglória por um lugar ao sol .
Marcuse sonhou com os marginalizados pelo sistema e os que dele se apartavam por escolha própria personificando, unidos, a esperança que restava. Mas, o exército da contracultura só durou até os EUA retirarem seus cowboys do Sudeste asiático e países próximos.
O saudoso Jacob Gorender colocava suas fichas no pessoal das ONGs, que, entretanto, nunca foi o titã Atlas, que tinha força para carregar o céu nas costas. E por aí vai.
Então, é por não sabermos com quem poderemos contar para comandar a revolução necessária que não conseguimos sequer definir uma estratégia viável para recuperarmos o terreno perdido nas últimas décadas.
E não nos ajuda o estado de espírito das massas, que, embrutecidas, querem mais é catarse, não soluções. Então, as fanfarronices desastrosas da extrema-direita lhes servem de compensação por terem sido conduzidos à insignificância e à impotência, sem sequer saberem identificar os verdadeiros inimigos e sem ânimo nem ousadia para reagir contra eles.
E, como nosso compromisso é conduzirmos a humanidade a um estágio superior de civilização, não a fazermos regredir à Idade das Trevas, não podemos disputar espaço com os bufões ultradireitistas em tal palco dantesco. Dai aos bárbaros o que é dos bárbaros...
Os que tentamos reconstruir a verdadeira esquerda nos deparamos com o que dela resta: voltou a um estágio tão embrionário que os voos mais altos são impensáveis em curto e médio prazos. Mas, algo ainda podemos definir, sim:
— temos de acumular forças com todo tipo de atividades que possamos desenvolver na contramão do sistema sem, contudo, partirmos desde já para os confrontos decisivos, pois não os conseguiremos vencer (o que não implica, contudo, deixarmos de responder às ações inimigas com reações de igual contundência, pois se apanharmos quietos, jamais inflamaremos as novas gerações, deixando-as entregues à insanidade dos motoqueiros fantasmas da ultradireita);
— precisamos formar militantes capazes de aproveitar as janelas revolucionárias que tendem a existir cada vez mais nestes estertores do capitalismo. Pequenos contingentes combativos, disciplinados e cientes do que estão fazendo, podem ter peso decisivo em situações caóticas como as que virão doravante. Quem não é o maior, precisa tornar-se o melhor.
Encerro com um tema para reflexão: podemos dizer que a extrema-direita é revolucionária, se ela apenas conquista o poder para dele ser logo desalojada (já que tudo que propõe é insustentável e desperta imensa rejeição quando colocado em prática, de forma que ela acaba servindo apenas para reforçar a dominação burguesa em determinadas circunstâncias, não para substitui-la)?
No sentido marxista, não! Para o velho barbudo, uma revolução ocorria quando se dava uma ruptura com a velha ordem política, social e econômica, sendo, no seu lugar, estabelecidos novos padrões de relações sociais.
Mas, a ultradireita do século 21 nada estabelece de duradouro, apenas destrói um estágio menos execrável da dominação burguesa, abrindo caminho para outro, de desumanidade extremada. De hora em hora, o capitalismo praticado no Brasil e no mundo piora.
(por Celso Lungaretti)
3 comentários:
Boa noite Celso, tudo bem por aí?
Algumas dúvidas: Foi Vladimir Safatle o responsável por descobrir aquela pesquisa,
de 2027, que revelou o povo brasileiro como o terceiro mais ignorante do planeta não?
Quando o "capitão" cair de vez, quem será o inimigo público da vez? Ciro?
Na sua visão, por que tem sido tão difícil, mesmo com a ligação entre esquerda arte popular e movimentos estudantis e sociais, diálogo com os chamados "Zé das couves" e "Dona Maria
do bairro"? É impressão, ou esquerda atual está mais na cadeira de vídeo game, fazendo postagens no seus celulares, quando vão as ruas, sem nem olhar nos olhos de quem dizem defender? É impressão, ou ela tem maior facilidade nas mídias sociais e medo de ouvir
do "Seu Zé" e "Dona Maria" aquilo que não condiz com suas narrativas?
Forte abraço do Hebert
PS: Sessão bangue bangue hoje 19/03/2024, na Rede Brasil de Televisão, às 11:00 da noite. Semana passada foi Django, estrelado por Franco Nero, das minhas coleções, mas vi assim mesmo. Hoje, 19/03/2024, será a continuação "Django a Volta do vingador",
continuação trash, meio Rambo, mas divertido.
Por aqui vou derretendo no calorzão que antes nunca sentíamos em março, Hebert. Mas, os negacionistas das alterações climáticas garantem que é tudo imaginação nossa.
O estudo do instituto de pesquisas britânico Ipsos Mori, "Perigos da Percepção", foi divulgado em 2015 e revelou que, de 33 países de todos os continentes, era o Brasil que tinha o terceiro povo mais ignorante sobre a própria situação (é, decerto, o motivo de ter eleito o Bozo em 2018). O Safatle talvez tenha comentado isto em algum artigo.
O novo vilão será quem suceder o palhaço sinistro como líder dos descerebrados da ultradireita. Meu palpite é que será o Tarcísio de Freitas, desgovernador de SP,
A imbecilização e o embrutecimento do povo brasileiro é uma triste realidade. Como eu disse no artigo, a esquerda fica numa situação desconfortável quando as massas preferem as bravatas e as mentiras dos fascistas às soluções reais para a penúria que veio crescendo desde 2010. Mas, a esquerda não pode descer ao nível dos boçais e ignaros, travando duelo de baixarias com eles.
O primeiro "Django" é um clássico, a sequência veio 21 anos depois e já não tinha nada a ver. Para piorar, surfou na onda do politicamente correto. O Django ter virado monge é tão pouco crível quanto o rabo de cavalo que passou a usar.
Um abração, Hebert!
Oi Celso. É mesmo. Aquele rabo de cavalo, duro de engolir,
e faixa na cabeça, era pra seguir a estética de Stallone,
já que o filme foi gravado em 1987.
Dizem que na próxima sexta-feira, o tempo de ovos
que podem ser fritos em frigideira com óleo
só com os raios de sol, seja na Av. Presidente Vargas
ou em Bangu, será de inverno quase glacial
(como diz Adriana Calcanhotto).
Abraço forte do Hebert, e fica a dica de faroeste
às terçãs, às 11:00.
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