sexta-feira, 9 de junho de 2023

MERITÍSSIMA É A SOCIEDADE!

 Estava lá no frontispício do Palácio da Justiça: Meritíssima é a sociedade! A frase queria indicar que o Poder Judiciário deve servir à sociedade e não dela se servir.  

Confesso ter gostado do sentido que se quis dar à submissão que os magistrados, excelências excelsas, devem ter à sociedade como titulares de instâncias incumbidas do nobre mister de distribuir justiça e exigir o seu cumprimento, mesmo considerando a boa dose de hipocrisia contida nos arroubos civilizatórios dos dísticos preambulares.       

É claro que obedientes ao direito burguês legiferado, nada mais sendo do que um contorcionismo da sociedade do capital objetivando tornar o injusto em justo, os magistrados são obrigados a chancelar a injustiça em nome da justiça. 

Um amigo consciencioso e curioso, desses desconfiados da lisura e mérito da função judicante, e diante de tantos fatos desabonadores da conduta humana nestes tempos de barbárie causada pelo esgotamento do modelo social ora vigente, perguntou-me se tal comportamento social era fruto de uma possível natureza humana criminosa e se estaríamos eternamente condenados ao convívio sob tal perspectiva.  

Disse-lhe, em resposta objetiva, que não poderíamos ter um resultado diferente daquele que temos, porque o ser humano está sendo educado sob critérios de sociabilidade absolutamente injustos no qual a decomposição da virtude humana decorre de um conceito basilar: a oficialização descriminalizadora da apropriação indébita pelo capital da riqueza socialmente produzida e em detrimento dos seus súditos, os seres humanos. 

São muitas as indagações neste sentido que se fazem.  

Outro dia, fui questionado por um leitor dos meus artigos inquietado com a minha afirmação de que há uma escravidão indireta pelo salário. Perguntou-me se eu considerava o pai dele, que sendo menino pobre, galgou com muito esforço a condição de empresário industrial bem-sucedido, um escravizador desumano dos muitos empregados dele? 

Respondi-lhe dizendo que ele não só era um escravocrata, enquanto agente da escravização, mas era também um escravo do próprio mecanismo que o levou àquela condição de empresário. 

Pediu-me que explicasse a minha conclusão sobre o fato de considerar que o seu pai era, também, um escravo.  

Expliquei ser a dinâmica de reprodução do capital autotélica, ou seja, existe com uma função que se basta a si mesma a partir de uma lógica de acumulação concentrada e abstrata de mercadorias sem limites, mas que esbarra no limite da capacidade humana de consumo e na queda do poder aquisitivo, ora gerada pelo desemprego estrutural. 

O valor é uma abstração e o dinheiro que o representa é sua materialização numérica a se imiscuir na vida social, real, destrutivamente, como mercadoria especial num universo no qual tudo é mercadoria, sem compromisso com a vida humana, mas apenas se utilizando da necessidade de consumo de mercadorias para existir.  

É por isto que se incineram excedentes de produção social - leite, batatas, café, etc. - por conta de que tais excedentes decrescem o valor destas mercadorias no mercado. A fome da sociedade, sob tal critério, é coisa secundária em relação ao desiderato utilitário da reprodução do valor. Matam-se de fome ou de mísseis em nome do valor.  

Mas voltando à explicação original ao meu interlocutor, expliquei que o seu pai empresário, no afã de preservar o seu empreendimento e de crescê-lo, sob pena de regredir e falir - quem não cresce empresarialmente engolindo o concorrente, decresce -, torna-se escravo da própria lógica na qual está inserido, ainda que com os privilégios inerentes ao poder aquisitivo pessoal que o capital lhe proporciona. 

Disse-lhe que nos períodos de crises econômicas, que agora estão cada vez maiores e em espaços de tempos menores, o empresário se obriga a tomar medidas administrativas contrárias à sua vontade, e impostas pela dinâmica da reprodução do capital que o torna uma espécie de escravo privilegiado do próprio capital administrado por ele.  

O empresário se vê obrigado a fazer demissões de empregados a quem pode ter afinidades e até gratidão - nos pequenos e médios negócios isso ocorre sempre; a fazer gastos com manutenção de máquinas depreciadas no decurso do tempo e a sofrer com a obsolescência de tais equipamentos sem que possa renová-los para fazer face à concorrência de mercado; sente a redução crescente da taxa e do volume de lucros; obriga-se a pagar juros altos sobre endividamento necessário à reposição do capital fixo – trabalho morto das máquinas – etc. 

Meu interlocutor olhou-me espantado por me ouvir afirmar que seu pai é vítima, ainda que privilegiada, e sorriu. Disse-me que gostou de saber que eu considerava o pai dele, também, um escravo - pareceu-me que o sentimento de culpa e a indignação com minha acusação foram então diminuídos/as. 

Disse-me que tudo aquilo de que eu estava falando era verdade e que ele presenciava permanentemente mesmo sem abrir mão dos privilégios óbvios da condição de empresário, e reclamou ainda que todo dia tinha um fiscal na porta da empresa industrial familiar cobrando o cumprimento da legislação trabalhista, sanitária, ecológica, fiscal, e o escambau, que deixava seu pai permanentemente tenso.  

O empresário, hoje, sofre com o processo de concentração em grandes conglomerados das atividades empresariais; o empregado sofre com medo de perder o emprego que o escraviza; o empresário, se não se tornar um megaempresário que engole os seus concorrentes, é engolido pelo mesmo mecanismo.  

Aquele dono de farmácia que passou a vida toda sustentando a família com seu pequeno negócio, já não mais existe.  

Este processo autofágico da necessidade de reprodução permanentemente ampliada do capital e a convivência com a voracidade fiscal de um estado falido representam uma contradição irresolúvel que se traduz como equação irresolúvel no longo prazo - crise ecológica daí decorrente à parte.  

É nesse sentido que a maioria dos empresários são escravos de uma lógica que julga beneficiá-los; muitos, agora, vendem os seus negócios para os gigantescos conglomerados e vão viver de aplicações no mercado financeiro, mas somente até o dia em que constatarem terem suas aplicações financeiras virado pó, fato que está cada vez mais próximo de acontecer, com a falência do sistema financeiro, o primeiro grande sinal da hecatombe sistêmica

Diz-se que sob o capital a dor do trabalhador assalariado começa na barriga, pela fome; e que a dor do empresário começa na cabeça, por tensão permanente; um morre de inanição, e o outro enfarta. 

O capital é tão destrutivo quanto a guerra moderna que ele mesmo induz: promove descobertas tecnológicas destruindo a vida. 

A verdade é que a sociedade do capital transforma o ser humano em cidadãos que a um só tempo são:  

- antisolidários, porque promove a competição destrutiva entre todos os que buscam a sobrevivência e que se tornam inimigos de todos - patrões e empregados; 

- individualistas, porque torna cada indivíduo social uma ilha egocêntrica temerosa de perder a segurança de um emprego; preocupado com a aposentadoria cada vez mais longa no tempo de vida e com valor reduzido; além do medo de contrair doença sem plano de assistência médica, entre outros fatores que somados induzem ao comportamento abominável de tentar levar vantagens aéticas - famosa lei do Gerson - sobre os seus semelhantes; 

- oportunistas por se sentirem impotentes diante da monstruosa estrutura de estado e suas instituição a lhe cobrar impostos em tudo que consome;   

- egoístas, como forma de amealhar patrimônio privado que assegure uma velhice sustentável financeiramente, e numa sociedade que não o protege e na qual você vale pelo que tem, e não pelo que é, infelizmente;  

- inseguros, por se sentirem ameaçados por uma ameaça social multiforme -desemprego estrutural, racismo, misoginia, xenofobia, violência urbana ou pela própria polícia que existe teoricamente para lhe proteger, corrupção política, etc.- e uma culpa que não consegue nem compreender o porquê e nem dela se livrar; 

Diante de todas essas questões que lhe são postas ao nascer e independentemente de sua vontade, não podemos afirmar que a humanidade tenha uma natureza perversa condenada a existir e assim permanecer até o fim de sua estadia neste Planeta inserido como um pequeno grão de matéria num universo grandioso. 

O ser humano é uma animal racional em evolução e a irracionalidade imanente ao seu processo evolutivo convive com os prodígios das descobertas tecnológicas e as mazelas de sua mesquinhez, ora agravadas pela contradição entre forma e conteúdo resultantes de um processo de escravismo milenar que se tornou obsoleto. 

A natureza humana é essencialmente contrária a todas as mazelas que se lhe incorporaram no processo evolutivo da sua espécie, com as marchas e contramarchas do processo dialético histórico e que antes identificamos como hoje existentes, mas que tendem a ser superadas, se tivermos tempo hábil. 

O capital, no seu escravismo abstrato, totalitário, desumano, assassino, irracional, socialmente destrutivo, ecocida e detentor de contradições que anunciam o seu fim num ponto futuro, que assim o torna autodestrutivo, configura-se como o grande réu a ter que se sentar no TMGH - Tribunal Moral do Genocídio da Humanidade.  

Meritíssima é a sociedade! (por Dalton Rosado)


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