Estamos acostumados a assimilar as religiões de uma maneira geral às mensagens de paz, amor, bondade, entendimento, confraternização e assim por diante. Mas numa parte do cristianismo evangélico ocorreu uma mudança teológica importante, embora pouco percebida e pouco comentada, decorrente ou causadora da aliança com movimentos políticos de extrema-direita norte-americanos.
Trata-se de uma releitura do Velho Testamento bíblico, no qual Deus, com o nome de Jeová, é guerreiro, exigente, vingador e cruel, fazendo alianças com homens imperfeitos, que se tornam heróis. Nada a ver com a figura do Cristo paz e amor. Entende-se: Israel vivia sendo atacado e precisava de líderes fortes para sobreviver.
Essa releitura da Bíblia, ao que parece, rejeita a submissão e bondade, procurando transformar os cristãos em lutadores e guerreiros contra os responsáveis pelos desvios do fundamentalismo. Só sob esse prisma se pode entender o forte apoio dos evangélicos e pentecostais a figuras grotescas como Donald Trump e Jair Bolsonaro, que teriam o apoio de Deus no combate ao comunismo, ao homossexualismo, ao desvirtuamento da família bíblica, à equiparação da mulher ao homem, ao transexualismo. Homens que veneram o velho Israel bíblico, aonde deverá retornar Cristo após a última guerra mundial e a próxima hecatombe nuclear!
Delírio à enésima potência, mas seguido por milhões de pessoas. Suspendo aqui esta introdução, para contar como decidi escrever esse comentário, baseado num documentário norueguês. Preocupante!
A Variety, uma revista e website norte-americano de artes, cinema e variedades, me envia diariamente dezenas de e-mails, que nem sempre tenho tempo de ler. Vou descartando pelo título.
Foi justamente o título que me fez abrir a mensagem: Rezando pelo Armagedom. Tratava-se de uma informação sobre o documentário norueguês, com esse título, feito por uma já conhecida realizadora, Tonje Hessen Schei.
A notícia contava a venda dos direitos de distribuição do filme para uma empresa dinamarquesa e trazia um resumo do cenário. Me interessei e descobri já ter havido uma estreia internacional do filme no festival CPH:DOX de Copenhague, e já ter sido exibido no 28º Festival de Documentários, É Tudo Verdade, em abril, na Cinemateca do Rio de Janeiro.
O documentário mostra uma realidade norte-americana na qual grupos evangélicos fundamentalistas de extrema-direita formam lobbys, junto a políticos e personalidades importantes, com o objetivo de provocar a realização das profecias feitas no Apocalipse, último livro da Bíblia, no qual se fala em linguagem cifrada da Batalha de Armagedom, a última das batalhas provocadora do fim do nosso mundo, com a volta de Jesus Cristo.
É de se imaginar que esses devotos ou fanáticos se excitam quando veem os noticiários sobre a guerra da invasão da Ucrânia pela Rússia, que destacam o risco do uso de armas nucleares capazes de destruir a vida na Terra. Ou seja, em lugar desses fundamentalistas evangélicos pregarem e se esforçarem pela paz mundial, agem, rezam ou oram, utilizam suas influências para agravar a tensão mundial na expectativa de provocarem a batalha final do Armagedom com a destruição do planeta.
Uma realidade absurda essa de desejarem uma espécie de suicídio coletivo, numa oposição aos esforços de pacifistas e da ONU, crendo cegamente nas visões do apóstolo João na Ilha de Patmos, já velhas de dois mil anos, cujas alegorias permanecem indecifráveis. Nem mesmo a chave do número do anti-Cristo, 666, quer dizer alguma coisa.
Tudo poderia ser descartado como delírio, mas se torna perigoso quando pastores, pretensos interpretadores do delírio profético, querem influir nas autoridades, militares e nos milhões de seguidores para provocar a guerra mundial apocalíptica!
O documentário mostra pessoas que acreditavam e acreditam ser o ex-presidente Trump um homem enviado por Deus, tanto quanto os evangélicos brasileiros estavam e estão convencidos de ser Bolsonaro um ungido e representante de Deus no Brasil.
Durante os quatro anos bolsonaristas denunciamos essa falsa e fantasiosa ficção pregada pela maioria dos pastores evangélicos, que levou muitos deles a justificar e a continuarem a justificar a pregação golpista de Bolsonaro e o ataque aos prédios dos Três Poderes no 8 de janeiro.
Nas redes sociais bolsonaristas havia muitos profetas mascarando a tentativa de golpe como intervenção divina contra o comunismo e alguns mesmo misturando fim do mundo e volta de Cristo com a vitória do clã Bolsonaro.
O documentário Rezando pelo Armagedom mostra a força retrógrada e perigosa dos fanáticos evangélicos fundamentalistas norte-americanos, defendendo ideias medievais.
Um destaque é para o evangelho pregado por motociatas e motoqueiros, lembrando como Bolsonaro também gostava do ronco das motos. Trata-se da Missão M25, qualificada por críticos como uma gangue de motoqueiros evangélicos que atravessa o país em carros compactos e grandes motocicletas barulhentas, fazendo proselitismo.
O evangelho para eles deixa de ser uma mensagem de paz e amor para se converter num thriller. O evangelho do Apocalipse é a linguagem guerreira do acerto de contas, da revanche, da punição violenta aos inimigos de Cristo. E eles estão nessa luta!
Uma frase de uma líder é marcante: "Existem apenas duas nações construídas para honrar a Deus: Israel e os EUA!"
Outro destaque: Ralph Drollinger, que dirigia o Grupo de Estudo Bíblico semanal da Casa Branca durante o governo Trump, alegando, no documentário, que os tempos estão “vivos com poderes demoníacos uma vez ocultos”.E o que são esses demônios, exatamente? “O movimento homossexual, o transgênero em nossas forças armadas, e a questão do aborto”. (por Rui Martins)
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