quinta-feira, 11 de maio de 2023

RECORRER AO LIXO ENSANGUENTADO DA DITADURA PARA RECONSTITUIR EPISÓDIOS DA LUTA ARMADA É FLERTAR COM OS ERROS

Ante a prisão iminente, Juarez cumpriu seu
pacto de morte com Maria do Carmo Brito
U
m companheiro de muitas batalhas de opinião travadas na internet  me informou que o jornal  Estado de Minas acaba de publicar esta reportagem, com base em conclusões tiradas por pesquisadores da Universidade Federal de Minas Gerais que examinaram uns 3 mil documentos da repressão da ditadura militar, acerca da morte do companheiro Juarez Guimarães de Brito, figura exponencial do Colina, VAR-Palmares e VPR, ocorrida em 18 de abril de 1970.

No entanto, eu objetarei que a papelada dos órgãos de inteligência e de informação que nos combateram tem enorme profusão de erros, exatamente porque baseada nos interrogatórios a que éramos submetidos sob torturas extremas e nos relatórios das equipes encarregadas de interpretá-los.

Os primeiros porque, sob espancamentos e descargas elétricas, inventávamos qualquer lorota para dar aos torturadores a impressão de que estávamos dizendo tudo que sabíamos. E tais revelações eram checadas depois com outros presos, quesabiam ser preferível confirmá-las do que arriscarem-se a uma acareação e, consequentemente, a novas torturas. O que tentávamos, com todas as nossas forças, era não abrir informações operacionais, que levassem a novas prisões ou queda de aparelhos;  

Vai daí, p. ex., que os relatórios dos órgãos de repressão me atribuíram o papel de um dos três juízes do julgamento de Antônio Nogueira da Silva Filho por parte de um tribunal revolucionário da VPR. Era um disparate e eu só vim a saber que tal julgamento ocorrera três décadas depois (vide aqui).

Também cansei de ler a versão militar de ações armadas das quais eu sabia quantos membros da Organização haviam participado – invariavelmente a lista continha vários nomes que não tinham nada a ver com o episódio. Às vezes o número fictício era o dobro do real, um verdadeiro samba do crioulo doido.
Juarez comandou a apreensão, sem um 
só tiro, do famoso cofre do Adhemar
Percebi, ainda, a existência de óbvios exageros para engrandecer a atuação dos militares participantes daquelas ações repressivas, o que amiúde lhes valia promoções, recompensas de empresários e as famigeradas medalhas do Pacificador  
     
  
Então, a minha avaliação de quem esteve muito próximo de tal episódio é a de que o papel do infiltrado do Cenimar, agente Manoel Antônio Mendes Rodrigues (Luciano), está sendo superdimensionado. A versão que eu tenho é a de que o Wellington Moreira Diniz havia sido preso como consequência de quedas num pequeno grupo de calouros na luta armada, ao qual estava prestando assistência.

O Wellington, ex-aluno e braço direito do Juarez desde o Colina, teve diagnosticado um problema cardíaco e a VPR resolveu tirá-lo da militância mais ativa. Ele passou a levar uma existência tranquila, somente dando treinamento a novos recrutas da guerrilha, pertencentes a grupúsculos que a nós recorriam, como aquele em cujas quedas foi arrastado.

Na nova condição, ele só mantinha contato com a VPR aos sábados, para trocas de informações e recebimento da sua pensão.

Quando deixou de comparecer ao ponto e à alternativa (meia hora depois) de um desses sábados, 11 de abril de 1970, a Organização já ficou apreensiva, admitindo a possibilidade de que ele tivesse caído.

Foi o que algum dos comandantes com os quais eu mantinha contato frequente (o Ladislau Dowbor e a Maria do Carmo Brito, do Comando Nacional, mais o próprio Juarez e o José Ronaldo Tavares de Lira e Silva, comandantes das duas unidades de ações armadas no RJ) me comunicou.
O Wellington dez anos atrás, na sessão em que a Comissão
de Anistia lhe concedeu indenização por seus tormentos
 

O Comando Nacional marcara uma reunião na área de treinamento guerrilheiro para discutir atrasos no encaminhamento da
tarefa principal (o comandante Carlos Lamarca acreditava que, como já ocorrera antes do seu ingresso, alguns quadros da VPR estivessem se dedicando pouco à abertura da frente de luta no campo e bem mais ao crescimento da nossa estrutura nas cidades).

Insisti ao máximo com o Ladislau e a Maria do Carmo no sentido de que a O. não ficasse acéfala dos seus principais comandantes quando um companheiro importante como o Wellington poderia ter caído. Caso isto se consumasse, as providências para deter uma possível onda de quedas em cascata ficariam muito prejudicadas. 

Mas, aqueles dois comandantes nacionais não ousaram contrariar a voz forte do terceiro, então lá se foram todos para a lavagem de roupa suja no campo.

O tal infiltrado pode mesmo haver apontado à repressão o grupo ao qual o Wellington transmitia seus conhecimentos teóricos e práticos da guerrilha urbana. Mas, eu diria que seu papel foi unicamente este.

O certo é que, já preso e torturado desde o dia 9 (segundo a reportagem do Estado de Minas, de autoria de Bertha Makaroun, pois esta data nós não tínhamos), o Wellington não havia aberto para a repressão os ponto e alternativa do primeiro sábado (dia 11). 
Estivemos juntos na PE da Vila Militar em 1970: o Wellington sob 
risco de ataque cardíaco e eu com o tímpano estourado a supurar
  
Depois, ao longo da semana seguinte, após ser supliciado durante prováveis seis dias, ele indicou à repressão o fotógrafo ao qual, como motorista do Lamarca, o conduzira: tinha de atualizar as fotos da sua documentação falsa, já que fizera uma cirurgia plástica para se diferenciar da imagem que os jornais e tevês não paravam de martelar.

A prisão do fotógrafo deve ter ocorrido na quarta-feira, 15 de abril, pois é pouco provável que ele tivesse resistido muito antes de entregar o elo seguinte da corrente: um ginecologista que era há muito simpatizante da VPR e o principal fornecedor de prestadores de pequenas tarefas para a O. (desde pessoas que guardavam itens ou abrigavam companheiros em emergências até a aeromoça que, aproveitando a fachada que lhe dava sua profissão, foi contatar o comandante Shizuo Ozawa na Argélia depois de ele ter sido libertado em troca de um cônsul nipônico por nós sequestrado).

O ginecologista esteve comigo até lá pelas 22h30, 23h00, dessa mesma quarta-feira. Foi para casa e lá o prenderam. Na manhã seguinte, tinha outro ponto comigo, para me passar o contato de dois novos simpatizantes que poderiam prestar alguns serviços à O. Em lugar deles, quem estava lá era o DOI-Codi.

Fui, portanto, uma das primeiras vítimas das quedas em cascata que eu temera e havia tentado evitar. E, no sábado (18 de abril), o Wellington estava como isca na segunda e última alternativa do seu ponto semanal com a O. Ou seja, não se tratava de um novo ponto, mas apenas o procedimento costumeiro nesses casos.
O infiltrado Manuel Antônio Rodrigues  
pode estar tendo seu papel superdimensionado
 

Não dá para acreditar que o infiltrado tivesse conhecimento desse ponto. Por que haveria o Wellington de, antes de sua prisão, revelar a alguém de fora a sistemática de segurança da VPR?

Aliás,, quando estávamos ambos presos na PE da Vila Militar, ele não desmentiu que tivesse revelado o local e hora do ponto fatal. Talvez eu não lhe tenha perguntado (estávamos em celas diferentes, uma um pouco adiante da outra, e sabíamos que não era bom entrarmos em detalhes sobre assuntos melindrosos, pois poderíamos estar sendo ouvidos).

Mas, ao contrário da pretensão da reportagem jornalística de estar livrando o Wellington da pecha de traidor do Juarez, que eu saiba ninguém na VPR ou na esquerda raciocinava de maneira tão obtusa. Seria uma aberração atribuir-lhe alguma culpa por haver aberto o fotógrafo ou a existência do ponto do dia 18 depois de haver passado uns seis dias sofrendo torturas tão terríveis.  

O que a O. exigia dos militantes é que aguentassem a onda por 24 horas, prazo por nós considerado suficiente para desmarcarmos todos os pontos que ele tinha, evacuarmos todos os aparelhos que ele conhecia, avisarmos todos os aliados com os quais tivera algum contato, etc. Não era sequer suposto que alguém aguentasse seis dias infernais sem abrir absolutamente nada (ainda mais se tratando de um companheiro com o coração debilitado!).

O certo é que o Juarez e a Maria do Carmo sabiam de antemão que era enorme a possibilidade de o Wellington estar nas garras da repressão, mas mesmo assim foram conferir. Chegando lá, perceberam, como diz a reportagem, que ele estava mesmo preso e servindo de isca, mas ignoravam que ele não pudesse correr (o que chegou ao meu conhecimento é que ele estava em pé num ponto de ônibus, mas tinha as pernas presas por talas sob a calça, o que era, vale dizer, um procedimento usual do DOI-Codi).

Então, o Juarez comprou umas frutas num mercado próximo, colocou um revólver embaixo e as frutas em cima, e pagou a um menino para entregar o pacote
àquele parado moço ali. Wellington recebeu o pacote, viu a arma mas ela de nada lhe serviria com as pernas presas. E os agentes da repressão, percebendo o que estava acontecendo, cercaram o carro do casal.
Continuo transmitindo a historiadores e às novas gerações
minhas lembranças e reflexões sobre a luta contra o arbítrio

Sei que é muito difícil para um historiador chegar à verdade sobre os episódios da luta armada a partir dos documentos fantasiosos da repressão e de lembranças às vezes imprecisas de um ou outro sobrevivente dos
anos de chumbo. Afinal, já lá se vai mais de meio século.  

Mas, como ingressei muito jovem na VPR (mal acabara de completar 18 anos), a passagem do tempo ainda não abriu buracos na minha memória. Não só permaneço saudável e lúcido aos 72 anos, como  tenho cumprido o papel de posicionar melhor os historiadores que me procuram como fonte. (por Celso Lungaretti, jornalista, escritor e anistiado político, que foi comandante de Inteligência da VPR em SP e no RJ)
SAIA JUSTA – o velho amigo que me enviou, num comentário ao meu post O Bozo já não passa de uma prisão esperando acontecer,  o link desta reportagem do jornal Estado de Minas, esqueceu de avisar que ela foi publicada... em 2015! 

Então, distraidamente, supus que fosse recente, daí ter respondido a ela com o longo artigo acima. 

Agora, constatado o engano, resolvi mantê-lo no ar, afinal, envelhecido ou não, deu uma baita trabalheira. E talvez venha a interessar a algum leitor mais condescendente. 

De resto, lembrando as tevês de antigamente quando a transmissão caía, desculpe a nossa falha. (CL

2 comentários:

Anônimo disse...

Caro Celso,
udo
Rendeu um artigo inteiro. Que bom!

Muito coerente a sua explicação. Ficou comprovado nisso tudo a imensa falha operacional de Juarez e M. Brito, dois dirigentes da VPR, ao tomarem a decisão tão infeliz citada por você, quando o correto era eles saírem rápido do local assim que perceberam que "algo estava errado".

Outra observação que faço é que as organizações de luta armada em determinado momento, subestimaram o papel dos infiltrados. Era uma prática usual de qualquer unidade policial da ditadura.

ISMAR C. DE SOUZA
ics-contato@bol.com.br

celsolungaretti disse...

Correto, meu caro Ismar: fomos negligentes com as infiltrações.

Eu mesmo tomava muito cuidado quando ia num ponto com principiantes, mas tendia a confiar em veteranos como o tal ginecologista, que há muitos anos era um homem de esquerda e aliado de primeira hora da VPR. Paguei caro por isso.

E o próprio José Raimundo da Costa, que sobrevivia na clandestinidade desde o golpe de 1964, tendo escapado de muitas situações difíceis, não quis acreditar que seu companheiro dos movimentos da marujada fosse um traidor, como o PCB sustentava.

Como consequência, acabou na Casa da Morte. Tenho certeza de que, se houvesse tomado com o cabo Anselmo as cautelas habituais, não teria sido preso com vida. Ele estava consciente de que um dia sua sorte acabaria, mas preparava-se para reagir à bala.

Mas, nesse caso específico da morte do Juarez, creio que os pesquisadores mineiros estão exagerando o papel do bombeiro infiltrado. Ele estava muito longe de ser outro cabo Anselmo.

Eu acredito que foi o Wellington mesmo quem abriu aquele ponto (que se constituía na sua última opção de recontacto), confiando em que, mais de uma semana depois de preso, a VPR jamais tentaria resgatá-lo.

Então, nunca o vi como merecedor de críticas, pois não transgrediu nenhuma norma da Organização: nenhum de nós era tão ingênuo a ponto de acreditar que os militantes resistissem infinitamente. Ele aguentou muito mais do que a média dos nossos presos.

A VPR se propunha a, em 24 horas, inutilizar qualquer informação que quem tivesse caído detivesse. Mas, como também expliquei, aquela malfadada reunião dos comandantes no campo fragilizou nossas defesas.

Um abração!

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