passa palavra
O QUE NOS RESTA?
Os acontecimentos do dia 8 de janeiro de 2023 em Brasília
são por demais graves. Qualquer tentativa de subestimar a situação só revela a
debilidade do que resta de extrema-esquerda.
É preciso ser claro: o que ocorreu
foi uma bem-sucedida ação do eixo radical do fascismo brasileiro, apoiados pela
evidente leniência das forças de segurança que protegiam o local.
Entre os capitalistas, a situação parece ter sido bem
percebida, não à toa houve declarações da Federação Brasileira de Bancos
(Febraban), dos grandes meios de comunicação e da mais ampla gama de dirigentes
políticos de todo o mundo. Não há de parte destes gestores uma ilusão com o
número de manifestantes menor do que os “cinco milhões” almejados nas
convocações. A coesão na classe política parece ter se forjado para condenar
com clareza essas ações, exigindo das forças repressivas que se atue contra os
fascistas.
A intervenção no Distrito Federal, passando para o
Ministério da Justiça o comando da Segurança Pública, e o afastamento do
governador por 90 dias — por ordem judicial — indicam que as respostas às
mobilizações golpistas serão mais enérgicas que as até então tomadas. O
fortalecimento do aparato repressivo tem, no momento, um amplo apoio social. O
apoio da esquerda à escalada repressiva parece advir da própria incapacidade de
atuar por si para impedir a disseminação do fascismo na sociedade.
Mas há de se perguntar em que medida se pode confiar no
exército e na polícia para evitar o avanço da fascização.
Uma das primeiras manifestações pedindo intervenção militar
de que se tem notícia na última década ocorreu em março de 2014, reunindo
algumas dezenas de pessoas em São Paulo e no Rio de Janeiro. O único político
que compareceu a elas foi o então deputado Jair Messias Bolsonaro.
Logo após o
segundo turno das eleições presidenciais daquele mesmo ano, em que Dilma
Roussef venceria Aécio Neves, uma outra manifestação é convocada pedindo o
afastamento da petista e acaba dividida entre os que queriam o impeachment e os
que pretendiam uma intervenção militar. Ao longo de todo o ano de 2015 as
manifestações contra o governo se repetem, reunindo cada vez mais gente, mas
com a mesma divisão entre os que queriam o impeachment, que eram maioria, e os
que pediam intervenção militar, que, embora minoritários, iam se tornando mais
numerosos a cada manifestação.
Revelou-se também uma divisão de estratégias
nessa época: enquanto os grupos mais “institucionais” marcavam manifestações
espaçadas e apostavam nelas como instrumento de pressão para ganhar apoio
político e institucional para o impeachment, os grupos mais radicais apostavam
em fazer mais manifestações.
Já à época começaram os primeiros acampamentos. O local
escolhido era em frente à FIESP, com a presença de vários militantes
pró-intervenção e com o patrocínio da Federação das Indústrias, que fornecia o
café da manhã, o almoço e o jantar dos acampados. Um pequeno grupo que estava
acampado em Brasília chegou inclusive a levar um boneco inflável para
homenagear um general do Exército que havia sido demitido após criticar o
governo em uma palestra para oficiais da reserva e convocá-los para o
despertar de uma luta patriótica — tratava-se do general Hamilton Mourão.
Em novembro de 2016 — já durante o governo de Michel Temer —
um grupo de cerca de 50 manifestantes invadiu o plenário do Congresso Nacional
pedindo intervenção militar e exaltando o então juiz da Operação Lava Jato,
Sérgio Moro. Um observador atento notará que as imagens aí produzidas são em
muito similares às da recente invasão aos prédios da Praça dos Três Poderes. Entre os manifestantes havia
comerciantes falidos, seguranças, militares da reserva, policiais e donas de
casa que recebiam pensão militar. Um deles declarou: “Invadimos para mostrar
que aqui é a casa do povo. Os nossos representantes têm de temer. A lógica é
muito simples, quando o povo teme o Governo é tirania. Quando o Governo teme o
povo é que se tem liberdade. No Brasil, chegamos no ponto que não dá mais. Não
é invadir escola. Isso é coisa de covarde, de bunda mole. Tem de invadir as
Assembleias, o Congresso”
O discurso explicitava uma apropriação das táticas
de esquerda, de ocupação, e propunha uma radicalização estética das mesmas,
envolta já no mito fascista de coragem para substituição das velhas elites.
O movimento pró-intervenção militar é anterior ao bolsonarismo. O bolsonarismo, o lava-jatismo e todas as manifestações de
direita de 2013 para cá serviram como incubadoras que permitiram a esse
movimento crescer e se desenvolver a ponto de sair da sua condição marginal até
se tornar o maior movimento social brasileiro na atualidade. Não nos parece
surpreendente que apesar da manutenção de certo culto ao líder, esse movimento
ganhe autonomia perante Bolsonaro e sua família, o que explica os fechamentos
de vias promovidos no dia 9 de janeiro, mesmo após a condenação explícita feita
por Jair.
As ações dos últimos dias parecem ser a atuação de uma ala
anti-institucional do bolsonarismo, pouco preocupada com disputas eleitorais,
que deverá se manter ativa no próximo período, buscando cada vez mais a adesão
das forças militares e policiais. Adesão esta facilitada pela ampla proximidade
construída ao longo dos quatro anos de governo Bolsonaro em clubes de tiro.
Não é desprezível o caráter messiânico e religioso dos atos.
Acompanhando as lives dos acampamentos, era possível notar as orações e os
sermões de outros acampados enquanto Lula tomava posse. As imagens das desmobilizações
viralizaram com manifestantes chorando copiosamente em histeria coletiva. São
pessoas dispostas a arriscar suas vidas pela causa.
Ainda que os movimentos do dia 8 não tenham conseguido a
tomada em definitivo do Estado, nos parece precipitado dizer que tenham sido
derrotados. Os acampamentos serviram ao longo dos últimos sessenta dias como
locais de grande potencial de formação interna para o movimento, aumentando sua
identidade própria, possibilitando que os acampados constituam novos laços de amizade
e solidariedade entre si.
Pouco antes da posse de Lula pareciam ter entrado em
descenso, porém a desmobilização pode ter sido revertida a partir dos atos do
dia 8, como indica a breve retomada do acampamento em Belo Horizonte em
simultâneo aos acontecimentos de Brasília. Mesmo o desmonte e a prisão em massa
do acampamento de Brasília não têm ainda um desfecho previsível: provocarão uma
desmobilização ou agitarão as bases em solidariedade?
A esquerda se mostra um tanto atônita.
Um acompanhamento do posicionamento da esquerda nas
diferentes redes sociais indica uma demanda punitivista pela repressão
institucional. Não se trata aqui de pensar que não se deva combater o fascismo
com uso da força, mas será que o emprego e fortalecimento dos aparatos repressivos
é uma boa estratégia? Em quem estamos depositando a confiança para um processo
de desradicalização dos meios policiais e militares?
Embora o discurso de que
isso abriria um precedente para a repressão aos esquerdistas não nos pareça
exato, pois as táticas e estratégias de repressão sempre foram amplamente
usadas e abusadas contra a esquerda e os trabalhadores, a aposta em utilizar a
expertise adquirida pelo vice-presidente em reprimir manifestações quando era
governador não nos parece uma saída à esquerda. As apostas petistas de
fortalecimento do exército feitas ao longo dos 12 anos de mandato não mostram
uma boa perspectiva de futuro, e ao mesmo tempo os discursos sobre ser
necessário desbolsonarizar essas instituições têm encontrado pouco eco nas
práticas adotadas.
Enquanto isso, a intervenção decretada na segurança pública
do Distrito Federal tem outra consequência menos analisada, a impossibilidade
de alterar a Constituição. O prazo de 23 dias pode ser eficaz para desmobilizar
a ação em uma unidade federativa específica, mas aponta um possível caminho aos
golpistas: repetirem as ações em outros pontos da federação, gerando novas
intervenções e à consequente paralisia do governo, levando a um desgaste tanto
institucional, quanto popular.
A convocação de manifestações feitas pelo conjunto de
movimentos sociais, para além de ser feita após os atos fascistas ganharem
força jamais vista, não encontram na opinião pública o mesmo apoio que as
demandas por repressão.
Em parte, parece vir da intuição de que esses atos
servirão apenas para mostrar números, aglutinar as bases de alguns movimentos
sociais, mas estão longe de demonstrar uma estrutura organizativa de combate ao
fascismo. A capacidade organizativa dos sindicatos e do que resta dos movimentos
sociais parece refletir uma desmobilização de suas bases. A tendência é que o
grosso das manifestações seja composto por uma esquerda difusa e pouco
organizada por locais de trabalho, moradia ou estudo.
Os tempos que se avizinham apresentam desafios maiores do
que aqueles com que a extrema-esquerda tem demonstrado capacidade de lidar. (por Passa Palavra)
Um comentário:
https://www.ihu.unisinos.br/625507-bolsonarismo-e-mais-um-sintoma-do-que-uma-causa-da-doenca-do-corpo-social-que-leva-as-pessoas-a-lutar-por-sua-propria-servidao-entrevista-especial-com-bruno-cava
O que diria Nelson Werneck Sodré
https://www.ihu.unisinos.br/625522-usar-a-forca-contra-a-forca-artigo-de-vladimir-safatle
https://www.ihu.unisinos.br/625520-o-papel-da-midia-na-construcao-da-barbarie-artigo-de-mauricio-abdalla
https://www.ihu.unisinos.br/625516-para-entender-por-que-os-golpistas-tem-medo-de-lula-3-olhe-para-a-amazonia
A imagem do pobre nos filmes de Pasolini e Glauber
como chave para compreender a ação do capitalismo
http://www.ihu.unisinos.br/images/stories/cadernos/ideias/310cadernosihuideias.pdf
Postar um comentário